4.5.21

Um trabalhador não é uma alfaia

 


«A elevada incidência do número de infectados entre os trabalhadores migrantes do sector agrícola de Odemira não é somente um caso de saúde pública. Sem covid-19, os migrantes continuariam invisíveis, como é bom de ver. Até aqui de nada terão valido as várias denúncias feitas por associações, e até pelo presidente da câmara municipal, junto das instituições competentes.

Há que quebrar duas cadeias de contágio em Odemira. A primeira é mais fácil e imediata: mais testagem, vacinação e o isolamento profilático dos trabalhadores infectados. A segunda não é menos urgente: muitos deles, como noticiou o PÚBLICO, são vítimas da existência de redes de auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas e, suspeita a Polícia Judiciária, de escravatura.

Casos de escravatura na agricultura alentejana são pré-covid e não se circunscrevem ao perímetro deste concelho. Têm sido identificados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), constado do Relatório Anual de Segurança Interna, participados ao Ministério Público, são do conhecimento da Autoridades para as Condições de Trabalho e objecto de denúncias de autarcas, como fez o ex-presidente da Câmara da Vidigueira em 2017.

O cenário é tão antigo como a inacção: as novas culturas pós-Alqueva exigem uma mão-de-obra inexistente, os empresários agrícolas recorrem a empresas de prestação de serviços e isso facilita a criação de redes que se alimentam da falta de ética para gerar novas formas de escravatura.

A “violação gritante dos direitos humanos”, como lhe chama o primeiro-ministro, não se resume àqueles casos em que os migrantes são desapossados dos seus documentos ou das passwords de acesso ao sistema do SEF. É bem visível na ausência de condições de habitabilidade mínima, que está na origem dos actuais índices de transmissão do vírus.

O Governo não pode fingir que os contentores de Odemira não existiam ou que eram, simplesmente, belos exemplares de arquitectura modelar. A existir aqui um modelo, esse, é outro. “A institucionalização de uma espécie de ‘campos de refugiados’ para trabalhadores agrícolas estrangeiros no Alentejo”, como lhe chamou Helena Roseta. Em Novembro de 2019, o PÚBLICO titulava: “Migrantes em Odemira terão Net, ar condicionado e relva... nas suas casas precárias.” Alberto Matos, da Solidariedade Imigrante, dizia isto: “Prometem o céu mas vão espalhar o inferno.” Sem a pandemia não saberíamos do inferno.»

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