«Ao terminar mais uma sessão no Infarmed, a 8 de julho, o Presidente da República incluiu na sua síntese final o seguinte: "É o fim de um ciclo. Este é um modelo que tem de ser ajustado. Ou seja, Portugal vai evoluir de um modelo macro para micro, que incidirá mais sobre os concelhos, as freguesias ou até os bairros." Nada mais acertado. Mas com mais de dois meses de atraso.
A resposta à pandemia que levou ao confinamento, em meados de março, foi, inevitavelmente, centralizada, generalizada e normativa, seguindo um modelo de comando central de emergência de saúde pública, obrigando à obediência. Em contraste no "pós-confinamento geral", complexo e prolongado, haveria que descentralizar, diferenciar e promover a decisão informada por parte de todos, incluindo os cidadãos.
Esta transição requer uma clara rutura com a forma e o conteúdo da informação assumida durante o confinamento. Já não será a diária e fatigante repetição dos somatórios, médias e acumulativos nacionais, agora de reduzido interesse. Passará, necessariamente, a estar focada na comunicação dos riscos locais de infeção e nas respostas que estes suscitam.
H. Bauchner escreve em JAMA, junho 2020: "As perceções e decisões das pessoas em relação ao risco associado à covid-19 dependem, pelo menos, da resposta às perguntas seguintes: como está a transmissão da doença na comunidade onde me movimento? Qual o risco de exposição a essa doença que assumo? Como se responde a essa exposição ao vírus?" Neste contexto, diz a OMS em relação à abertura das escolas - não deve fazer-se se houver transmissão da doença na comunidade onde a escola se situa. Especialmente nesta situação, há que ter consciência da complexidade da comunicação do risco quando estão envolvidos, simultaneamente, vários atores sociais.
Um dos melhores exemplos vem da Nova Zelândia, onde, desde há muito, o território é mapeado com quatro níveis de alerta associados à avaliação dos riscos de transmissão da doença: nível 4 (transmissão na comunidade); nível 3 (clusters e transmissão ocasional na comunidade); nível 2 (só clusters); nível 1 (sem transmissão, com o vírus ainda circulando internacionalmente). O foco é claro: saber se existe ou não transmissão num determinado território e se esta se processa na comunidade de uma forma sustentada. Ou seja, se se pode "apanhar" a doença sem saber onde. Esta abordagem tem óbvias vantagens na fase do pós-confinamento geral:
- Põe-se o foco, precocemente, na transmissão da doença, nos riscos inerentes e na diferenciação local e não noutras considerações de lógica menos aparente (calamidade, contingência e alerta). A indisponibilidade para reconhecer a importância da diferenciação local só foi "quebrada" a partir da situação observada na Área Metropolitana de Lisboa.
- Faz-se em todo o território nacional - em Portugal, excetuando a situação na região de Lisboa, o país está classificado de forma uniforme como em estado de "alerta". Isto apesar de múltiplos outros focos, como o de Reguengos de Monsaraz, onde há transmissão comunitária.
- Uma vez adotada uma "geografia" com base nos níveis de risco, cada um destes níveis tem predeterminadas as respostas necessárias. Isso torna desnecessários dispositivos políticos de decisão para cada novo incidente na evolução epidemiológica. Assim se evitam também atrasos arriscados.
- A propósito da resposta de um surto em comunidades contíguas, no norte de Espanha, onde contrasta a resposta pronta em Aragão com o atraso de uma semana na Catalunha, com custos visíveis, comenta Fernando Garcia, da Universidade Pompeu Fabra: "É algo que requer uma dose justa de sensibilidade, músculo e inteligência. Não se podem ir confinando comunidades aos primeiros incidentes observados, mas fazê-lo tarde de mais resulta em situações difíceis de controlar" (El País, 12 de julho 2020).
- A informação centrada no "risco local" permite decisões inteligentes localmente, quando adaptada às múltiplas circunstâncias da comunidade. Decisões inteligentes são boas para a economia. Confinamento excessivo por falta de informação local relevante, não é bom para a saúde nem para a economia.
As dificuldades observadas podem também estar relacionadas com um equívoco óbvio - o de se terem confundido, durante demasiado tempo, duas necessidade distintas: por um lado, a da informação e comunicação entre técnicos qualificados e representantes do poder político, iniciativa de mérito indiscutível; por outro, o processo, inexistente, de aconselhamento científico sistemático, transparentemente regulado, independente do poder político, para uma estratégia de saúde pública para "pós-confinamento geral".
Esta é precisamente a altura para refletir sobre estas limitações. Nunca antes, na saúde pública moderna, se confinou e desconfiou massivamente. Há que avaliar e aprender. Tanto mais que estamos no limiar de um novo ciclo de acrescidas dificuldades: a abertura das escolas, as tentativas de regresso das pessoas ao seu SNS e as situações de saúde próprias do outono-inverno.»
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