Talvez com uma certa dose de masoquismo, continuo a ver a «Quadratura do Círculo», o programa de «debate» mais previsível que imaginar se possa.
Ontem, António Costa insistiu num tema que lhe é caro nos últimos tempos e que ultrapassa o que, apesar de tudo, esperava ouvir da sua parte.
Em resumo, e perante a hecatombe a que assistimos, pretende o putativo (ex-?)-sucessor de Sócrates que a Constituição garanta que qualquer governo minoritário trabalhe em paz, mais concretamente que o maior partido da oposição seja impedido de lhe criar problemas na AR em matéria de programa de governo e de aprovação do Orçamento, de modo a que estes tenham passagem assegurada à partida. Note-se que nem se trata aqui dos famigerados «consensos», mas sim de um de pacto de sangue entre irmãos eventualmente fratricidas.
Primeiro estranha-se, depois entranha-se: as questões verdadeiramente decisivas para a vida dos portugueses «sairiam» do Parlamento (dispensável, certamente, a discussão geral sobre o Orçamento) e nenhum partido da oposição teria voz na matéria (a não ser, talvez, na discussão em especialidade). Assim mesmo, de uma penada, para um reinado sem grandes solavancos de um ou outro dos dois partidos maioritários. Os mais pequenos seriam mesmo dispensáveis: no limite, poderiam dedicar-se a redigir votos de louvor e de pesar.
Argumenta-se que disposições deste tipo existem noutros países, sem ter em conta os diferentes contextos históricos e cívicos.
Mas porque não uma coligação, a concretização do tal Bloco Central que todos dizem condenar mas que nos entra pela casa dentro quase vinte e quatro horas por dia? Por causa da sacrossanta «alternância», obviamente, com todas as benesses que conhecemos.
O perigo de uma aproximação deste tipo é que ela seja bem acolhida, não pela sua virtude mas pelo cansaço generalizado perante o degradante espectáculo a que temos assistido nas últimas semanas. Mas o saldo deste período é, no meu entender, extremamente positivo, qualquer que seja o seu desfecho: vimos muitas coisas que estavam debaixo de tapetes vários e, sobretudo, houve finalmente a oportunidade de forçar a entrada na discussão de alguns protagonistas que estão normalmente fora do baralho.
Nada disto teria acontecido se os sonhos de António Costa se tornassem realidade. E é fundamental que se perceba que ele está o tocar no cerne do sistema democrático que temos enquanto não construirmos um outro melhor e que aquilo que propõe é uma certa forma de suspensão da democracia, não por seis meses mas ad eternum.
Se o PS está condenado a ceder muitas cadeiras ao PSD, como os últimos dados parecem confirmar, ao menos que o faça com um mínimo de dignidade.
P.P. - O Jorge Nascimento Fernandes já publicou
um texto sobre este assunto.
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