22.12.25

Não há “nós” com os EUA. Quanto mais tarde percebermos pior


 


Esse “nós” morreu e o funeral já foi há muito. O desdém de Trump pela Europa, que muitos preferiram ler como folclore de campanha, é o centro do principal documento estratégico da administração: a Estratégia de Segurança Nacional de 2025. O nacionalismo económico passa a ser uma política de Estado e o “America First” deixa de ser um slogan para ser uma arquitetura de governação. As guerras culturais chegam à casa de partida da estratégia de segurança, com as alterações climáticas a passarem a ser tratadas como uma ideologia perigosa e um embuste que, na narrativa trumpista, enfraquece o Ocidente e financia adversários como a China.

Comércio, alianças, diplomacia, tecnologia, energia, tudo é pesado numa balança simples, transacionável, utilitária. Não existe qualquer ordem internacional que não seja a do poder do mais forte e o regresso das esferas de influência regional. Tudo o que importa é a acumulação de riqueza e de matérias primas necessárias para alcançar a “supremacia tecnológica” que coloque os EUA no topo sem contestação. Não deixa de ser curioso ver uma administração norte-americana a confirmar, com crueza e desfaçatez, a justeza das principais críticas à amoralidade do imperialismo norte-americano.

A Europa deixa de ser aliada ou um parceiro frágil, para ser encarada como o seu principal adversário ideológico. A Rússia quase não aparece, apenas quatro referências e quase sempre benignas, a China é um adversário económico e a Coreia do Norte nem é referida. A novidade é a agressividade contra a Europa, descrita como um espaço em crise moral, cultural e política, corroída pela imigração, censurada pela sua “erosão civilizacional”.

“Queremos que a Europa ‘permaneça europeia’, recupere autoconfiança civilizacional e abandone o foco falhado na asfixia regulatória”, pode ler-se. Traduzindo: deve adotar uma política ainda mais musculada contra os imigrantes, partilhar os valores conservadores e misóginos da extrema-direita, e colocar um ponto final na tentativa de impor limites ao poder das big tech, de regular dados, conteúdos, concorrência e responsabilidades pelos conteúdos nas redes sociais. Não é por acaso que a nova doutrina se alicerça nos aliados naturais de Trump, empresariais e até políticos, nas grandes multinacionais tecnológicas. Quando estas empresas olham para a UE, não veem um parceiro, mas um obstáculo.

Há, na lista de “parceiros” preferenciais, um mapa de afinidades políticas, não de alianças tradicionais: Hungria, Itália e Polónia. E há um entusiasmo por eleições futuras onde se espera que a extrema-direita comece o trabalho de demolir a UE por dentro. Num passo inédito, o documento vai mais longe, reclamando para Washington a prerogativa de “defender” liberdades fundamentais dentro da Europa, interferindo no debate público europeu apoiando os partidos que vêm como os defensores da “identidade” europeia.

Enquanto Trump coloca tudo preto no branco, enquanto Washington financia, amplifica e legitima forças anti-democráticas, os responsáveis políticos europeus continuam a falar de “valores partilhados”. Os sinais da convergência com a Rússia em relação à Europa aí estão: Elon Musk sugere o desmembramento da União Europeia e Dmitry Medvedev, ex-primeiro ministro fantoche de Putin, apressa-se a aplaudir.

E NO QUINTAL DOS EUA...

Quanto à América Latina, a doutrina não mudou. Mudou o descaramento. Quis o acaso que a nova Estratégia de Segurança Nacional fosse conhecida ao mesmo tempo que Trump volta a agitar o espantalho da “mudança de regime” na Venezuela. À hora a que escrevo, os EUA já apreenderam dois petroleiros venezuelanos sem explicação plausível — a não ser que se leve a sério uma publicação destrambelhada de Trump, na sua rede social, onde acusa a Venezuela de ter “roubado” o “nosso” petróleo e anuncia a ação americana como se estivesse a proteger bens americanos.

Esta nova forma de pirataria internacional é sustentada pela maior concentração naval na região desde a crise dos mísseis de Cuba, com cerca de 15 mil militares, entre marinheiros e marines, nas imediações da Venezuela. E, como é sempre preciso vender a força como virtude, o tráfico de droga faz de arma moral aquilo que antes eram as “armas de destruição maciça” no Iraque. A solidez e credibilidade são as mesmas. Pouco importa que a Venezuela não seja, hoje, o epicentro do narcotráfico internacional e que, na mesma semana, Trump tenha concedido um perdão judicial ao ex-presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández, condenado a 45 anos de prisão por ter feito entrar 400 toneladas de cocaína nos EUA.

O que está a acontecer na Venezuela, como a tentativa de acordo na Ucrânia com compensações financeiras para os EUA, é extorsão económica. Daqui a um ano pode ser a Gronelândia, cobiçada pelos recursos e pela vantagem geoestratégica. E se a Europa acredita que o respeito pelos “aliados” é o travão natural para esta lógica de expansão e pilhagem, então estamos pior do que pensamos.

Há demasiados europeus a falar do “Ocidente” como se a história fosse um contrato. Trump não é uma excentricidade passageira, é uma clarificação brutal. Não vivem mais no passado os que olham para a Rússia como se ainda fosse soviética do que os que tratam os EUA como aliados da Europa e, mais extraordinário, guardiões da democracia, da liberdade e do direito internacional. A Europa conhece bem o “Ocidente” de que Trump fala, porque esteve na vanguarda dos seus horrores. Trump e Putin são aliados nos valores e nos objetivos. Quanto mais tarde percebermos pior.»


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