Desde ontem, quase só ouvimos gritos de vitória e de felicidade pela «fortuna» que vamos receber da UE e o Tio Patinhas que temos sempre no horizonte esfregou as mãos de contente. Mas trago más notícias ao aconselhar que leiam o que escreveu Daniel Oliveira:
«Enquanto o Conselho destruía qualquer ideia de solidariedade entre Estados, voltando a sublinhar a distância entre as ilusões que muitos têm sobre a União e a realidade, um outro dossier está prestes a ser fechado: o quadro financeiro plurianual, que vigorará até 2027. Sem reforço orçamental nem redistribuição de encargos, Portugal terá, em plena crise, um corte nos fundos de coesão. Porque os custos da perda de receita pela saída do Reino Unido não foram distribuídos com critérios de coesão. Coesão é um palavrão do passado. A União, hoje, é mais mata-mata. Mas houve reforços de verbas: no controlo de fronteiras, para agradar à extrema-direita, e na defesa, dinheiro que vai direitinho para a indústria alemã e francesa.
A coisa não fica por aqui. Ao desconto (rebates) que 2,9 mil milhões de euros que quatro países do norte – chamar-lhes “frugais” é comprar a sua própria narrativa, baseada numa mentira descarada – já tinham conseguido em relação ao que deveriam ter de pagar, conquistaram, no Conselho Europeu, mais mil milhões. Foi um dia em cheio.
Mas o episódio mais lamentável foi mesmo a conclusão da negociação do Fundo de Recuperação. Os autodenominados “frugais” conseguiram impor a sua vontade e ela será um importante prego (mais um) no caixão que está a ser velado em Bruxelas. Bem sei que há negociações e depois chega-se a um meio termo. Mas não se chegou a meio termo nenhum. Chegou-se a meio termo nos valores, não no essencial.
A Holanda e aliados conseguiram uma vitória impensável: não só haverá condicionalismos na distribuição de dinheiro que pretendia responder a uma emergência, como a sua imposição ficará está nas mãos de uma minoria. O “supertravão” às transferências poderá ser acionado por qualquer país que ache que outro, na sua ótica (e nos seus interesses, obviamente), não cumpre os objetivos E só uma maioria qualificada (não chega uma maioria simples) pode aprovar essas transferências. O que quer dizer que, à boleia da pandemia, uma minoria de Estados – e não a Comissão – ganhou o poder formal de determinar políticas de cada Estado. Está preparado o caldo para o caos e a desagregação. A Holanda venceu em toda a linha, como nunca imaginou que venceria. Agora sim, gostava que António Costa tivesse falado grosso.
Isto é muito pior do que em 2011. Em vez da troika, em vez do FMI, da Comissão Europeia ou do BCE, que por pior que sejam são estruturas transnacionais, cada país ganhou uma arma de chantagem, que só será eficaz contra os que estão em situação mais difícil, não podem dispensar estes apoios e não têm peso político no conselho. É o último ato de um processo de subalternização quase colonial de uns Estados em relação a outros. No meio de uma pandemia. Nem no meu pior pessimismo alguma vez pensei que a UE se pudesse tornar em coisa tão grotesca.
Quem defenda isto em Portugal escusa de vir, noutros momentos, falar do glorioso passado do país. É na defesa do presente e do futuro que se mede o patriotismo. Por ignorância (os sinais de impreparação têm sido demasiado frequentes) ou má-fé, Rui Rio veio defender, ainda na fase negocial, a posição dos ditos “frugais”. Ao que parece, acha bem que sejam os outros a decidir o que se faz em Portugal. Como não governa nem faz imposição, esperam que países estrangeiros façam as duas coisas por si. Se outros, concentrados nos seus próprios interesses, nos impuserem regras que nos sejam prejudiciais, lá virá responsabilizar o governo pela situação em que estamos. A pergunta que sobra: se é assim que querem, faz sentido continuarem a defender que Portugal seja um país independente?
A ideia de que as regras que serão impostas têm como objetivo o bom uso do dinheiro e não os interesses específicos de quem as impõe é de tal forma infantil que qualquer pessoa que a defenda não cumpre os mínimos de maturidade política para governar um Estado. A Holanda é tão ciosa do bom uso do dinheiro dos outros países que até fica com os impostos deles para não os estourarem com mulheres e vinho. Pôr uns Estados a decidir onde outros investem é péssima ideia. Porque concorrendo uns Estados com outros que tiver essa possibilidade irá tentar travar investimentos de competidores que ponham em risco a sua supremacia. A expansão de um porto que concorra com o de Roterdão, a recuperação de um setor que compita com o de um dos países com força política. É por isso que estas coisas mais específicas costumam ser decididas na Comissão. Ou não aprenderam nada com a história da abertura das fronteiras?
Para os inocentes que não perceberam que o cumprimento das regras do Estado de Direito apareceram nas negociações para mais do que a barganha negocial, deviam perguntar-se porque mostra esta preocupação líderes políticos que nem se deram ao trabalho de expulsar Órban do PPE. Costa não o devia ter dito, porque Órban devia não merece defesa de ninguém, mas é evidente que não é na transferência de fundos que isto se resolve. É na expulsão da Hungria da União Europeia. Pôr isto no debate teve como única função, para quem tem vivido muitíssimo bem com o regime húngaro nestes anos, arranjar mais um argumento para dar poder de chantagem a uma minoria.
O que foi acordado neste fim de semana foi pior do que não haver acordo e deveria ter sido bloqueado até novo Conselho. Como escreveu Martim Silva, a “bazuca foi um tiro no pé”. Foi mais um passo para a destruição do projeto europeu. Mas uma coisa ficou provada: quatro países podem impor a sua vontade à Alemanha e França. É preciso quererem muito. A Holanda, que é de longe o país que mais ganha com o mercado interno e o euro, construiu uma narrativa interna que já não permite que a opinião pública aceite qualquer tipo de solidariedade europeia. E conseguiu derrotar o eixo franco-alemão. Disse-me um grande e falecido amigo, já há uns bons anos: desta União, não voltaremos a ter boas notícias. O poder que derruba o mau é sempre pior. A isso dá-se
o nome de decadência.»
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