25.1.25
No mundo como está, precisamos de gente dura e não de gente mole
Paolo Ucello, "S. Jorge e o Dragão", 1458
«A bispa de Washington deu-nos o melhor exemplo de como responder a Trump. Após uma semana de sorrisinhos e de palmas dadas por quem, um segundo antes e um segundo depois, está a ser insultado, depois de uma avalanche de “adaptação” à força e à violência, entre o entusiasmo escondido e o medo, do alto do púlpito, sabendo que está a falar com um hipócrita religioso, lembrou-lhe o shakespeariano “milk of human kindness”. E ele ficou furioso e, no meio da noite, veio insultar a bispa. A senhora bispa, falando do púlpito dos valores que as Igrejas da Reforma têm sabido defender muito melhor do que a Igreja Católica Apostólica Romana, lembrou-lhe os mais fracos, os que ninguém protege, os que estão com medo e com todas as razões para ter medo.
Por cá, na novilíngua das redes, no X de Elon Musk, Montenegro escreveu a @realDonaldTrump, que eu não sei quem é, dado que pelos vistos há vários “irreais”:
Parabéns, (…), pela tomada de posse como o 47.º Presidente dos Estados Unidos da América! Como amigos, parceiros e aliados, [aqui está uma bandeirinha] e [aqui está outra bandeirinha] partilham valores e interesses sólidos. Reitero o meu empenho em trabalhar em estreita colaboração em prol dos nossos objetivos comuns. Uma parceria transatlântica forte é mais importante do que nunca.
Reparem no detalhe do ponto de exclamação.
Marcelo foi mais moderado e lembrou aqueles que podem ser das primeiras vítimas do pogrom trumpista:
Portugal tem uma longa e profícua relação com os EUA, que continuará a cultivar no interesse dos dois povos, incluindo da extensa comunidade de portugueses e lusodescendentes naquele país e do crescente número de norte-americanos no nosso país. O reforço da relação transatlântica continuará a ser um objetivo comum e uma prioridade para Portugal.
Sim, é uma lição cumprir com os procedimentos institucionais, perante um malcriado narcisista, mas não precisam de mostrar os dentes e fazer sorrisinhos como Obama e outros na cerimónia da posse, ou colocar pontos de exclamação como se fosse muito entusiasmante a eleição.
Trump, através de um qualquer subalterno MAGA no Departamento de Estado (ele está a fazer uma “limpeza” na administração americana, como estava previsto no Projecto 2025, que empalidece o nosso débeis “jobs for the boys”), deve ter mandado agradecer aos espanhóis de segunda, porque ele não sabe nada de Portugal. A sua verdadeira resposta foi permitir que Ventura por lá andasse na investidura, a ver se tirava uma foto com Trump sem o conseguir. E quanto à “relação transatlântica” ou “parceria transatlântica”, ela significa hoje, primeiro que tudo, aquilo que ele não quer, a começar pelo apoio inequívoco à Ucrânia na sua defesa face ao invasor. E estão a falar com o homem que quer destruir a “parceria transatlântica” e que quer que os europeus da NATO gastem mais, mas não é para a sua defesa, é para aumentar as compras de armamento americano.
Só o entusiasmo de terem a seu lado Trump naquilo que eles mesmos combatem – os direitos das mulheres, a comunidade LGBT, os imigrantes que procuram, como os portugueses nos anos 60, melhorar a sua vida, o direito internacional e a Constituição americana – e a falta de coluna para dizer que são dos que se “adaptam” a tudo é que impede os que agora se põem ao seu lado de ver que aquele narcisismo patológico é demasiado perigoso para todos, para o mundo.
Tal como a complacência de alguns dos nossos especialistas de geopolítica que teorizam aquilo que não é racional em Trump, dando-lhe grandes nomes e desenvolvendo agora a teoria do “transaccionável”. No fundo, dizem, Trump o que quer é fazer negócios, dá uma coisa em troca de outra e, assente nisso, é razoável. Convinha saber qual a natureza da “transacção”, o que ele quer que se dê, em troca do que dá, e colocar isso no quadro de valores que é suposto ser o fundamento humanista daquilo a que chamamos “civilização”, sabendo bem como é precário e contraditório, tudo o que vai com o nome: democracia, direitos, liberdade, igualdade, fraternidade. Foi o que lhe lembrou a bispa.
Trump quer acabar com todas as guerras inconvenientes e depois apoiar “até ao fim” Israel no seu massacre de palestinianos, e na conquista de mais território, mas a sua motivação é apenas a glória pelo poder do seu “mando”. E não acaba nada. O que ele pensa fazer no “primeiro dia”, que já vai numa semana, é telefonar a Putin e “mandá-lo” fazer um cessar-fogo, e depois dar-lhe-á em “negociações” o que ele quer. Se não, lá vêm as tarifas. Primeiro, manda, é a “paz pela força”, e, depois, concede aos mais fortes que ele reconhece como seus pares e admira como Putin.
É por isso que os moles são o melhor terreno para estes tempos de violência. Pelo contrário, gente dura não é gente que mimetiza a violência, a agressividade, o radicalismo do “outro” lado. É gente fiel aos princípios que fizeram o pouco de “civilização” que ainda sobra nestes tempos de ascensão do Inferno: humanismo, direitos humanos, compreensão activa pelos que estão a perder o pouco que já tinham, apoio a quem luta pela justiça social, apoio intransigente ao cumprimento dos deveres pelos poderosos que os violam impunemente, denúncia dos abusadores, na sua cara e em tempo real. O que é difícil, porque muitos são anónimos e têm a “coragem” dos anónimos e porque a comunicação social só faz directos para a irrelevância e é mau negócio estar contra os “tempos”.
Sigamos, pois, o melhor exemplo de coragem para estes dias, o da bispa de Washington, Mariann Edgar Budde.»
24.1.25
Garrafões?
Garrafão «Crisântemos», em vidro transparente, pé soprado cinzento-fumado. Foi exposto na "Exposição da Escola de Nancy", Paris 1903.
Émile Gallé.
Daqui.
A nossa simpatia pelo Diabo
«Este é o elefante na sala da sociedade dita civilizada, ocidental bem-pensante, tão moderna, tão moderna que nunca pensou na hipótese de a humanidade querer algum dia voltar para trás. Os ingénuos que acharam que o progresso é irreversível, e que o progresso é, aliás, uma palavra da qual são donos. Um dos diabos desta história que só agora começa de facto é a democracia, imagine-se. Trump orquestrou um insano assalto ao Capitólio, é certo. Mas está hoje onde está porque foi levado nos doces e fortes ombros da democracia. Está lá porque foram mais os que o querem lá do que os outros. Ponto. Portanto fomos nós. Se fomos nós que um dia matámos os Kennedys, como acusa e lembra a canção dos Stones, fomos também nós a eleger Donald e os filhotes de Trump que leva debaixo do braço para semear uma nova ordem.»
Rodrigo Guedes de Carvalho
O movimento deixou de se movimentar
«A antecâmara da eleição do próximo Presidente da República tem proporcionado momentos interessantes. O almirante Gouveia e Melo anda ocupado a rejeitar apoios, todos os outros potenciais candidatos andam a tentar desesperadamente obtê-los. A estratégia correcta é, ao que tudo indica, a do almirante, que parece ter compreendido melhor do que ninguém a natureza do cargo ao qual se vai candidatar, e o momento em que se candidata. Fartos do circunspecto Cavaco, os portugueses elegeram o festivo Marcelo. E agora, fartos do festivo Marcelo, parecem inclinados para eleger outro senhor circunspecto. O almirante tem circunspecção para oferecer. Além disso, percebeu também que o Presidente da República é, em grande medida, um símbolo. Ou seja, o equivalente político de um bibelô. E o trabalho do bibelô é estar sossegado a enfeitar. O almirante sabe estar sossegado e tem potencial estético para ser muito competente a enfeitar. Por isso, tem optado inteligentemente por falar o menos possível. E vê-se que está a trabalhar num sorriso que acompanha com as sobrancelhas em posição de acento circunflexo, expressão que transmite simultaneamente tranquilidade e altivez. Não precisa do apoio de ninguém, e foi por isso que esta semana rejeitou o apoio do movimento que o apoiava — que, obedientemente, deixou de se movimentar.
Entretanto, os outros pré-candidatos vão investindo numa táctica desastrosa, que consiste em dizer o que pensam. Em contraponto, sempre que se vê forçado a falar, o almirante tem o cuidado de desviar todas as conversas para a única área que domina, que é a tropa. Política internacional? Os outros países têm tropas com determinadas características, e nós devíamos ter uma tropa semelhante, mais moderna. Jovens? O serviço militar obrigatório tem vantagens medicinais, sobretudo se for diferente do que era, e passar a ser moderno — o que seduz quem conhece o modelo anterior, do qual ninguém gostava especialmente, e cativa quem não conhece o modelo novo, porque o almirante descreve-o apenas como moderno, que é igual a não dizer nada. Saúde? Ele interveio com sucesso na saúde, o que demonstra sem margem para dúvidas que a tropa faz bem, sobretudo se for moderna.
O grande problema do almirante vai surgir quando ele verificar que o Presidente da República, apesar de ser o comandante supremo das Forças Armadas, não comanda supremamente mais nada. Tem apenas um grande poder, que é o de dissolver a Assembleia, manobra que ninguém costuma apreciar. É mandatado para estar quieto, razão pela qual Marcelo teve tantas dificuldades de adaptação ao cargo.»
23.1.25
23.01.1928 – Jeanne Moreau
Jeanne Moreau chegaria hoje aos 97 e morreu em Julho de 2017, depois de uma carreira muito longa de actriz, realizadora e cantora, iniciada em 1950, e uma filmografia impressionante com cerca de 130 títulos. Trabalhou com uma lista notável de realizadores, entre os quais Luis Buñuel, Wim Wenders, Michelangelo Antonioni, Orson Welles, François Truffaut, Louis Malle, também Manoel de Oliveira e não só.
A recordar a sua participação em Gebo et l’Ombre, de Manoel de Oliveira (2012), onde faz o papel de Candidinha.
Momentos inesquecíveis? Entre outros, Le Tourbillon, em Jules et Jim de François Truffaut:
Aqui, num belíssimo duo com Maria Bethania:
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Invocar a liberdade de expressão em vão
«A liberdade de expressão não permite discriminar ou perseguir, nem é sinónimo de circulação de mensagens de ódio e mentiras com consequências para a vida em sociedade. Dito assim parece evidente, mas a normalização da agenda de Donald Trump, Elon Musk ou Mark Zuckerberg corre o risco de nos fazer esquecer princípios basilares inscritos na Constituição. À força de tanto ser repetido, o argumento de que a verificação de conteúdos é censura ameaça tornar-se verdadeiro e a liberdade de expressão é invocada para justificar decisões arbitrárias e perigosas.
No seu primeiro dia de mandato, Trump iniciou o processo para retirar os EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS), numa ação executiva justificada com as disparidades nos níveis de contribuições e com a prioridade dada a organismos nacionais. Caso venha a concretizar-se, a decisão terá impacto em todo o mundo. Não apenas pela redução direta de verbas na investigação e combate a doenças como a SIDA ou a malária, mas porque também a celeridade de alertas em eventuais pandemias ficará comprometida e os vírus não conhecem fronteiras.
Em que medida esta ação executiva do recém-empossado presidente dos EUA entronca no tema da liberdade de expressão? Basta recordarmos as restrições de que Trump foi alvo nas redes sociais devido a declarações sobre vacinas para termos a resposta. A negação da ciência e da cooperação encaixa com naturalidade numa forma de pensamento errática, autoritária e baseada em convicções desprovidas de fundamento, lógica ou factualidade.
Tendo ao seu alcance mecanismos para impor um modelo de governação que dispensa a verdade, Trump e o seu exército conseguem multiplicar nas mais diversas áreas uma visão arbitrária do mundo, em que uma ideia se basta a si própria e não carece de fundamentação. E não respeita, sequer, os limites impostos pela legislação. Porque é disso que se trata quando se admite que discriminar alguém com base na raça ou na orientação sexual cabe no princípio da liberdade de expressão. Ou quando se relativiza a evidência provocatória do gesto de Musk na tomada de posse. Não há exagero quando se insiste na urgência de preservar os valores democráticos. Perigoso é permitir que se invoque a liberdade em vão, sem se medir o preço de abrir a porta à discricionariedade e ao ódio.»
22.1.25
Saudades de Paris
Porte Dauphine, uma das entradas Arte Nova do metro, em ferro fundido e vidro. Paris, cerca de 1900.
Hector Guimard.
Daqui.
22.01.1961 – O assalto ao Santa Maria
Há 64 anos, algures no mar das Caraíbas, doze portugueses e onze espanhóis, comandados por Henrique Galvão, assaltaram um navio em que viajavam cerca de 1.000 pessoas, entre passageiros e tripulantes, e protagonizaram aquela que foi, muito provavelmente, a mais espectacular das acções contra a ditadura de Salazar.
Mesmo sem atingirem os objectivos definidos – chegar a Luanda, dominar Angola e aí instalar um governo provisório que acabasse por derrubar as ditaduras na península ibérica – conseguiram chamar a atenção do mundo inteiro que noticiou, com estrondo, a primeira captura de um navio por razões políticas, no século XX. (Em Portugal, julgo que as primeiras notícias só foram publicadas no dia 24!)
Os aliados da NATO não reagiram como Salazar pretendia ao acto de «pirataria» e só cinco dias mais tarde é que a esquadra naval americana localizou o navio. Depois de várias peripécias e negociações, o Santa Maria chegou ao Recife em 2 de Fevereiro e os revolucionários receberam asilo político.
Volto à questão da repercussão internacional, que foi muito grande, porque a vivi pessoalmente. Estudava então em Lovaina, na Bélgica, e acordaram-me às primeiras horas da manhã para me dizerem que um navio português tinha sido assaltado por piratas, em pleno alto mar. Entre a perplexidade generalizada e o gozo («ces portugais!…»), os poucos portugueses que então lá estudávamos passámos horas colados a roufenhos aparelhos de rádio, sem conseguirmos perceber, durante parte do dia, o que estava concretamente em jogo, já que não eram identificados os piratas nem explicados os motivos da aparatosa aventura. Quando, já bem tarde, foi referido o nome de Henrique Galvão, e descrito o carácter político dos factos, respirámos fundo e pudemos finalmente dar explicações aos nossos colegas das mais variadas nacionalidades. Houve festa e brindou-se à queda da ditadura em Portugal – para nós iminente a partir daquele momento, sem qualquer espaço para dúvidas...
A ditadura não caiu mas levou um abanão. O assalto ao Santa Maria foi o pontapé de saída de um annus horribilis para Salazar, ano que iria terminar com a anexação de Goa, Damão e Diu. (Pelo meio, em Fevereiro, começou a guerra colonial...)
Vivemos hoje numa outra galáxia, tudo isto parece quixotesco e irreal? Mas não foi.: Henrique Galvão, Camilo Mortágua e companheiros foram «os nossos heróis» daquele início da década de 60.
A ler: O desvio do Santa Maria e o princípio da Guerra do Ultramar.
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Trump: capitulação nos últimos dias da República
«É interessante como a normalidade garantida por quem, respeitando a democracia e as instituições, passou o testemunho sem qualquer sobressalto quase fez esquecer que o homem que tomou posse na segunda-feira tentou, há quatro anos, um golpe contra a democracia. Que esta tomada de posse só foi pacífica porque ele venceu. E que a próxima, daqui a quatro anos, só o será se ele voltar a vencer.
A vontade de arrefecer o clima político é tal que todos estão dispostos a esquecer o que não é passado, é presente e futuro. Alguém que recusa a democracia e só aceita o voto popular se vencer concentra, a partir de hoje, um poder inimaginável. E um dos seus primeiros gestos foi perdoar os que assaltaram o Capitólio, mostrando que a única coisa que mudou é que desta vez não precisa de tentar tomar o poder pela força. O que se celebrou na segunda-feira, não foi a saudável transferência pacífica de poder. Foi a transferência condicionalmente pacífica de poder para um homem que, em qualquer democracia saudável, estaria preso. Mas quando todas as instituições se mostram frágeis perante estes autoritários, resta-nos a segurança das liturgias.
No entanto, o ambiente é muitíssimo diferente a 2016. Dir-se-ia que parecem estar menos coisas em risco. O que vimos, lemos e ouvimos foi uma total normalização de Donald Trump. Uns terão finalmente aderido à sua retórica, outros já não se chocam com ela e, não se chocando, já não reagem. E é nestes momentos, e não contra heroicas resistências, que os autoritários e as suas ideias se impõem.
Quem esperava sinais de pacificação teve a resposta no discurso de tomada de posse, o menos errático dos três que fez no dia 20. Nem o Canal do Panamá ficou de fora. A normalização de Trump não se faz pela sua adaptação. É o mundo que se adapta a ele. É por isso que conquista votos e dá esperança. As pessoas sentem que ele molda mesmo o futuro. Mesmo assim, no entanto, não faltou quem sublinhasse a moderação da sua intervenção. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. O segredo é ir esticando o limite o extremismo fica a parecer moderado.
Nas ordens executivas que assinou encontramos o triângulo do autoritarismo reacionário e neoliberal. A recusa de políticas ambientais que põem risco o lucro (nisso, Musk tem de partilhar o seu poder com outros milionários), acelerando a agressão ao planeta. A deportação de imigrantes, que não tem de ter a dimensão anunciada (deportar mais de 4% da população é financeiramente incomportável e teria um efeito devastador na economia), porque a função é outra: criar um ambiente de estado de exceção permanente e alimentar o inimigo interno, dois pilares de qualquer poder com pretensões autoritárias. E, como reação à suposta ditadura woke, perseguir minorias e impor a uniformização moral para que se aceite uma “normalidade” de Estado. Como sempre, tudo em nome da liberdade (dos mais fortes) e contra a elite (que se sentou na segunda filha da tomada de posse e o apoiou nesta eleição).
No essencial, nada disto é novo. Novo é o poder de Trump. Não só por ter conseguido a eleição depois do que aconteceu a 6 de janeiro de 2021. Não só por ter, para além do Senado e da Câmara dos Representares, uma inédita inimputabilidade oferecida pelo Supremo. Mas, acima de tudo, por ter ao seu lado, não apenas os homens mais ricos do mundo, mas aqueles que, através do controlo das plataformas tecnológica (e da Inteligência Artificial), moldam e moldarão as opiniões públicas e a própria noção de verdade. Os engenheiros das almas do século XXI.
O que aconteceu na segunda-feira não foi a repetição de 2016. Foi uma mudança de regime. Nos EUA e em todo o Ocidente. No mundo. Os tímidos limites que a democracia ainda impunha aos mais poderosos cairão nos próximos anos. Para gozar essa nova “liberdade”, só têm de se vergar perante o imperador que deixou de ter limites institucionais.»
21.1.25
Quem não gostaria de viver numa casa assim?
Detalhes da fachada colorida de um prédio Arte Nova em Amsterdão, 1896.
Arquitecto : Francois Marie Joseph Caron.
Daqui. (Clicar neste link para ver mais detalhes.)
Os super-ricos são os novos donos disto tudo
«Os homens mais ricos dos EUA tomaram posse do país. Nunca uma administração teve tantos multimilionários, nunca os homens mais ricos do mundo prestaram tanta vassalagem a um presidente eleito e nunca foram tão perigosos.
Há muito em comum entre todos eles. Donald Trump escolheu quem escolheu porque financiaram a sua campanha, defenderam as ideias mais absurdas na Fox TV ou partilharam o mesmo ódio pela defesa de princípios como os da diversidade, equidade ou inclusão.
Embora o vocabulário do MAGA (Make America Great Again) se cinja às palavras meritocracia e tarifa, estas escolhas não foram feitas em função do mérito ou do conhecimento, mas sim em função da conta bancária e da fidelidade.
Donald Trump partilha várias crenças com os seus escolhidos, a começar pela regra simples de que tudo se vende e tudo se compra, o que tanto é válido para a ética e a dignidade como para o silêncio de uma actriz porno ou para a Gronelândia.
A imposição do dinheiro e da força como método de diplomacia, juntando fortunas e capacidade militar altamente destrutiva, tanto faz lembrar a compra do Alasca e o regresso ao expansionismo do século XIX como nos faz crer que esta será a ordem internacional que se segue a partir de hoje.
O regresso a uma ordem internacional deste tipo é o oposto do ordenamento internacional criado e exportado pelos EUA desde o final da Segunda Guerra Mundial, legitima a invasão russa da Ucrânia, a hipotética invasão chinesa de Taiwan ou qualquer outro desejo de expansão territorial, seja de quem for, com legitimidade ou não.
Donald Trump é um soberanista que só respeita a sua própria soberania, que não quer saber de mais ninguém, a não ser de si próprio e daqueles que concordam com ele, que não reconhece aliados e que aprecia mais autocratas do que democratas. O direito internacional vai ser interrompido por momentos.
O discurso da superioridade dos valores e da democracia (que justificaram até aqui o estatuto dos EUA no mundo e que caucionaram muitas das suas intervenções militares) vai ser substituído pela prática da política enquanto negócio sob coacção. A credibilidade ocidental, tão deteriorada com a hipocrisia dos dois pesos e duas medidas, em Gaza e na Ucrânia, está, definitivamente, comprometida.
Acresce que esta não é apenas a coligação dos super-ricos. É a coligação dos super-ricos da extrema-direita mais radical e perigosa, que negam a evidência das alterações climáticas, recusam a vacinação e o conhecimento científico, defendem a supremacia branca e masculina, censuram um ensino humanista e inclusivo ou ficam embevecidos sempre que escutam a palavra deportação. Não consta que morram de amores pela democracia, ou não a tivessem tentado derrubar há quatro anos.
Esta coligação estará disposta a exportar a receita boçal e regressiva, e não falta na Europa quem esteja disponível para a receber de braços abertos, mesmo que isso implique uma ingerência inaceitável nos assuntos dos seus estados.
Para a oligarquia que vai tomar conta dos EUA, uma expressão que estamos habituados a associar ao chamado terceiro mundo, não há qualquer conflito de interesse em apropriar-se do Estado para aumentar os lucros.
Este assalto ao Estado é mais eficaz do que o assalto da turba ao congresso. O aviso de Joe Biden quanto aos riscos da ausência de escrutínio e do impacto que esta oligarquia pode ter na ameaça à democracia dos EUA é um perigo real, mas o que tem preocupado a população é a deportação de imigrantes indocumentados e com antecedentes criminais.
Numa conjuntura de perda de influência do jornalismo, e da sua substituição por canais de distribuição de conteúdo mais desinformativos do que informativos, a menor relevância do escrutínio será um facto consumado. No primeiro mandato de Trump, a imprensa dos EUA resistiu e fortaleceu o seu papel. As instituições não cederam.
Neste segundo mandato, Trump concentra todo o poder, pelo menos até às eleições intercalares de 2026, e tem a seu lado os super-ricos que mandam no que vemos, lemos ou ouvimos. Nenhum deles tem qualquer compromisso com a liberdade de expressão, moderação ou pluralismo, expressões do século XX. Aquilo a que Elon Musk e Mark Zuckerberg chamam liberdade de expressão mais não é do que a ausência de qualquer cuidado ou responsabilidade pelas mentiras que irão propagar de forma deliberada.
Desta vez, Trump já sabe que nenhuma rede social irá suspender as suas contas, diga o que disser. A associação entre este presidente e esta espécie de quinto poder, sem regulação, vai exigir uma prova de vida do sistema democrático e uma prova de cidadania de cada um de nós. Contra os factos, haverá sempre uma mentira. E os super-ricos encarregar-se-ão de lhe garantir mais alcance.»
20.1.25
Amílcar Cabral foi assassinado num 20 de Janeiro
Foi no dia 20 de Janeiro de 1973 que Amílcar Cabral foi assassinado em Conacri. Tivesse a morte esperado um pouco mais e teria assistido ao 25 de Abril.
Nasceu na Guiné, em Bafatá, em 12 de Setembro de 1924, fez o liceu em Cabo Verde e veio mais tarde para Lisboa onde se licenciou em Agronomia. Em 1956 foi um dos fundadores do PAIGC, partido que, em Janeiro de 1963, declarou guerra contra o colonialismo de Portugal.
Destaco todo o Dossier Amílcar Cabral e, em especial, Aquele dia doloroso e trágico de 20 de Janeiro de 1973 (texto da intervenção de Pedro Pires no Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro", que decorreu nos dias 13 e 14 de Janeiro de 2023, em Lisboa), que se encontram no Memorial aos Presos e Perseguidos Políticos.
Também, este filme dirigido por Diana Andringa:
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20 de Janeiro de 2025 – Dia de Martin Luther King
O Dia de Martin Luther King Jr. é um feriado federal nos Estados Unidos, observado na terceira segunda-feira de Janeiro de cada ano.
Ironias de calendários, coincide este ano com a tomada de posse de um seu antípoda: Trump.
Nuno Teotónio Pereira
Nove anos sem ele.
A ler: um texto que escrevi quando chegou aos 90, com um brevíssimo resumo da sua biografia.
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Presidentes dos EUA
A tomada de posse de um presidente tem sempre lugar em 20 de Janeiro (a não ser que seja Domingo).
Em 1961 foi a vez de John Kennedy. Hoje ficamos com Trump.
Habitação: contra a mais grave crise, dose reforçada dos mesmos erros
«Não há volta a dar. Qualquer que seja o ângulo que usemos para olhar para a crise da habitação, o resultado é o mesmo: sendo um fenómeno global, em nenhum país europeu o aumento dos preços atinge a intensidade que tem entre nós. O aumento real dos preços da habitação em Portugal na última década é mais do dobro do registado nos países da OCDE e quatro vezes mais do que na Zona Euro.
Os dados foram compilados num detalhado estudo, publicado pela associação Causa Pública, (declaração de interesses: sou associado deste think-tank) que avalia as consequências da crise habitacional no desenvolvimento do país. “Na última década, entre 2013 e 2023, os preços da habitação em Portugal mais do que duplicaram (121%), o que representa um aumento real (acima da inflação) de 81%”, pode ler-se no estudo, coordenado por Guilherme Rodrigues, mestre em Economia pela Faculdade de Economia da Nova de Lisboa e que se tem especializado em políticas de cidades.
Se apenas três países viram os preços das casas crescer mais do que no nosso (Turquia, Islândia e Hungria), entre 2013 e 2023, nenhum país industrializado viu deteriorar tanto a acessibilidade habitacional como Portugal. É a relação entre salários e preço imobiliário que torna o nosso país num caso à parte.
Se era este o cenário analisado pelos autores do estudo, com dados de 2023, tudo indica que a situação se deteriorou em 2024. Coincidindo com a entrada em vigor das alterações legislativas impostas por Montenegro, o preço da habitação em Portugal cresceu 3,9% em apenas um trimestre, a maior subida em cadeia desde o início da série do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2009. Que esta dinâmica inflacionista esteja a acontecer com as taxas de juro em níveis historicamente altos, para os padrões históricos da Zona Euro, “sugere que o mercado imobiliário português, pelo menos nos últimos anos, mostra uma dinâmica de procura diferente da que se observa na maioria dos países desenvolvidos”, conclui Guilherme Rodrigues.
Para contextualizar o que aconteceu ao mercado imobiliário no nosso país, os autores deste estudo dão o exemplo da aquisição de uma casa em Portugal e outra em Espanha, que debate soluções para a sua crise de habitação, ambas adquiridas por cem mil euros em 2013. Dez anos passados, em 2023, a casa comprada em Portugal valia cerca de 221 mil euros (aumento de 121%) e a adquirida em Espanha 153 mil euros (aumento de 54%). São 68 mil euros de diferença, numa década, um relato esclarecedor sobre a dificuldade sentidas pelos jovens à procura de primeira casa ou por todas as famílias que, tendo casa própria, precisam de mudar de habitação ou de encontrar uma que acomode o crescimento da família.
Como recorda a Causa Pública, o desfasamento sem precedentes entre os preços da habitação e os salários tem impacto para lá dos evidentes custos sociais. No Barómetro da Habitação de novembro de 2023, 44% dos inquiridos ponderam antecipar uma mudança de país devido às dificuldades no acesso à habitação. O impacto do preço das casas no envelhecimento do país não se vê apenas pela fuga de cérebros, mas pelo adiamento ou desistência de ter filhos. No mesmo Barómetro, ficamos a saber que 64% dos inquiridos adiou a decisão de ter filhos por causa do preço das casas e 44% a de ter mais um filho.
Como devia ser evidente, não são os impostos que afastam os jovens do país (para emigrar para países onde a carga fiscal superior), mas o fosso crescente entre os salários praticados e o dinheiro necessário para comprar ou arrendar uma casa.
Os impactos sociais, demográficos e económicos desta crise para o futuro do país são devastadores. Os primeiros sinais, e que já se começam a sentir de forma notória, são os da degradação dos serviços públicos. Não é por acaso que é nas zonas onde o preço das casas mais subiu, como a Área Metropolitana de Lisboa e o litoral algarvio, que o Estado encontra maiores dificuldade em fixar profissionais essenciais, como professores: “119 dos 163 agrupamentos escolares com falta de professores encontram-se na Área Metropolitana de Lisboa”, pode ler-se no estudo da Causa Pública. Acontece o mesmo nas empresas que funcionam nas zonas de maior pressão demográfica.
O custo da habitação é um “imposto” escondido e regressivo, que transfere recursos das atividades produtivas e do Estado (por via de salários que cubram esta despesa) para atividades rentistas, de jovens para mais velhos.
A OPORTUNIDADE PERDIDA DA CONSTRUÇÃO PÚBLICA
A solução do novo governo para esta crise foi apostar num choque de procura, cortando impostos como o IMT e facilitando o empréstimo bancário para jovens até 35 anos. Os primeiros resultados, como já vimos, foram os esperados: aquecimento do mercado imobiliário, registando o maior aumento trimestral desde 2009.
A destruição das tímidas medidas de limitação do Alojamento Local, aprovadas pelo Governo anterior, diminui ainda mais a oferta de arrendamento nos principais centros turísticos, como Lisboa, Porto e Algarve. O regresso dos vistos gold, agora até para quem investe em criptomoedas, e das borlas fiscais para estrangeiros qualificados só vai agravar a situação em que o mercado já se mostra indiferente à subida dos juros e outras medidas de contenção de preços.
Até agora, Montenegro e Pinto Luz têm-se especializado em atirar gasolina para uma fogueira que já ia alta. A exceção foi o seu compromisso em aumentar o investimento na construção pública, uma medida essencial para garantir um aumento da oferta e regular preços. Num dos primeiros pacotes de medidas com que encheu os noticiários das primeiras semanas, o governo prometeu duplicar o número de casas a construir ou reabilitar inscritas no PRR. Em vez dos 26 mil fogos previstos até 2026, 59 mil até 2030, de forma a que seja atribuído apoio a todos os projetos que foram candidatados, ainda que já estejam fora do limite temporal do PRR.
Apesar de ainda não se ter percebido de onde virão os fundos e meios para pagar tamanho investimento, seria uma excelente notícia, mas os dados públicos do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) indicam que só um quarto das 59 mil casas serão novas. A aposta na reabilitação ou obras de recuperação, garantindo apenas 14 mil novas casas, limita um dos propósitos iniciais do programa, o anunciado crescimento do parque público habitacional de 2% para 5% do total de casas do país. Agora, de acordo com o IHRU, estas 59 mil casas não permitirão ir além de 2,6%. Para que se compreenda melhor a dimensão do nosso atraso, a média da OCDE está nos 7,1% e na União Europeia nos 8%.
Se se compreende a aposta na reabilitação nas obras financiadas pelo PRR – o prazo temporal para ter acesso a esses fundos sempre foi bastante apertado –, ela é estranha para investimentos que o primeiro-ministro anuncia até 2030. A oportunidade para expandir a oferta pública foi usada pelos municípios para recuperar o escassíssimo parque habitacional que gerem, mas que alguns deixaram quase ao abandono. Deixou de ser um investimento estrutural para garantir escala suficiente para regular preços, para ser uma despesa para manutenção do que já existe.
Serei o último a contestar a importância da manutenção dos bairros municipais, desde que isso não seja vendido como aumento da oferta pública para padrões europeus, garantindo uma capacidade de resposta social que hoje não temos. A manutenção dos bairros municipais devia sair do orçamento das autarquias, que recebem generosas contribuições fiscais do mercado imobiliários, como o IMT.
O cenário traçado pela Causa Pública, que anuncia mais dois estudos sobre a crise da habitação, é o de um país onde o preço do imobiliário está a hipotecar o seu futuro económico e o das suas gerações mais jovens. A resposta do Governo parece ser querer copiar todos os erros cometidos pelo Governo anterior, numa fase bastante menos avançada da crise de preços, reforçando a dose.
Deixo para outro texto o debate a que assistimos em Espanha, onde o governo mostrou alguma coragem, mas não tanta como parece nas parangonas.»
19.1.25
19.01.1942 - Nara Leão
Nara Leão chegaria hoje aos 83 e morreu, em 1989, com apenas 47. Estreou-se em 1963, mas a sua verdadeira consagração deu-se depois do golpe militar de 1964, em «Opinião», um espectáculo de crítica à repressão policial. Foi passando de musa da Bossa Nova a cantora de protesto.
Canções? Muitas, com destaque para «O Barquinho», «Com Açúcar e com Afecto» e a inesquecível interpretação de «A Banda» com Chico Buarque da Holanda.
E em 1966: ainda hoje como se fosse ontem.
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A Europa sozinha
«1. Uma mega-sondagem levada a cabo pelo European Council on Foreign Relations (ECFR) com a colaboração da Universidade de Oxford, divulgada na semana passada, traça um quadro realista, ainda que bastante assustador, do lugar da União Europeia no mundo de hoje e, sobretudo, no de amanhã. O inquérito chama-se precisamente “Alone in a Trumpian world: The EU and global public opinion after de US election”.
O instituto faz um bom resumo das conclusões do inquérito que envolveu 28 mil pessoas em 24 países, incluindo a China, Índia e Rússia, 11 dos quais da Europa (incluindo o Reino Unido e a Suíça). O inquérito revela que, em muitos países à volta do mundo que não fazem parte do Ocidente alargado, há bastante optimismo com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Nesses países, as opiniões públicas acreditam que o novo Presidente americano será bom para a paz e para a redução das tensões na Ucrânia, no Médio Oriente e nas relações entre Washington e Pequim. Em quase absoluto contraste, os aliados dos Estados Unidos na Europa e a Coreia do Sul estão bastante pessimistas em relação ao segundo mandato de Trump, admitindo que traga consigo um crescente enfraquecimento do Ocidente geopolítico. Os ucranianos, por seu lado, revelam-se um pouco mais optimistas sobre o fim da guerra, mas estão muito divididos sobre o compromisso que Trump está disposto a fazer com Moscovo.
O que o inquérito também revela é que o mundo olha para a Europa de forma bastante mais positiva do que os europeus olham para si próprios. Já os próprios europeus estão divididos sobre a melhor maneira de lidar com a nova Administração americana.
Nas conclusões do estudo, os seus três principais responsáveis –Timothy Garton Ash, Ian Krastev e Mark Leonard – aconselham os europeus a deixarem de se fixar na ordem liberal do pós-Guerra Fria, passando a concentrar os seus esforços na compreensão do novo mundo que aí vem e a encontrar nele oportunidades. É um bom conselho, difícil, no entanto, de seguir.
Os autores do estudo admitem que o entusiasmo com Trump no resto do mundo tenha que ver com a forma como normalmente se recebem os vencedores. Mas “estas atitudes calorosas podem arrefecer rapidamente, talvez em resultado da política de tarifas às importações ou então se falharem as expectativas sobre uma rápida resolução dos conflitos na Europa e no Médio Oriente.” Consideram, no entanto, que se trata de tendências mais profundas do que estas duas explicações: as opiniões públicas aceitam um mundo muito mais transaccional, como aquele que Trump diz defender. Sabemos que a valorização que fazem da ordem internacional liberal também não é a mesma. Contestam a hegemonia ocidental, com os seus valores dos direitos humanos e da democracia, que querem “impor” aos outros. Têm hoje um modelo alternativo ao modelo das economias de mercado que as democracias seguiram com resultados positivos para o seu desenvolvimento – o modelo chinês, que compatibiliza autocracia e capitalismo. Com o declínio relativo dos Estados Unidos, deixam de ser obrigados a tomar partido por um dos lados. Em 2023, lembram os autores, referindo-se ao último grande inquérito realizado pelo ECFR, os resultados já apontavam para um mundo “a la carte”, “no qual as grandes e as médias potências procuravam parceiros numa lógica transaccional para prosseguirem os seus interesses nacionais”. “Os casamentos monogâmicos da Guerra Fria passaram à História.”
Um dos exemplos que é dado para sublinhar esta nova ordem emergente é precisamente a guerra na Ucrânia, face à qual o Ocidente falhou no seu objectivo de isolar a Rússia, apesar da sua grosseira violação da Carta das Nações Unidas. Muitos países, conclui o estudo, não hesitam em exibir uma forte aceitação da Rússia e do seu comportamento imperial como um aliado ou um parceiro necessário. Diz o estudo que o número de pessoas na China e na Índia que consideram que a Rússia é um aliado do seu país subiu ligeiramente desde 2023. Até na América, a simpatia pela Rússia aumentou, embora se mantenha uma ampla opinião desfavorável.
2. Outro dado interessante sobre o mundo para onde caminhamos: em países como a China, Índia, África do Sul, Arábia Saudita ou Turquia, uma maioria espera que a Rússia aumente a sua influência global, validando de algum modo o recurso à força para alargar o seu domínio. Mais preocupante ainda, é também esta a opinião de quase metade da população do Brasil e da Indonésia, duas grandes democracias tradicionalmente próximas dos Estados Unidos. O que não que dizer que a maioria do resto do mundo não continue a ver a América como uma superpotência – a sua economia ainda é, em termos reais, 26% da riqueza produzida no mundo e o seu gigantesco mercado continua a ser insubstituível –, mesmo que uma maioria também espere que a China venha a ser um dia a mais poderosa potência do mundo. As excepções são a Ucrânia, Índia, Coreia do Sul, para além da própria América. Democracias que contam com os Estados Unidos para a sua defesa ou que rivalizam directamente com a China.
Outro lado preocupante do inquérito, segundo os seus autores: “Russos e chineses estão muito mais unidos no mútuo apreço do que os europeus e americanos (...)” o que faz da dupla Pequim-Moscovo “uma rara ‘entente cordiale’ na presente política global”.
Do lado de cá, pelo contrário, apenas um em cada cinco europeus dos países inquiridos vê os Estados Unidos como um “aliado”, com uma queda acentuada desde o inquérito de 2023. O Reino Unido é, curiosamente, um dos mais pessimistas a este respeito. Felizmente para nós, mantém-se bastante elevada a percentagem de americanos que continua a ver a Europa como um aliado.
3. São estas a grandes tendências que podem vir a prefigurar o mundo de amanhã, na véspera de Trump entrar na Casa Branca levando consigo uma visão das relações internacionais que apenas pode vir a acelerá-las. Os europeus parecem estar conscientes do desafio, ainda que no pior momento possível. Quando a sua segurança está directamente ameaçada por uma Rússia imperial e bélica. Quando estão a perder terreno nos grandes equilíbrios económicos mundiais e na corrida às novas tecnologias. Principalmente, quando crescem os sinais de desunião entre os seus países, numa altura em que a união seria a sua maior força. Não é que, no geral, não saibam os riscos que enfrentam. Já lá vai o tempo em que a Europa acreditava que o mundo corria na sua direcção e que tudo se resumia à economia e aos acordos de comércio com outras regiões do mundo. O problema é que não se prepararam para uma realidade internacional muito mais adversa e, sobretudo, não estão preparados para enfrentá-la sem a protecção americana a que se habituaram depois da II Guerra e no pós-Guerra Fria.
Têm um guião perfeito para sair da sua letargia económica, que lhes foi oferecido por Mario Draghi a pedido de Von der Leyen. Parece que preferem ignorá-lo, em primeiro lugar porque a Alemanha está mergulhada numa crise interna que não a deixa mudar em função do novo mundo em que vive. Mantém os tiques do passado. Arrasta os pés. Não tem uma ideia sobre a Europa de que precisa, nem sequer com a ameaça russa ao pé da porta.
4. A chegada de Trump volta a colocar em cima da mesa um conceito muito debatido: a autonomia estratégica. Dispensável quando a solidez da aliança transatlântica e a NATO protegiam os europeus. Indispensável quando a América está a entrar numa nova era que se reflectirá no mundo inteiro e, em primeiro lugar, na vida dos seus aliados, palavra sem significado para o novo Presidente.
“A autonomia estratégica pode por vezes perecer um conceito abstracto, quase como desenvolvido em laboratório”, diz Almut Moller, que dirigiu desde 2015 até recentemente delegação do ECFR em Berlim. No entanto, prossegue, numa entrevista publicada pelo site Social Europe, este conceito está profundamente enraizado nas mudanças que se verificam no mundo real. “A esperança de que a configuração global reflectia de forma natural os interesses da União Europeia e dos seus Estados-membros está a ser contestada já há bastante tempo.” Em 2025, o mundo coloca à Europa sérias ameaças existenciais, como a guerra na Ucrânia prova, expondo as suas inúmeras vulnerabilidades. A eleição de Trump obriga a Europa a ter de enfrentar um aliado “que, algumas vezes, pode revelar-se abertamente maligno, imprevisível e agir com enorme rapidez.” Moller adverte que não é apenas sob o ponto de vista militar que a Europa tem de adquirir alguma autonomia. “É sobre segurança económica, capacidade tecnológica e capacidade de agir rapidamente num mundo instável.” O problema, como refere, é que o sentimento de unidade colectiva – o “nós” europeu – está sob enorme pressão, tornando os consensos estratégicos mais difíceis de conseguir.»
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