19.1.25

A Europa sozinha

 


«1. Uma mega-sondagem levada a cabo pelo European Council on Foreign Relations (ECFR) com a colaboração da Universidade de Oxford, divulgada na semana passada, traça um quadro realista, ainda que bastante assustador, do lugar da União Europeia no mundo de hoje e, sobretudo, no de amanhã. O inquérito chama-se precisamente “Alone in a Trumpian world: The EU and global public opinion after de US election”.

O instituto faz um bom resumo das conclusões do inquérito que envolveu 28 mil pessoas em 24 países, incluindo a China, Índia e Rússia, 11 dos quais da Europa (incluindo o Reino Unido e a Suíça). O inquérito revela que, em muitos países à volta do mundo que não fazem parte do Ocidente alargado, há bastante optimismo com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Nesses países, as opiniões públicas acreditam que o novo Presidente americano será bom para a paz e para a redução das tensões na Ucrânia, no Médio Oriente e nas relações entre Washington e Pequim. Em quase absoluto contraste, os aliados dos Estados Unidos na Europa e a Coreia do Sul estão bastante pessimistas em relação ao segundo mandato de Trump, admitindo que traga consigo um crescente enfraquecimento do Ocidente geopolítico. Os ucranianos, por seu lado, revelam-se um pouco mais optimistas sobre o fim da guerra, mas estão muito divididos sobre o compromisso que Trump está disposto a fazer com Moscovo.

O que o inquérito também revela é que o mundo olha para a Europa de forma bastante mais positiva do que os europeus olham para si próprios. Já os próprios europeus estão divididos sobre a melhor maneira de lidar com a nova Administração americana.

Nas conclusões do estudo, os seus três principais responsáveis –Timothy Garton Ash, Ian Krastev e Mark Leonard – aconselham os europeus a deixarem de se fixar na ordem liberal do pós-Guerra Fria, passando a concentrar os seus esforços na compreensão do novo mundo que aí vem e a encontrar nele oportunidades. É um bom conselho, difícil, no entanto, de seguir.

Os autores do estudo admitem que o entusiasmo com Trump no resto do mundo tenha que ver com a forma como normalmente se recebem os vencedores. Mas “estas atitudes calorosas podem arrefecer rapidamente, talvez em resultado da política de tarifas às importações ou então se falharem as expectativas sobre uma rápida resolução dos conflitos na Europa e no Médio Oriente.” Consideram, no entanto, que se trata de tendências mais profundas do que estas duas explicações: as opiniões públicas aceitam um mundo muito mais transaccional, como aquele que Trump diz defender. Sabemos que a valorização que fazem da ordem internacional liberal também não é a mesma. Contestam a hegemonia ocidental, com os seus valores dos direitos humanos e da democracia, que querem “impor” aos outros. Têm hoje um modelo alternativo ao modelo das economias de mercado que as democracias seguiram com resultados positivos para o seu desenvolvimento – o modelo chinês, que compatibiliza autocracia e capitalismo. Com o declínio relativo dos Estados Unidos, deixam de ser obrigados a tomar partido por um dos lados. Em 2023, lembram os autores, referindo-se ao último grande inquérito realizado pelo ECFR, os resultados já apontavam para um mundo “a la carte”, “no qual as grandes e as médias potências procuravam parceiros numa lógica transaccional para prosseguirem os seus interesses nacionais”. “Os casamentos monogâmicos da Guerra Fria passaram à História.”

Um dos exemplos que é dado para sublinhar esta nova ordem emergente é precisamente a guerra na Ucrânia, face à qual o Ocidente falhou no seu objectivo de isolar a Rússia, apesar da sua grosseira violação da Carta das Nações Unidas. Muitos países, conclui o estudo, não hesitam em exibir uma forte aceitação da Rússia e do seu comportamento imperial como um aliado ou um parceiro necessário. Diz o estudo que o número de pessoas na China e na Índia que consideram que a Rússia é um aliado do seu país subiu ligeiramente desde 2023. Até na América, a simpatia pela Rússia aumentou, embora se mantenha uma ampla opinião desfavorável.

2. Outro dado interessante sobre o mundo para onde caminhamos: em países como a China, Índia, África do Sul, Arábia Saudita ou Turquia, uma maioria espera que a Rússia aumente a sua influência global, validando de algum modo o recurso à força para alargar o seu domínio. Mais preocupante ainda, é também esta a opinião de quase metade da população do Brasil e da Indonésia, duas grandes democracias tradicionalmente próximas dos Estados Unidos. O que não que dizer que a maioria do resto do mundo não continue a ver a América como uma superpotência – a sua economia ainda é, em termos reais, 26% da riqueza produzida no mundo e o seu gigantesco mercado continua a ser insubstituível –, mesmo que uma maioria também espere que a China venha a ser um dia a mais poderosa potência do mundo. As excepções são a Ucrânia, Índia, Coreia do Sul, para além da própria América. Democracias que contam com os Estados Unidos para a sua defesa ou que rivalizam directamente com a China.

Outro lado preocupante do inquérito, segundo os seus autores: “Russos e chineses estão muito mais unidos no mútuo apreço do que os europeus e americanos (...)” o que faz da dupla Pequim-Moscovo “uma rara ‘entente cordiale’ na presente política global”.

Do lado de cá, pelo contrário, apenas um em cada cinco europeus dos países inquiridos vê os Estados Unidos como um “aliado”, com uma queda acentuada desde o inquérito de 2023. O Reino Unido é, curiosamente, um dos mais pessimistas a este respeito. Felizmente para nós, mantém-se bastante elevada a percentagem de americanos que continua a ver a Europa como um aliado.

3. São estas a grandes tendências que podem vir a prefigurar o mundo de amanhã, na véspera de Trump entrar na Casa Branca levando consigo uma visão das relações internacionais que apenas pode vir a acelerá-las. Os europeus parecem estar conscientes do desafio, ainda que no pior momento possível. Quando a sua segurança está directamente ameaçada por uma Rússia imperial e bélica. Quando estão a perder terreno nos grandes equilíbrios económicos mundiais e na corrida às novas tecnologias. Principalmente, quando crescem os sinais de desunião entre os seus países, numa altura em que a união seria a sua maior força. Não é que, no geral, não saibam os riscos que enfrentam. Já lá vai o tempo em que a Europa acreditava que o mundo corria na sua direcção e que tudo se resumia à economia e aos acordos de comércio com outras regiões do mundo. O problema é que não se prepararam para uma realidade internacional muito mais adversa e, sobretudo, não estão preparados para enfrentá-la sem a protecção americana a que se habituaram depois da II Guerra e no pós-Guerra Fria.

Têm um guião perfeito para sair da sua letargia económica, que lhes foi oferecido por Mario Draghi a pedido de Von der Leyen. Parece que preferem ignorá-lo, em primeiro lugar porque a Alemanha está mergulhada numa crise interna que não a deixa mudar em função do novo mundo em que vive. Mantém os tiques do passado. Arrasta os pés. Não tem uma ideia sobre a Europa de que precisa, nem sequer com a ameaça russa ao pé da porta.

4. A chegada de Trump volta a colocar em cima da mesa um conceito muito debatido: a autonomia estratégica. Dispensável quando a solidez da aliança transatlântica e a NATO protegiam os europeus. Indispensável quando a América está a entrar numa nova era que se reflectirá no mundo inteiro e, em primeiro lugar, na vida dos seus aliados, palavra sem significado para o novo Presidente.

“A autonomia estratégica pode por vezes perecer um conceito abstracto, quase como desenvolvido em laboratório”, diz Almut Moller, que dirigiu desde 2015 até recentemente delegação do ECFR em Berlim. No entanto, prossegue, numa entrevista publicada pelo site Social Europe, este conceito está profundamente enraizado nas mudanças que se verificam no mundo real. “A esperança de que a configuração global reflectia de forma natural os interesses da União Europeia e dos seus Estados-membros está a ser contestada já há bastante tempo.” Em 2025, o mundo coloca à Europa sérias ameaças existenciais, como a guerra na Ucrânia prova, expondo as suas inúmeras vulnerabilidades. A eleição de Trump obriga a Europa a ter de enfrentar um aliado “que, algumas vezes, pode revelar-se abertamente maligno, imprevisível e agir com enorme rapidez.” Moller adverte que não é apenas sob o ponto de vista militar que a Europa tem de adquirir alguma autonomia. “É sobre segurança económica, capacidade tecnológica e capacidade de agir rapidamente num mundo instável.” O problema, como refere, é que o sentimento de unidade colectiva – o “nós” europeu – está sob enorme pressão, tornando os consensos estratégicos mais difíceis de conseguir.»


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