Texto de Adolfo Maria, recebido através de Diana Andringa:
In Memoriam de Victória de Almeida e Sousa
Angola perdeu hoje mais uma das suas valorosas filhas. Em 3 de Junho de 2015, faleceu em Lisboa, após complicações pós-operatórias, Victória de Almeida e Sousa, nascida em Luanda, em 13 de Agosto de 1936. Era filha de Agnette de La Vieter de Almeida e Sousa, e João de Almeida e Sousa, conhecido nos meios luandenses por "Cachimbinha".
Em 1954, a Tó – tinha este nome para nós, amigos e familiares – concluiu no Liceu Salvador Correia de Luanda o curso liceal (sétimo ano – então correspondente ao actual 11º ano – que dava acesso imediato à Universidade).
Iria mais tarde fazer estudos universitários em Portugal (nesse tempo não havia ainda universidades em Angola). Em Março de 1965, sendo estudante de medicina, e com 28 anos de idade, foi presa pela polícia política salazarista, a PIDE, submetida a torturas (incluindo a chamada estátua e privação total de sono). Pertencia a um grupo de nacionalistas angolanos negros, mestiços e brancos que exerciam actividades conspirativas em Luanda e em Lisboa, em prol do MPLA e da extensão da luta às cidades angolanas. Faziam parte desse grupo João Baptista, Victória de Almeida e Sousa, Henrique Guerra, Lucas, Rui Ramos, Arminda Faria, Milton Tavira e Astrid Carvalho. Os quatro primeiros aqui citados foram severamente maltratados por aquela polícia. O Tribunal da Boa Hora condenou a maior parte dos elementos a penas de prisão. Victória de Almeida Sousa saiu da cadeia em 30 de Junho de 1967 (há quarenta e oito anos!)
A repressão de que fora vítima e a vigilância policial não a impediram de, a par dos seus estudos universitários, dedicar-se ao apoio aos presos políticos angolanos que jaziam nas cadeias em Portugal. No Forte de Peniche, estava encarcerado o então padre Joaquim Pinto de Andrade. Este e Agostinho Neto tinham sido presos em Luanda pela PIDE, em Junho de 1960, juntamente com outros nacionalistas, e deportados para Portugal. Neto, então presidente de honra do MPLA, fugira em 1962 para Marrocos e viria a assumir a chefia do Movimento, cedida pelo presidente em exercício, Mário Pinto de Andrade, irmão do padre deportado em Portugal. Quando Joaquim Pinto de Andrade sofreu várias prisões neste país, a direcção do MPLA nomeou-o presidente de honra do Movimento.
Na continuação de visitas ao padre Joaquim Pinto de Andrade, a dedicada solidariedade da Victória Almeida e Sousa foi-se transformando em afecto mútuo tão intenso que os levou a projectarem casar-se, o que implicou demoradas e trabalhosas diligências de Joaquim junto do Vaticano para obter renúncia aos votos e autorização de casamento. Obtida esta, seguiram-se porfiados esforços a fim de conseguirem autorização dos esbirros da PIDE para que o casamento se pudesse efectuar na cadeia. Finalmente, o ex-padre Joaquim e a Victória casaram-se pelo civil no forte de Peniche, em Novembro de 1971. Depois da saída de Joaquim da prisão, realizaram o casamento religioso católico em 1973.
Após a revolução militar de 25 de Abril, de 1974 que repôs as liberdades cívicas em Portugal, Victória e Joaquim e a sua bebé recém-nascida, Naima, viajaram para Paris e em seguida para o Congo- Brazzaville. O presidente de honra do MPLA, Joaquim Pinto de Andrade, iria encontrar o seu Movimento profundamente dividido. Ainda tentou arbitrar o conflito entre as três facções, mas, após o fracassado Congresso de Lusaka, em Agosto de1974, aderiu à Revolta Activa, da qual se tornou líder.
Regressados em 1975 a Luanda, Victória de Almeida e Sousa e o seu marido enfrentaram numerosas e sucessivas manifestações de hostilidade por parte dos militantes e da direcção do MPLA e Joaquim Pinto de Andrade viria a ser proibido de ter emprego público. Vitória entregava-se abnegadamente ao exercício da sua profissão de médica, não só nos hospitais como em socorro de gente desfavorecida.
Nos primeiros meses de 1976, quando a repressão do regime ditatorial instalado com a Independência se abateu sobre alguns elementos da Revolta Activa, Tó e Joaquim acorreram em auxílio moral e material às famílias dos presos e, dignamente, manifestaram o repúdio pelas prisões efectuadas (há testemunhos rendendo homenagem à sua acção [1]). O seu espírito solidário continuaria a manifestar-se pelos anos fora, depois do 27 de Maio de 1977 e consequente repressão, nas obras de assistência aos desfavorecidos, promovidas por organismos da Igreja Católica.
Joaquim Pinto de Andrade faleceu em Fevereiro de 2009 no meio do desvelo da sua companheira e dos seus filhos Naima, Amílcar e Djamila. E a Tó, de saúde debilitada, continuou a acorrer solidária a membros de toda a sua numerosa família e a amigos necessitando de conforto moral, a pessoas carenciadas. Colaborava estreitamente com organizações que fazem utilíssimas acções de apoio social, como a da irmã Domingas (de que tanto me falava). Deste modo, e de acordo com as suas profundas convicções cristãs, a Victória ajudava os desprotegidos sociais, sobretudo crianças. Antes de baixar ao hospital para uma delicada cirurgia à coluna, Victória de Almeida e Sousa estava trabalhando com os filhos na conclusão de um livro de homenagem ao seu falecido companheiro, Joaquim Pinto de Andrade.
Inesperadamente, a Tó partiu do nosso convívio. Perdemos a sua terna presença e a sua discreta e permanente solicitude. Morreu uma mulher de extrema sensibilidade, inteligente e corajosa. Morreu uma angolana que sofria com os sofrimentos dos seus compatriotas. Morreu uma mulher que soube lutar pela independência de Angola, pela liberdade, pela aplicação dos direitos humanos, pela justiça social. Viva a cidadã Victória de Almeida e Sousa!
Adolfo Maria
Lisboa, 3 de Junho de 2015
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[1] Ver Adolfo Maria, Angola - sonho e pesadelo, Edições Colibri, Lisboa 2014