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8.5.21
Cimeira no Porto
Tirem-me remorsos da alma: só eu é que não liguei nenhuma à cimeira da UE no Porto?
(Não estou sozinha: percorri agora alguns jornais europeus importantes e encontrei… nada!)
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Onde é que precisamos de liberais e não os temos
«O país está a ficar cheio de “liberais”, do “liberalismo” da moda. A palavra “liberdade” está a ser capturada pela direita mais radical. Confortável nas sondagens, a esquerda do PS, como o centro do PSD, perde todos os dias o debate ideológico. O BE está demasiado mole e autocentrado e o PCP preso num gueto verbal, ambos consideravelmente ineficazes face à crescente agressividade da direita. O único partido com dinamismo político e eleitoral é o Chega. O centro, centro-esquerda e centro-direita está errático e pouco afirmativo. As asneiras acumulam-se em todas as áreas que são de não direita. Em modo tribal, a agressividade dá frutos. A seu tempo, o conforto nas sondagens diminuirá. Aproximam-se tempos de mudança e o número de cegos que não querem ver é cada vez maior.
Falta muito a gente da liberdade, sem aspas, que reaja a todo o caminho que se está a fazer debaixo dos nossos pés. Faltam liberais sem aspas à esquerda e à direita, capazes de serem firmes em defesa da liberdade, muito duros na sua firmeza, mas moderados na acção. E uma das razões por que isso acontece é por medo. Ninguém quer ser alvo da avalanche de insultos, dos processos de intenção, das ameaças que hoje pululam nas redes sociais e nas caixas de comentários. Não sabem onde está tudo isto? Eu digo-lhes onde está.
A fronda populista varre a prudência de pensar duas vezes e, pouco a pouco, a fragilidade crescente dos partidos políticos fá-los soçobrar aos princípios para responder à avalanche populista. O efeito mais pernicioso de casos como o de Sócrates-Ivo Rosa é criar, em nome da luta contra a corrupção, uma deriva autoritária e liberticida. A Justiça é numa sociedade democrática um pilar do Estado, é um dos poderes fundamentais na sua autonomia e independência, como o poder legislativo e executivo. A doutrina da separação dos poderes não retira o exercício dos diferentes poderes do âmbito do Estado, nem impede por si só a sua perversão e contaminação – ou seja, a dependência do poder político é uma possibilidade e um risco, mesmo sem se mudarem normas e procedimentos. E tudo aquilo que permitimos agora na convicção de que não haverá abusos pode amanhã ser usado de forma abusiva e persecutória.
Dou muitas vezes como exemplo a intromissão na liberdade individual por meios informáticos, feita em nome da eficácia, que nos parece inocente agora, mas cria todos os instrumentos para poder ser usada contra as liberdades. Digo muitas vezes que uma nova PIDE que acedesse às bases de dados das Finanças, aos pagamentos do Multibanco, aos trajectos da Via Verde, aos metadados dos telemóveis podia saber tudo sobre qualquer cidadão. Se uma autoridade legítima o precisa de fazer para perseguir uma actividade criminosa, e se o fizer sob controlo judicial, muito bem. Tudo o resto, muito mal.
Não estou a falar de abstracções. Já houve jornais que pagavam informação a pessoas do fisco com acesso aos dados para fazerem “investigações”. Já houve magistrados que foram para além da lei para fazerem “pesca de arrasto” para encontrarem culpados, mesmo que não houvesse qualquer indício de actividade criminosa. Há legislação que implica a violação do segredo profissional dos advogados face aos seus clientes com considerável indiferença destes. O fisco viola a privacidade dos cidadãos obrigando as facturas a terem não apenas o montante da transacção, mas discriminação, por exemplo, dos títulos dos livros que se compra numa livraria. Há tentativas de “acrescentar”, sempre em nome da eficácia, dados suplementares ao cartão de cidadão. A aplicação Stay Away Covid apoiada pelo Governo implicava a violação de dados pessoais e não é líquido que os novos “passaportes” com dados sanitários também não o façam.
A inversão do ónus da prova, para que agora há um clamor populista, a que quem de direito responde tibiamente, é um instrumento persecutório e de abuso nas mãos do Estado. O enriquecimento “ilícito”, se o é, deve ser provado pela Justiça, pelo Estado. Dê-se aos magistrados e às polícias todos os instrumentos necessários para essa prova, mas não se crie uma situação em que seja o próprio a ter de provar a sua inocência. O furor legítimo contra a corrupção não deve dar às mãos do Estado instrumentos potenciais para todos os abusos. Hoje parece que será contra o “ilícito” do enriquecimento, mas amanhã pode ser para qualquer um, para vinganças políticas, para abater adv.ersários. Dado o instrumento, destruído o princípio, o abuso é só uma questão de tempo.
Aqui é que precisamos de liberais e eles nos faltam. Muitos, aliás, dos “liberais” dos dias de hoje são indiferentes a estas liberdades e, para atacarem aquilo a que chamam a “corrupção do socialismo”, estão dispostos a dar ao Estado enormes poderes. Eu, que me dou bem com o honroso nome de liberal, na tradição de Garrett e de Herculano, ou da minha terra, o Porto, não estou disposto a dar ao Estado o direito de me obrigar a provar a minha inocência. É, se quiserem, uma posição humanista sobre a natureza humana, deixando o pecado original para os crentes, mas não para a democracia.»
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7.5.21
Vacinas: podia ser uma cimeira social, mas parece que não
«Aquele Land-Rover modificado que transportou o caixão do príncipe Filipe do Castelo de Windsor à Igreja é uma boa metáfora da Europa: é visualmente agradável, sem dúvida, mas aquela lentidão própria de um enterro torna-se exasperante quando há uma profunda crise nas mãos.
Joe Biden já tinha surpreendido bastante com a resposta económica à crise provocada pela Covid enquanto a Europa ainda anda a aprovar os Planos de Recuperação dos respectivos países e o comissário Dombrovski volta a ameaçar o regresso às metas do défice em 2023.
O anúncio do apoio da Administração Biden à suspensão temporária dos direitos das patentes das vacinas contra a Covid – como a Organização Mundial de Saúde, África do Sul, Índia, ex-primeiros-ministros como Gordon Brown têm vindo a pedir – é um passo de gigante no combate a um problema global. Ursula von der Leyen foi tímida a responder a Biden (a Europa iria discutir o assunto) mas Charles Michel foi mais incisivo sobre a bondade da proposta Biden e anunciou que o tema seria discutido na cimeira social do Porto, a jóia da presidência portuguesa.
Mas algum júbilo que o anúncio da administração Biden mais a abertura da Europa provocaram em parte da população global – nomeadamente em África – foi rapidamente arrefecido com o balde de água fria vindo da Alemanha: o motor europeu não está disponível para viabilizar a proposta. Com Merkel à distância e o seu veto antecipado, a oportunidade da cimeira do Porto ser, efectivamente, uma cimeira profundamente social parece comprometida, o que é lamentável. A falta de acesso a vacinas nos países mais pobres é um problema de direitos humanos e os tratados admitem que em situação de calamidade como a que vivemos a suspensão das patentes seja possível. Mas também é um problema para a livre circulação dos “ricos”, coisa que Joe Biden percebeu mas o seu interlocutor telefónico na Europa (que não é von der Leyen nem Michel mas por enquanto ainda é Angela Merkel) não.
Assim sendo, é natural que a declaração do Porto seja agradável – como o Land Rover do príncipe – mas não traga muito de novo. Pôr de pé o pilar europeu dos direitos sociais ou reagir à emergência sanitária global será à velocidade óptima para um enterro.»
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6.5.21
06.05.1968 – As Barricadas em Paris
Na segunda-feira, 6 de Maio, começou a semana das barricadas. A partir das 15:00 horas, registaram-se muitos e graves confrontos entre estudantes e polícia. Um bom resumo neste vídeo:
Na véspera, 5 de Maio, Cohn-Bendit, fizera a seguinte declaração: «Nous disons que l'État est partie prenante de l'antagonisme de classe, que l'État représente une classe. La bourgeoisie cherche à préserver une partie des étudiants, futurs cadres de la société. Le pouvoir possède la radio et la télévision, et un parlement à sa main. Nous allons nous expliquer directement dans la rue, nous allons pratiquer une politique de démocratie directe.»
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Drama na Colômbia
«A Colômbia viveu um conflito armado de mais de 50 anos que teria terminado em 2016 com a assinatura do Acordo de Paz entre as FARC e o Governo anterior, mas as várias ramificações do conflito, a economia de guerra em torno dele e a violência directa e estrutural permanecem. Desde esse ano houve 753 assassinatos de líderes sociais e, só em 2020, 66 massacres correspondentes a 255 assassinatos confirmados pela ONU, nomeadamente contra comunidades rurais, defensores ambientais e de direitos humanos, pessoas indígenas, afrodescendentes e sectores da esquerda.(…)
As hashtags #paronacional e #SOSColombia mostram vídeos das atrocidades cometidas contra os colombianos sem lei nem razão, coleccionam provas e tentam gerar atenção para as vítimas que nunca terão uma capa de jornal em seu nome. Entre 28 de Abril e 4 de Maio, a ONG colombiana Temblores reportou 1443 casos de violência policial, pelo menos 814 detenções arbitrarias, 77 disparos de armas de fogo e 31 assassinatos por parte da polícia, 21 agressões nos olhos e dez vítimas de violência sexual por parte da força pública. As redes sociais dizem #UribeDioLaOrden, indicando que é Alvaro Uribe, ex-presidente da ultra-direita, quem realmente manda no país e ordena os vis ataques.»
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Gerações à Rasca
«Em fevereiro, o país descobriu o que já estava escancarado há muito tempo. Os milhares de mortos nos lares puseram em evidência as condições extremamente precárias de uma grande maioria deles, limitados a serviços mínimos de depósitos de pessoas passivas e infantilizadas. O país confrontou-se com o que já devia saber há muito: em vez de investirmos na autonomia segura dos mais idosos, deixámos que se instalasse uma atitude geral de armazenamento dos velhos, desaproveitando a sua sabedoria e a sua experiência de vida. E essa atitude animou uma economia, a dos lares e centros de dia, certamente a mais pujante em muitos territórios abandonados pelo investimento público e sobre a qual se criaram polos de poder local personalizado e malhas de negociação política privilegiada entre o local e o nacional.
O país sabia disto tudo e deixou andar porque isso convinha às redes de poder assim estabelecidas. Os mais idosos são, há muito tempo, uma geração à rasca. Tantas, tantas vidas apoiadas em pensões abaixo do limiar de pobreza, com habitações sem a mínima qualidade, a levar em cima todas as fragilidades do Serviço Nacional de Saúde. Universo pobre, desconsiderado, desrespeitado.
À geração à rasca dos jovens precários o país respondeu ofensivamente com o convite à emigração. A sucessivas gerações à rasca dos idosos o país respondeu irresponsavelmente com o armazenamento e a infantilização em lares. A institucionalização para a passividade e para a dependência foi o rosto da demissão da sociedade e do Estado para com os mais velhos.
Precisamos de uma bazuca de vontade política para termos uma sociedade e um Estado onde os mais velhos não sejam um peso, mas sim ativos de experiência e de saber. Para ser assim, a um tratamento baseado no depósito e na infantilização tem que se contrapor um tratamento baseado na cidadania e nos direitos. Isso materializa-se em descentralização dos serviços públicos, em programas de apoio domiciliário, em políticas de adaptação das habitações, na criação de condições para a mobilidade nas cidades, em gabinetes de apoio em todas as freguesias para combater a infoexclusão. E sempre, mas sempre, uma valorização das pensões fazendo convergir as mais baixas com o salário mínimo, e um alargamento do acesso ao Complemento Solidário para Idosos.
O que o país alheado da realidade descobriu com os milhares de mortes nos lares não se muda com melhores lares. Muda-se com mudança de muitas coisas na sociedade para que a cidadania e os direitos dos mais velhos sejam o princípio e não a exceção. Mudar a sociedade para os mais velhos e para os mais novos, não menos que isso.»
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5.5.21
1,86 milhões de euros de prémios para os administradores do Novo Banco?
Esperemos que não, seria mesmo a cereja em cima do bolo.
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Portugal, afinal, sempre é um país de negreiros?
António Costa tem razão, constata um puro facto, e saúdo-o por ter tido a coragem de o dizer. Porém, esta situação - que se repete em muitas outras zonas do Portugal agrícola - está há anos a ser denunciada por ativistas, por associações de apoio a imigrantes, por partidos políticos, por polícias, pela Igreja, por comentadores, pela comunicação social.
Quando António Costa comunica este caso, com o lastro que ele já tem, está implicitamente a comunicar também que pouco fez para acabar com esta nova escravatura. E teve tempo para isso. E tem um ministro, Eduardo Cabrita, que deveria ter tomado seriamente conta da ocorrência e não tomou.»
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Madrid, Madrid...
Vitória esmagadora da direita.
«El PP logra más escaños que toda la izquierda junta. Iglesias deja la política. Ciudadanos desaparece devorado por los populares. El PSOE se desploma en el peor resultado de su historia y Más Madrid supera a los socialistas.»
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Quem atira pedras contra João Cravinho?
«Quem havia de dizer que o debate sobre as medidas a tomar contra a corrupção se transformaria numa punição retroativa de João Cravinho, por ter tido razão cedo demais com as suas propostas de há 15 anos. Mas é por aí mesmo que vai a conversa. Constança Urbano de Sousa, exministra e vicepresidente da bancada do PS, inaugurou as hostilidades e sentenciou que Cravinho “deve estar com a memória afetada”. A grosseria foi notada, Manuel Alegre chamou-lhe um “insulto” e uma “canalhice”, que seria “imprópria da vida democrática”. Nada que impedisse a presidente do grupo, Ana Catarina Mendes, de vir defender a sua colega, afirmando que Cravinho era “injusto” na crítica à inação do partido, dado que “várias das propostas avançaram” e “nalgumas até se deram passos maiores”, enunciando um fulminante exemplo: “João Cravinho propunha a criação da comissão de prevenção da corrupção e foi criado o conselho de prevenção da corrupção”. É difícil descortinar nesta frase o que é piada e o que é argumento.
Apesar de avisado pela polémica que este ajuste de contas estava a suscitar, o atual primeiro-ministro, que ocupava nada menos do que a pasta da administração interna quando João Cravinho apresentou as suas propostas, não resistiu a deixar uma referência ao caso na sua entrevista do fim de semana no DN/TSF: “Nos dez anos em que estive nesse Governo não me recordo que isso tenha acontecido (terem sido bloqueadas as iniciativas de Cravinho contra a corrupção), não sei em concreto a que se refere o eng.ºJoão Cravinho. Lembro-me, aliás, que esse Governo nomeou o eng.ºJoão Cravinho para administrador do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento. Não sei o que terá acontecido entre o eng. João Cravinho e o eng. José Sócrates”. Deixando de lado qualquer interpretação sobre os subtextos destas alusões, a sua simples evocação é perturbante. No melhor dos casos, e é mesmo o mais ingénuo dos casos, “não se recordar” de como as propostas de Cravinho foram recusadas é surpreendente, atribuir isso a alguma misteriosa questão pessoal entre o deputado e o primeiro-ministro é enviesado e evocar a nomeação para o cargo europeu é uma insinuação. Era tudo escusadíssimo.
O facto é que Cravinho não deixou os seus créditos por mãos alheias quando saiu do parlamento em 2007, afirmando então que “quero deixar bem claro que não sairei do Parlamento sem deixar definido na íntegra o pacote anticorrupção, imprescindível para o desenvolvimento do País”. Não estava enganado e a sua insistência, mesmo tendo esbarrado na parede de uma maioria absoluta, inaugurou uma nova época na discussão das medidas anticorrupção. Podemos verificar agora como tinha razão e que efeito teria tido a aprovação integral das suas propostas, como sobre a contagem do prazo de prescrição nos casos de corrupção ou a criminalização do enriquecimento injustificado.
Que o seu partido tenha recusado essas propostas, seja porque para alguns não havia solução para a relevante questão da não-inversão do ónus da prova, seja porque para outros predominava o menosprezo pelas obrigações de transparência e responsabilização no exercício de cargos públicos, é um facto indiscutível. Que o PS reescreva o seu passado e defenda a sua coerência também faz parte da lógica política. Mas agora o país vive abalado por um caso judicial, ainda longe de conclusão, em que um ex-primeiro ministro é acusado de corrupção e isso marca a nossa vida coletiva. Alegar que é indiferente que tenha sido a maioria absoluta dirigida por esse governante que tenha recusado as propostas de Cravinho é uma aleivosia. E se, no fim de tudo isto, as mais poderosas figuras de proa do PS, o primeiro-ministro, a presidente e a vicepresidente da bancada parlamentar, se entretêm a atirar pedras contra o mais destacado dos socialistas que apresentou a mais sensata das propostas, era bom que entendessem que o arremesso só se vira contra o seu governo. A luta contra a corrupção merece entendimentos sérios e não vinganças partidárias, uma boa razão para ouvir as propostas que João Cravinho apresentou há 15 anos e que continua a defender agora.»
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4.5.21
Pete Seeger
Com um dia de atraso: ontem seriam 102.
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Um trabalhador não é uma alfaia
«A elevada incidência do número de infectados entre os trabalhadores migrantes do sector agrícola de Odemira não é somente um caso de saúde pública. Sem covid-19, os migrantes continuariam invisíveis, como é bom de ver. Até aqui de nada terão valido as várias denúncias feitas por associações, e até pelo presidente da câmara municipal, junto das instituições competentes.
Há que quebrar duas cadeias de contágio em Odemira. A primeira é mais fácil e imediata: mais testagem, vacinação e o isolamento profilático dos trabalhadores infectados. A segunda não é menos urgente: muitos deles, como noticiou o PÚBLICO, são vítimas da existência de redes de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas e, suspeita a Polícia Judiciária, de escravatura.
Casos de escravatura na agricultura alentejana são pré-covid e não se circunscrevem ao perímetro deste concelho. Têm sido identificados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), constado do Relatório Anual de Segurança Interna, participados ao Ministério Público, são do conhecimento da Autoridades para as Condições de Trabalho e objecto de denúncias de autarcas, como fez o ex-presidente da Câmara da Vidigueira em 2017.
O cenário é tão antigo como a inacção: as novas culturas pós-Alqueva exigem uma mão-de-obra inexistente, os empresários agrícolas recorrem a empresas de prestação de serviços e isso facilita a criação de redes que se alimentam da falta de ética para gerar novas formas de escravatura.
A “violação gritante dos direitos humanos”, como lhe chama o primeiro-ministro, não se resume àqueles casos em que os migrantes são desapossados dos seus documentos ou das passwords de acesso ao sistema do SEF. É bem visível na ausência de condições de habitabilidade mínima, que está na origem dos actuais índices de transmissão do vírus.
O Governo não pode fingir que os contentores de Odemira não existiam ou que eram, simplesmente, belos exemplares de arquitectura modelar. A existir aqui um modelo, esse, é outro. “A institucionalização de uma espécie de ‘campos de refugiados’ para trabalhadores agrícolas estrangeiros no Alentejo”, como lhe chamou Helena Roseta. Em Novembro de 2019, o PÚBLICO titulava: “Migrantes em Odemira terão Net, ar condicionado e relva... nas suas casas precárias.” Alberto Matos, da Solidariedade Imigrante, dizia isto: “Prometem o céu mas vão espalhar o inferno.” Sem a pandemia não saberíamos do inferno.»
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3.5.21
3 de Maio rimará sempre com Sorbonne
Foi numa 6ª feira da primeira semana de Maio que o mítico movimento estudantil francês, que arrancara em 22 de Março com a ocupação da Universidade de Nanterre e chegara ao Quartier Latin na véspera, 2 de Maio, tomou maiores proporções. Depois de reuniões várias e de confrontos entre grupos de estudantes rivais, o reitor da Sorbonne ordenou a evacuação desta pela polícia e seguiram-se horas de verdadeira batalha campal, com barricadas, cocktails Molotov, pedradas, matracas e gases lacrimogéneos. Tudo resultou em dezenas de feridos e mais de 500 prisões e os distúrbios continuaram nos dias que se seguiram.
Mais informação e vídeos AQUI, num post de 2018.
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Normalidade chocante
«Os sinais de otimismo multiplicam-se. Setembro é apontado como sendo o começo de uma nova era. Um tempo de normalidade sanitária e, logo, social. Esse horizonte de esperança é fundamental para que evitemos depressões e receios que germinaram com a propagação da covid-19.
Ao terceiro dia sem mortes, desde o início da pandemia, rejubilámos. Curiosamente, bem longe de nós, na Índia, a palavra "caos" peca por defeito. Apesar de vivermos num mundo globalizado, muito por mérito das companhias aéreas, a verdade é que perdemos a sensibilidade quando a morte não ocorre ao nosso redor.
Seis casos da variante indiana detetados em Portugal não são suficientes para refrear as multidões de jovens que têm invadido nos últimos dias os grandes centros urbanos. Procuram desanuviar após mais de um ano de "cercas", sanitárias, mentais e sociais.
Setembro pode constituir também o começo de um desastre económico e social. Por essa altura, muitas indústrias terão já perdido a capacidade de resistir e para os trabalhadores de pouco consolo servirá o controlo da pandemia devido a uma intensa vacinação.
Atendo o telefone e do outro lado relatam-me um drama humano. Há mesmo cerimónia em dizer a palavra certa. Ocorre o mesmo quando nos referimos a uma determinada "doença prolongada". Ele, trabalhador com guia de marcha da sua empresa, desistiu. Não encontrou motivação. Ignorando o crescente controlo da pandemia, deitou a toalha ao chão. A vida não se reduz ao vírus e não salvaremos todos se o nosso foco estiver só em calibrar vacinas para matar o "bicho". Temos de estar atentos aos sinais de uma sociedade desestabilizada por um agente maligno que atua ao nível físico, mas que também tem consequências no plano psicológico. Fechámo-nos demasiado, não só em casa mas também sobre nós mesmos. Quando isolados, tudo nos parece mais negro.»
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2.5.21
E só descobriram isso agora?
E só descobriram isso no ano da graça de 2021 e mais de 13 ou 14 meses depois do início da pandemia?
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De Rabo de Peixe a Odemira: as pandemias que a covid-19 revelou
«Inoculação, postigo, desconfinamento, cerca sanitária, teletrabalho...Estas são apenas algumas das expressões que a covid-19 retirou daquelas páginas dos dicionários que ninguém lê e as tornou mais comuns. Passaram a fazer parte de primeiras páginas dos jornais e a abrir telejornais todos os dias.
Ou seja, a covid-19 deu-lhes visibilidade. Mas mais importante do que as palavras são as pessoas e as histórias que tornam essas palavras importantes. E se há coisa que a covid-19 tem feito é dar visibilidade a problemas crónicos do nosso país.
Quando o país confinou pela primeira vez, retirámos da cave os problemas das famílias que não têm condições para apoiar os filhos na telescola. Ou porque não têm computadores com Internet ou porque têm empregos precários que não são complacentes com os méritos do teletrabalho num contexto pandémico. Transtornos sociais que existem há muito tempo e que, infelizmente, vão perdurar.
Na quinta-feira, António Costa voltou a usar uma dessas expressões: cerca sanitária. Desta vez decretou-a para Odemira. A última vez que a medida foi aplicada em Portugal aconteceu em Rabo de Peixe. O que têm as duas localidades em comum? Pobreza e condições de vida longe do que podemos considerar serem dignas. Diagnósticos há muito conhecidos.
“[É preciso] quebrar essa sobrelotação [de pessoas a viverem no mesmo espaço] porque é um risco enorme para a saúde pública, para além de uma violação gritante dos direitos humanos”, disse Costa para justificar a cerca sanitária imposta às freguesias de São Teotónio e de Longueira/Almograve, no concelho do litoral alentejano.
Quem são essas pessoas? Sobretudo imigrantes que procuram trabalho em Portugal para fazer aquilo que nenhum português aceita fazer, muito menos nas condições que lhes são oferecidas. É um problema novo? Longe disso. Por exemplo, e numa simples pesquisa no site do PÚBLICO, encontramos um texto assinado por Armando Sevinate Pinto, em 2014: Os romenos, a “desumanidade” e o desemprego no Alentejo. No artigo, o político e engenheiro agrónomo, falecido em 2015, já falava dos “estrangeiros explorados”, dos “intermediários que os controlam “, e de “ilegalidades cometidas por algumas empresas intermediárias”.
Problemas que subsistem e que em alguns casos se tornaram mais graves, tal como retratado nas várias reportagens feitas pelo PÚBLICO esta semana.
Rabo de Peixe, separada por quase 1500 km de mar de Odemira, também tem um elefante na sala. Que todos sabem que existe, mas que ninguém resolve: a pobreza e novamente situações em que há mais de 14 pessoas a viver na mesma casa. A vila piscatória da Ribeira Grande também teve uma cerca sanitária no início do ano, fruto da multiplicação de novos casos de covid-19.
E tal como em Odemira, os problemas são mais do que conhecidos. Se o turismo mitigou algumas das limitações económicas daquela que já foi a região mais pobre da Europa, as condições de precariedade social continuam.
Muito dependente da indústria piscatória, e da sorte madrasta do mar, não se pode pescar um peixe com fibra óptica. Nem tão pouco pedir que ele chegue pela Uber Eats. Se em cada 100 pessoas em teletrabalho 48 estão em Lisboa e arredores, esta não é uma opção para a grande maioria das pessoas que vivem nesta vila.
Portugal é um país pequeno, mas muito heterogéneo. Se uma parte do dinheiro da famosa bazuca promete aligeirar os efeitos da pobreza no Porto e em Lisboa, é importante que quem decide não se esqueça daqueles que não são tão visíveis. Há mais casos como Odemira e Rabo de Peixe. Não podemos deixar estas pessoas à espera que apenas um desastre como o que agora experimentamos as tornem visíveis.»
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