15.7.23

Biombos

 


Biombo de madeira, metal, marfim, cobre gravado, óleo sobre pergaminho, 1898.
Carlo Bugatti e Giovanni Segantini.

Daqui.
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JMJ: Queremos ser o primeiro país a torrar um papa

 


«O Papa Francisco ostentará assim paramentos brancos feitos em burel. Melhor dizendo: a lã da Serra da Estrela, como símbolo da tradição portuguesa.»

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Ilegalizar a política

 


«O lugar-comum “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça” é uma completa falsidade, cuja repetição, quase sempre de forma defensiva, contribui para uma confusão cómoda para todos e má para a democracia. Ele evita os políticos de terem de se pronunciar sobre casos que têm um óbvio significado político e, pior do que isso, dá um estatuto de independência e isenção à “justiça” que ela só tem por excepção. Numa democracia, a “justiça” é politizada, como são todos os três poderes clássicos, até porque aplica leis que são produzidas pelos outros poderes, legislativo e executivo. Tal não significa que a justiça não deva ser independente nos seus procedimentos, o que é toda uma outra coisa.

Mas uma coisa é essa base política de tudo em democracia, outra é a “justiça” actuar como agente político, quer como braço armado de grupos de interesses ou de movimentos políticos, quer por querer ter uma função justiceira, abusando dos seus poderes para “corrigir” aquilo que acha estar errado na política ou na sociedade. O sujeito do “acho” tanto pode resultar de maior influência partidária na magistratura como de uma forma de ideologia corporativa, baseada na arrogância de se auto-representar como moralmente superior ao resto do mundo, e como tendo uma “missão” de punir os males dos outros.

O caso mais grave deste tipo de comportamento de, na prática, ilegalizar a política foi em Itália. É verdade que havia (e há) uma corrupção generalizada no sistema político italiano, que gozava de uma protecção política, e a Operação Mãos Limpas tinha todo o sentido. Mas ela tornou-se rapidamente, mais do que um acto de “justiça”, numa actividade persecutória que, muito mais do que o crime e os criminosos, destruiu a arquitectura política italiana, em particular a Democracia Cristã e o Partido Socialista, abrindo caminho para o palhaço do Cinco Estrelas e para a neofascista Meloni. E onde é que estão os juízes mais conhecidos dessa operação? Na política, criando novos partidos, como o significativamente chamado Itália dos Valores, e sendo deputados e senadores.

Em Portugal, a mesma tentação justicialista tem estado sempre presente, com altos e baixos, na “justiça”. Um caso exemplar, infelizmente deixado no esquecimento, foram as atitudes de procuradores que procederam a uma espécie de pesca de arrasto que, a pretexto da pedofilia, pretendia encontrar culpas no seu alvo preferido, os políticos. Foi o célebre álbum com fotografias que acabava por ter sempre o efeito de sugerir que os que lá estavam tinham alguma coisa a ver com os casos investigados, mesmo que não houvesse um átomo de indícios ou suspeitas sobre a maioria dos retratados. Só que, por acaso, não eram jogadores de futebol, mas políticos. O mesmo com a tentativa de aceder aos dados de muitos milhares de chamadas telefónicas para ver “se se encontrava alguma coisa”.

O mesmo tipo de justicialismo é uma das motivações para os chamados megaprocessos, que acabam por ser benéficos para aqueles sobre os quais há sérias provas de que cometeram crimes, mas que acabam por beneficiar ou de prescrições ou de processos infinitos, cheios de imbróglios jurídicos que os podem fazer cair em tribunal. O que a “justiça” apanhada nestas atitudes acaba por fazer é facilitar as fugas ao segredo de justiça como forma de punir, na opinião pública, aqueles que não consegue levar a tribunal.

A tentação de ilegalizar a política está mais que presente nos dias de hoje em Portugal e é, em conjunto com a comunicação social politizada e as asneiras do Governo, uma fonte importante da crise da democracia que vivemos. Um dos seus aspectos mais perversos é a rapidez com que o Ministério Público anuncia que abriu um inquérito a qualquer acusação que a pseudocomunicação social politizada (com quem vive, aliás, em simbiose) faz, mesmo que seja evidente que não há qualquer ilegalidade ou crime na acusação, que acaba arquivada às escondidas. Mas o efeito público desse anúncio é sugerir a ilegalidade ou o crime à opinião pública que pensa: “Se o Ministério Público abriu inquérito, é porque há alguma coisa…”

Nos últimos dias, o justicialismo esteve em alta, com buscas feitas com grande estardalhaço a Rui Rio e ao PSD. Eu sou amigo de Rio e sei muito bem o que ele é, e por que razão era preciso arrastá-lo para este “somos todos iguais no crime”. Mas, nesta matéria, sou também amigo de Montenegro, de Hugo Soares, de todos os presidentes do grupo parlamentar do PSD, incluindo eu próprio, e dos presidentes dos outros grupos parlamentares, mesmo o do Chega, que acha que nada disto é com ele e é completamente com ele.

O absurdo deste processo é total. Claro que os partidos são subsidiados com “dinheiros públicos”, como agora se diz para sugerir impropriedades, até porque a lei lhes proíbe outras fontes de financiamento para além das quotas dos militantes. E são-no por duas formas: pela subvenção atribuída em função dos resultados eleitorais, e pelo financiamento de um dos seus órgãos estatutários, os grupos parlamentares. É completamente impossível e absurdo pensar que possa haver uma barreira entre os dois subsídios na sua utilização e é natural que, no seu conjunto, estes “dinheiros públicos” apoiem aquilo que é a actividade partidária em geral. Não é o problema de “todos fazerem o mesmo”, é que é suposto todos fazerem o mesmo, e fazem.

Se seguíssemos à letra esta distinção absurda, teríamos que arrancar das ruas os cartazes do PCP, do BE e do CDS, pagos pelos seus grupos parlamentares no Parlamento Europeu. Se seguirmos o rastro do dinheiro europeu, também parte dele vem dos contribuintes portugueses. Ou teríamos de impedir os deputados do PCP de darem parte do seu ordenado ao partido, ou ilegalizar a compra de sanduíches comidas pelo secretário-geral do PSD ou do PCP, que não são deputados, numa reunião do grupo parlamentar nos Açores ou no Minho. E as viagens de dirigentes e assessores, como é que são pagas? Um assessor pago pelo grupo parlamentar não pode entrar ou trabalhar também na sede do partido se a sua actividade é impossível de distinguir num sítio ou noutro, porquê? Podia encher o PÚBLICO com exemplos caricatos da impossibilidade e irrazoabilidade dessa distinção.

Se o carácter absurdo deste processo é uma lei confusa, então que se mude de imediato, que os políticos deixem de ter medo da sombra e acabem com ela. Mas o que mais me preocupa é outra coisa: os meios e recursos que foram mobilizados, cem inspectores e um dia de buscas, com total e desejada exposição pública, aponta claramente para mais uma tentativa justicialista de ilegalizar a política, como se fosse um lugar de crime. E é que não tenho qualquer dúvida em dizer isto.»

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Macron vaiado

 


Ontem, nos Campos Elíseos, durante as comemorações do 14 de Julho.
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14.7.23

Vasos e mais vasos

 


Vaso com desenhos de insectos, em vidro soprado, em camadas, polido, gravado com ácido. Museu de Artes Aplicadas de Budapeste, 1889.
Émile Gallé.

Daqui.
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Léo Ferré

 


O grande Léo morreu há 30 anos – 14.07.1993.


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14 JUILLET

 



Ils auront toujours Paris.
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JMJ: sem dúvida de sombras

 


«Estou com dúvidas sobre qual o evento que vamos receber em breve no nosso país, afinal é a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) ou o Burning Man? Esta semana, Ana Catarina Mendes, a ministra que tutela a JMJ, revelou à TSF estar inquieta com as condições climatéricas que se vão fazer sentir durante os dias previstos para o convívio. Ao que parece, a ideia de o recinto não ter qualquer sombra não foi brilhante. A ansiedade da ministra tem de merecer a nossa complacência: a organização deste tipo de certames implica sempre lidar com imprevistos, difíceis de gerir quando são impossíveis de vaticinar, como fazer sol e calor em agosto.

Há seis meses, o país parou para refletir sobre a moralidade orçamental da pala do altar-palco da JMJ, mas não houve grande celeuma em torno das centenas de milhares de indivíduos que, como não foram elevados a cardeais e não se podem sentar ao lado do Papa, vão torrar ao sol. Ainda tive esperança de que estivessem a acautelar esta situação na sombra, mas não. Há o governo-sombra e há o Governo que não trata atempadamente da sombra. Agora, é improvisar, talvez alterando o nome do evento para Fornada Mundial da Juventude.

É que os participantes são beatos, mas vão aquecer mais do que beatas. Lisboa será invadida por 4 mil autocarros, porém, quem vai ficar com um bronze à condutor de pesados são os peregrinos. Parece-me óbvio que os participantes têm a expectativa de que haja uma sombrinha, já que a última Jornada foi no Panamá. Não sei se plantaram árvores, mas o que não faltam lá são chapéus. Quanto aos voluntários, podem estar descansados. Ainda que não mexam uma palha, ninguém os vai acusar de não terem suado a camisola.

A inquietação de Ana Catarina Mendes não é partilhada pelos responsáveis ao nível autárquico, que talvez considerem que a sombra é sobrevalorizada e, fundamentalmente, um capricho. Filipe Anacoreta Correia, vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa e aparentemente um entusiasta da vitamina D, justificou a ausência de pontos de sombra com o facto de estes prejudicarem a visibilidade. Sou da opinião de que, mais do que árvores, o que prejudica a visibilidade são os desmaios. Quando muito, as árvores até permitem melhor vista, se as soubermos trepar. E muitos dos participantes terão essa destreza, uma vez que são escuteiros.

Nesta altura, a Igreja pouco ou nada pode fazer, até porque a Bíblia é demasiado grossa para ser eficaz como abanico. Ainda assim, tenho genuína esperança de que Sua Santidade já tenha submetido um requerimento junto do superior hierárquico, São Pedro, para que este destaque cinco ou seis nuvens do seu arsenal para a Bobadela. De outro modo, a desidratação generalizada é inevitável e será necessário recorrer a um segundo advento. Se Jesus Cristo transformou água em vinho, seria simpático que regressasse à Terra de 1 a 6 de agosto para transformar vinho em água. Fresquinha, de preferência. Nosso Senhor passava ali numa adega do Cartaxo, convertia as pipas em garrafas de Vitalis e deixava-as em Loures. Se tal não for possível, pelo menos que se abstenha de transformar o que quer que seja em moscatel quente.

Construir um extenso parque sem sombra é péssimo para os residentes que se espera virem a usufruir dele. Na verdade, provavelmente ninguém lá vai pôr os pés no futuro. A Jornada dura seis dias e o Parque Tejo vai descansar ao sétimo. Em Portugal, a infraestrutura é pensada como se se tratasse de uma máquina de gelados que compramos para casa. Usamos uma vez para uma ocasião especial, passados uns meses nem nos lembramos que existe.

Temos uma grave carência de espaços verdes onde seja agradável passar tempo. Quem governa deve ter alergias polínicas, mas a culpa também é nossa. Neste país, o Jardim com mais popularidade de sempre continua a ser o Alberto João. Quando um português pergunta “onde é que há um parque aqui perto”, não está à procura de um terreno arborizado e ajardinado, habitualmente só quer estacionar o carro. Sobretudo, esta opção para o recinto da JMJ demonstra enorme ingratidão para com a botânica. Não vamos plantar árvores para receber o Papa quando devemos toda a nossa relevância junto da Igreja Católica a uma azinheira?»

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13.7.23

Interiores

 


Interior da (extraordinária) Casa Batlló. Barcelona, 1877.
Antoni Gaudi.


Daqui.
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Humor da época

 

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13.07.1958 - Carta de um bispo do Porto a Salazar

 


Foi há 65 anos, cerca de um mês depois das eleições presidenciais de 1958 às quais Humberto Delgado tinha concorrido, que António Ferreira Gomes, bispo do Porto, escreveu uma longa e corajosa carta a Salazar, que lhe valeu dez anos de exílio em Espanha, França e Alemanha, entre 1959 e 1969.

Para muitos, sobretudo católicos, a conjugação destes dois acontecimentos – eleições com Delgado e carta do bispo do Porto – foi o verdadeiro pontapé de saída para a resistência e luta contra a ditadura durante as décadas que se seguiram.

Vale a pena ler ou reler o texto para se perceber a importância que teve na época.
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A angústia da pequenez

 



«Pouco depois da estreia de “Rabo de Peixe” escrevi um artigo com muito mais reações do que alguma vez esperei. Começava por explicar que não se tratava de uma crítica de televisão. Era sobre a uniformização cultural do mundo de que a Netflix, a plataforma mais diversa na origem das produções e a mais uniforme na sua linguagem, é um excelente exemplo. O objetivo não era debater se a série era “bem feita” – aparentemente era, para o seu objetivo comercial –, mas mostrar como esta globalização não vive da troca cultural, mas da sua estandardização.

Não me espantou a reação à camada superficial do texto, mas estranhei o grau de violência. Sem qualquer intenção, desafinei quando o país “dá cartas lá fora”. Todas as nações precisam de celebrar consensos que permitem continuar a ver-se como comunidades que partilham qualquer coisa para além da coincidência de cada um viver no mesmo território Interessante é perceber qual é o gatilho. E o nosso é quase sempre o mesmo: existir para fora daqui. O enorme entusiasmo com “Rabo de Peixe” também foi alimentado pelas notícias de que a série chegava aos tops da Netflix em vários países e à escala global. E o entusiasmo não era apenas ou sobretudo pelos efeitos económicos para a nossa ignorada “indústria cultural”.

Esta excitação nacional voltou-me à cabeça quando, há um mês, ouvi o discurso do Presidente da República, no 10 de junho: “Não podemos desistir de criar mais riqueza, mais igualdade, mais coesão, distribuindo essa riqueza com mais justiça. Porque só isso nos permite continuar a ter a projeção no mundo, que é o nosso designo nacional. É a nossa vocação de sempre: fazermos pontes, sermos plataforma entre oceanos, continentes, culturas e povos.”

Salto a nossa suposta vocação intercultural, que o imediato crescimento de uma extrema-direita racista num país com pouca imigração e quase sem minorias nacionais se tem encarregado de desafiar e onde a simples fotografia de um cadete de polícia negro provoca uma torrente de comentários racistas. Se temos tanta dificuldade em lidar com a nossa pouca diversidade, imaginem se fizéssemos mesmo “pontes”, sem ser no registo colonial que conhecemos no passado. Deixo estas fantasias para outro momento.

O que me interessa é a hierarquia invertida: o desenvolvimento e a riqueza ao serviço da projeção. Uma inversão evidente quando o Presidente enalteceu a nossa suposta vocação cosmopolita, num discurso que até o Estado Novo experimentou em tempos de aflição: “Outros há, e haverá, que são e serão mais ricos do que nós e mais coesos que nós. Mas com línguas que poucos conhecem, incapazes de compreenderem o mundo, de o tocarem e de o influenciarem mesmo aquele mundo que está mesmo à beira da sua porta. Nós nascemos diferentes. Uma Pátria improvável. Feita a pulso, contra o vento. Muito cedo universal. Muito cedo chamada ou condenada ser mais importante lá fora do que cá dentro. E não queremos nunca cometer o erro de trocar a nossa vocação, que nos fez e faz maiores e diferentes, pela ilusão de que sermos felizes é deixarmos de ser o que nos marcou há séculos.”

A obsessão de uma pequena Nação sem poder mantém por uma suposta vocação externa, que o Presidente, não sei se como crítica, apoio ou mera constatação, trata como o nosso principal traço de identidade e que não é comum a todos os povos, resulta do desconforto que mantemos com a nossa pequenez, que Marcelo verbaliza na perfeição.

As fases do nosso Império foram interrompidas pelo que o historiador Manuel Valentim Alexandre identificou (e desenvolveu da forma que aqui tento resumir e simplificar bastante) como quatro “traumas” que levaram a mudanças estruturais na metrópole. Com Alcácer-Quibir, Portugal perdeu membros de quase todas as famílias nobres, o que correspondeu a uma parte razoável da aristocracia nacional, e dez mil soldados. Desse abalo ficou o legado sebastianista e, segundo Valentim Alexandre, uma narrativa “bipolar” sobre a identidade nacional, "fundada na tensão entre a queda nos abismos e a salvação mirífica".

A independência brasileira, o segundo “trauma”, lança um debate cíclico: se Portugal é viável? Uma ansiedade que alimentou sonhos iberistas ou a ideia de que a resposta poderia estar em África.

Os pequenos territórios dispersos, com mais relação com a América, por via do tráfico de escravos, eram o testemunho da grandeza passada, que foi desafiada pelo ultimato britânico. Mesmo que a exaltação republicana tenha sido despropositada e perdido fôlego, a vaga nacionalista perante a cedência deixou marcas na imagem que tínhamos do nosso lugar no mundo. Este terceiro “trauma” viria a ser o impulso para a ocupação efetiva de territórios africanos, tentando segurar a uma metrópole miserável um império que só prevalecia com a condescendência das grandes potências.

Foram precisos 13 anos de guerra para chegar o derradeiro trauma: a descolonização. O salto quase imediato do centro de um império decadente para a periferia de uma Europa em construção isentou-nos de pensar o nosso desenvolvimento pós-imperial. De como nos podemos cumprir como Nação, deixando de querer ser o que já não somos há tanto tempo. Ficámos bloqueados num complexo de inferioridade e de superioridade – fracos e imperiais, pobres e grandiosos, humilhados e com uma grande história.

Pequenos países mais desenvolvidos, sem passados tão extraordinários, não querem saber o que o mundo pensa deles. Não se candidatam a organizar todos os eventos desportivos, religiosos ou outros. Não vivem para ser vistos. Ao contrário do aristocrata falido, o seu desígnio é garantir uma vida decente aos seus cidadãos sem que isso tenha como objetivo final a projeção nacional. É um objetivo em si mesmo.

Uma sondagem recente, feita pelo ICS/ISCTE para o Expresso, deu-nos um dado interessante sobre os limites do nosso amor pátrio: há mais pessoas a acharem que as nossas decisões devem ser influenciadas pela UE do que pelo parlamento que elegemos. Talvez o desejo de sermos governados por outros seja parente próximo da nossa carência de aprovação externa. Somos uma Nação deprimida que nunca ultrapassou o trauma da grandeza imperial perdida e que nunca conseguiu encontrar na prosperidade do povo satisfação que compensasse a sua pequenez.»

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12.7.23

Cálices

 


«Harlquin», conjunto Arte Nova de seis copos de licor. Boémia, cerca de 1900.
Meyr's Neffe.

Daqui.
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Pablo Neruda

 


Pablo Neruda nasceu em 12 de Julho de 1904, em Parral, no Chile, e morreu em Santiago, em Setembro de 1973, poucos dias depois do golpe que vitimou Salvador Allende.

Ver AQUI post do ano passado, com dois poemas lidos por Neruda.
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Não misturar com Fortimel ou Moscatel

 

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Milan Kundera (1929-2023)

 


Também li, também gosto. As redes sociais estão cheias de citações que, bem alinhadas, já davam um livro, mesmo que de cadáver esquisito. Horror dos horrores, não tenho como hábito decorar frases, está muito calor para ir buscar um escadote e atirar livros ao chão de prateleiras altas e não sou suficientemente parva para ir ao Google com o objectivo de fazer de conta que. Há também os que suspeitam que só eles foram leitores e que condenam o resto da humanidade.

Em contrapartida, nunca esquecerei um dos almoços mais divertidos da minha vida na terra em que ele nasceu – Brno.

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José Luís Carneiro não foi Charlie?



 

«O ministro José Luís Carneiro declarou, placidamente, como se fosse a coisa mais normal deste mundo, ter telefonado diretamente ao presidente do conselho de administração da RTP, a televisão pública, para "manifestar desagrado" (cito as palavras usadas pelo próprio) com um cartoon animado que caricaturava o suposto racismo da polícia francesa, na sequência dos acontecimentos que geraram vários dias de motins, mas cujo desenho foi entendido por alguns como sendo também uma acusação à polícia portuguesa.

O ministro José Luís Carneiro, que tutela as polícias, talvez tenha sentido que essa era a sua obrigação, que tinha de defender a imagem dos polícias portugueses, mas para o fazer usou algo que liquida a sua própria credibilidade democrática - abusou da autoridade que o cargo de ministro da Administração Interna lhe confere.

É verdade que os Estatutos da RTP dão aos diretores de Informação toda a autonomia e responsabilidade editorial do jornalismo da RTP, sendo teoricamente imunes a interferências do próprio conselho de administração, quanto mais do governo.

Na programação, a força formal dessa blindagem não existe. Porém, para além do próprio conselho de administração, há estatutariamente vários órgãos que lateralmente podem verificar se a RTP está a cumprir na programação os requisitos do serviço público que presta, como o conselho geral independente e o conselho de opinião.

A ERC e a própria Assembleia da República também podem pronunciar-se, dentro dos limites da regulamentação existente, sobre o que anda a televisão pública a fazer.

Há ainda provedores de espectadores, instituídos pela própria estação, que fazem análise crítica ao conteúdo das emissões.

Nada na comunicação social portuguesa é tão escrutinado como o conteúdo da RTP, televisão e rádio, Isso acontece todos os dias, e ainda bem que é assim.

Mas ninguém do governo, enquanto tal, tem enquadramento legal para fazer o que José Luís Carneiro disse que fez. Nem, sequer, o ministro da tutela - e esta distância entre a televisão pública e o executivo foi algo duramente construído ao longo de quase cinco décadas de democracia, e que afasta a RTP dos tempos em que ministros telefonavam a diretores de Informação para discutir o alinhamento do Telejornal.

Esse progresso, que aparentava ser consensual, está, pelos vistos, em risco de regressão.

A simples sensibilidade política é também diferente se for um membro do governo a refilar contra a RTP ou se for um partido da oposição a protestar por uma qualquer notícia que lhe desagrade.

Os partidos, isoladamente, não têm poder efetivo sobre a RTP e, por isso, as suas reclamações são um direito de intervenção pública que não lhes pode ser negado.

Poderá ser eventualmente aceitável que um membro do governo faça críticas ou elogios públicos a qualquer conteúdo da RTP, mas, na realidade informal, o peso do poder de um ministro implica que neste caso seja mais ténue a linha que separa a manifestação de uma posição política legítima da de uma interferência abusiva.

José Luís Carneiro ultrapassou claramente essa linha ao telefonar diretamente ao presidente do conselho de administração, Nicolau Santos, pois esse contacto pode legitimamente ser interpretado como uma tentativa de coação política direta, um afrontamento personalizado de alguém, que está no poder executivo do país, sobre alguém que executa um contrato de serviço público. Nessa conversa, implicitamente, apesar de todas as defesas legais, está subentendido quem manda mais, quem está por cima, quem está por baixo e quem pode começar a trabalhar para fazer a vida negra ao outro. É, repito, um abuso de poder.

Mas, pior do que isto tudo, é o ridículo. Meu Deus! Estamos a falar de um cartoon, que uns gostarão e outros não, mas é um cartoon, não é para levar a sério, não é para gastar tempo político e nos tribunais.

Quantos destes ofendidos não se disseram um dia, em 2015, emocionados, solidários com os cartoonistas assassinados do Charlie Hebdo e usaram, desafiadores à distante ameaça islâmica, o autocolante "Eu sou Charlie"?...

Que patetas!»

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11.7.23

Prédios

 


Prédio Arte Nova, com as ondulações da fachada influenciadas pela Casa Batlló de Gaudí em Barcelona. Palma de Maiorca, 1908-1911.
Arquitecto: Francesc Roca i Simó.

Daqui.
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Imigrantes? Assim vai o Reino Unido


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Em breve, num Centro de Saúde perto de si

 

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Rouba, mas faz

 


«A ideia que António Costa quer passar de que as pessoas não querem saber dos "casos e casinhos", sejam eles a simples falta de competência de membros do governo, seja o amiguimismo e o carreirismo que conduzem à corrupção, é altamente perigosa para a Democracia. Quando o chefe do governo entende que não deve explicações a ninguém, porque tem uma maioria absoluta no Parlamento, quando se julga dono absoluto da verdade, como se ela pudesse ser avaliada apenas de quatro em quatro anos, está a defender que os fins justificam os meios.

Não será muito difícil estabelecer um consenso sobre o que são as prioridades dos portugueses: ter emprego, ganhar um salário justo e receber do Estado a justa compensação pelos impostos que pagam. Nessa compensação estão o SNS, a escola pública e a Justiça. O primeiro-ministro entende que cumpridas as justas expectativas dos portugueses, o seu governo fica de mãos-livres para fazer o que entender com a máquina do Estado e ficará livre também de explicar o que quer que seja quando for apanhado numa história mal contada.

Por exemplo, se os portugueses, todos os portugueses, tivessem médico de família, depreende-se das palavras de António Costa que Miguel Alves ainda poderia ser seu secretário de Estado-adjunto, apesar de ter feito um adiantamento de 300 mil euros para um negócio que nunca conhecerá a luz do dia. Se o ensino público voltasse a ter a excelência que noutros tempos teve, Alexandra Reis poderia receber meio milhão de euros enquanto transitava da TAP para a NAVE. Se a Justiça fosse célere, Carla Alves poderia continuar na secretaria de Estado da Agricultura, de onde saiu porque tinha contas arrestadas por causa de um processo judicial envolvendo o seu marido e a própria secretária de Estado.

Já lá vão 14 exonerações e muitas delas nunca tiveram uma explicação plausível em relação aos factos que as determinaram. Durante todo o seu tempo de vida, acreditando nas palavras do PM, este governo de maioria absoluta esteve "concentrado naquilo que importa à vida dos portugueses". António Costa vai mais longe e garante haver uma grande distância entre o que pensam os comentadores e os partidos da oposição e o que pensa o comum dos portugueses. Para fazer a vontade a uns, não pode fazer a vontade aos outros. Não resolve os problemas de descoordenação do governo e não melhora a base de recrutamento para o governo e a sua fiscalização, fazendo a vontade aos comentadores, porque está muito ocupado a resolver os problemas dos portugueses. Dizer isto assim tem o óbvio risco de ter de ouvir como resposta uma outra pergunta: se não comenta os casos do seu governo, porque está a resolver os problemas dos portugueses, então por que é que os problemas dos portugueses não são resolvidos?

O primeiro-ministro, querendo ficar acima das questiúnculas terrenas, informa-nos que se dedica "pouco à análise política" e "mais à governação", como se não fosse competência sua garantir a qualidade das pessoas que são recrutadas para o governo. Como se governar bem fosse apenas apresentar bons resultados na economia. Como se não fosse obrigação de todos nós defender a Democracia exigindo ética republicana no exercício de cargos públicos. O pior que podemos fazer é render-nos ao bordão político "rouba, mas faz".»

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10.7.23

Museus

 


Museu Horta, Arte Nova, aqui com um jogo de espelhos. Foi casa e estúdio do arquitecto Victor Horta. Bruxelas, 1898-1901.

Daqui.
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Dois porcos que viraram almirantes

 


De vez em quando, é bom recordar que também nos divertíamos na luta contra o fascismo.

Em Julho de 1972, as Brigadas Revolucionárias lançaram dois porcos nas ruas de Lisboa, no Rossio e em Alcântara, como reacção à farsa eleitoral que reconduziu Américo Tomás ao seu último mandato como presidente da República.

Estavam vestidos de almirantes (tal como Américo Tomás...) e untados para ficarem escorregadios. A polícia não conseguiu agarrá-los e teve de os matar à metralhadora. Grande sucesso nas ruas de Lisboa! Foram depois distribuídos panfletos, lançados por petardos, com o seguinte conteúdo:

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10.07.1871 – Marcel Proust

 


«À la recherche du temps perdu»? Estão todos os volumes aqui por casa. Não nesta edição mas lidos, da primeira à última página, quando os animais já não falavam mas quase, nenhum tempo era «perdido», e bem antes de Pedro Tamen se ter atirado à epopeia de nos deixar uma magnífica tradução.

Outras vidas, outros mundos.
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Cartoon na RTP: à censura junta-se o ridículo e um sério aviso

 


«Num espaço da RTP dedicado a cartoons, garantido por um coletivo fundado por André Carrilho e pelo falecido João Paulo Cotrim (o Spam Cartoon), a prestigiada ilustradora Cristina Sampaio pôs um polícia a acertar cada vez mais tiros à medida que a cor do alvo escurecia. Não foi preciso esperar muito pela reação de alguns sindicatos de polícia. O Sindicato Nacional da Carreira de Chefes da PSP (o nível de especialização destes sindicatos pode ser explicado pela estratégia de dividir para reinar) apresentou queixa-crime, porque acha que "há uma intenção de vilipendiar todos os polícias, retratando-os como xenófobos e racistas".

A reação pavloviana é especialmente ridícula quando o alvo da crítica ao documentado racismo nas forças de segurança europeias e dos EUA não era, desta vez, a polícia portuguesa, abundantemente referida em relatórios internacionais. Era a francesa, por causa dos recentes acontecimentos nos arredores de Paris, como explicou André Carrilho e é evidente para quem veja noticiários. Alguns polícias portugueses apressaram-se a enfiar a carapuça. Lá saberão porquê.

Repetindo o que já tinha acontecido com um outro cartoon no "Inimigo Público", exigiram que se pusesse a crítica na ordem. Da outra vez, a Direção Nacional da PSP anunciou que se estrearia no absurdo e levaria o cartoonista Nuno Saraiva a tribunal. Não sei se o fez ou apenas quis exercer uma pressão para futuros atrevidos que achassem que a polícia está tão sujeita à crítica como qualquer outra instituição, seja ou não do Estado. Sei que a ideia é instituir a regra não escrita de que a crítica à PSP está interdita no espaço público. Que esta instituição publica goza de um estatuto de excecionalidade que a ninguém é dado em democracia.

Como seria de esperar, o Chega, que só aceita a sua própria liberdade de expressão, quer o “todos os responsáveis” no Parlamento (imagino que inclui a cartoonista) para darem explicações aos deputados, como se eles fossem membros de uma comissão de censura a que os cidadãos tivessem de prestar contas das suas opiniões. Extraordinário e sério aviso para o futuro é o PSD ter-lhe seguido o exemplo. O seu grupo parlamentar questionou o Conselho de Administração da RTP se o canal “teve conhecimento prévio do cartoon antes de o transmitir”. Ou seja, se teve oportunidade de censurar e não o fez.

A reação do PSD explica-se pela concorrência entre partidos de direita, onde até o defunto CDS se tem de pôr em bicos de pés. E foi acompanhada pelo Observatório da Segurança Interna, uma associação de direito privado que pensa ter competência para definir os limites do “sentido de humor” e da “liberdade de expressão”, mesmo quando, aproveitando o momento para aparecer nas notícias, nem se dá ao trabalho de identificar o alvo de uma crítica.

Nada tenho contra a indignação perante o cartoon. Que façam petições e boicotes. É o que tenho defendido sempre que há acusações de cancelamento pelo suposto “politicamente correto”: a liberdade de expressão implica liberdade de reação e de indignação. Quem se queixa de “cancelamento”, só porque é criticado por algo que disse sem que algum poder legal ou hierárquico tenha sido usado contra si, é quem acha que a liberdade de expressão é para uso exclusivo.

Bem diferente é a Assembleia da República querer impor, através de um poder ilegítimo sobre o canal público de televisão, censura de um cartoon. Todas as instituições do Estado, da Autoridade Tributária ao Serviço Nacional de Saúde, passando pelo Parlamento e pelo governo, e não excluindo a PSP e demais forças de segurança, estão sujeitas à critica livre. Não cabe aos deputados fiscalizar a liberdade de expressão na sociedade. Nem sequer na RTP.

Sendo pública, a RTP não deixa de ser independente do poder político. Passámos, aliás, décadas a criar regras para que assim fosse e ainda temos muito trabalho para fazer. Achar que a direção ou Conselho de Administração da RTP devem responder perante os deputados sobre o conteúdo de um cartoon é pôr um órgão de comunicação social sob tutela dos deputados. Depois vai ser o quê? O conteúdo de uma notícia que desagrada a um determinado partido? Uma crítica de um comentador que não caiu bem no governo?

Estes são os mesmos deputados que, recentemente, se indignaram com a interferência política na TAP. Talvez não seja difícil perceberem que esta tentativa de interferência é um pouco mais grave e sensível.

Não reagia a esta notícia se tudo isto se tivesse ficado pelo Chega. Sei o que a casa gasta. Os seus amigos do VOX ainda agora chegaram às câmaras municipais e, com o apoio cúmplice do PP, já começaram a suspender peças de teatros e filmes que tinham apoio público ou estavam em instituições públicas porque não correspondem às suas convicções políticas e culturais (aqui, aqui, aqui e aqui). A extrema-direita só acredita na sua própria liberdade de expressão. É tão partidária da censura e da repressão cultural como sempre foi. Ainda mais quando a crítica se dirige às forças onde se infiltra para instrumentalizar o poder repressivo do Estado.

O meu problema é ver o PSD a alinhar com o Chega. É um aviso. O que faria, neste caso, se estivesse no governo? Dependendo ou não do Chega para governar, vai ceder aos apelos à censura? Não vai reconhecer a independência da RTP face ao poder político, achando que deve impor constrangimentos à liberdade de expressão naquele canal, incluindo de artistas, humoristas e cartoonistas? Seria bom esclarecer-nos.»


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9.7.23

Mais vitrais

 


Vitrais da janela na sala de jantar da Casa Amatller. Barcelona, 1898.
Arquitecto: Josep Puig i Cadafalch.

Daqui.
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José Mattoso – Entrevista

 


A RTP 3 transmitiu ontem uma entrevista feita em 2006 por Ana Sousa Dias. Pode ser vista AQUI.
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Mercedes Sosa

 


Mercedes Sosa chegaria hoje aos 88. Nasceu no Noroeste da Argentina, em San Miguel de Tucumán, cidade onde também num 9 de Julho foi declarada a independência do país (em 1816).

Quando a Junta Militar de Jorge Videla subiu ao poder e se foi tornando cada vez mais agressiva, Mercedes, considerada peronista de esquerda, foi detida durante um concerto em La Plata, em 1979, refugiou-se depois em Paris e em Madrid e só regressou a Buenos Aires, e ao magnífico Teatro Colón, em 1982.

Alguns vídeos AQUI.
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Enterrar a transparência

 


«Há temas em que os factos são mais eloquentes do que qualquer comentário que se possa acrescentar. Vamos a eles. Em novembro de 2019, a Assembleia da República criou a Entidade para a Transparência, destinada a reforçar a fiscalização de rendimentos, património, interesses e incompatibilidades de titulares de cargos públicos.

Depois de três anos de desvalorização do tema e da invocação de entraves como a interpretação das normas para a constituição da equipa, em novembro de 2022 o Tribunal Constitucional deu sinal de vida. Aprovou finalmente uma proposta para criação e instalação da nova entidade num espaço provisório, ficando traçado o objetivo de concluir o processo antes que o ano terminasse.

Em janeiro, a Entidade da Transparência continuava sem sair do papel, mas era finalmente nomeada a equipa de direção. O tribunal decidia então prescindir de arrendar um espaço próprio e aguardar pelo Palácio dos Grilos, em Coimbra, para que essa instalação fosse concretizada nos meses seguintes. Chegados a julho, eis que tudo continua na mesma. Falta um contrato de arrendamento (que depende do Governo) para que possam ser feitos procedimentos tão simples como a ligação de luz, água e Internet. Já circularam cartas pela Presidência e Assembleia da República, e o Executivo promete uma solução para breve.

Não há propriamente um responsável direto por esta inércia e é provável que ela resulte de puro desleixo ou perda de tempo na burocracia e morosidade em que os organismos do Estado são useiros e vezeiros. Nada que console, bem pelo contrário: toda esta corrida de obstáculos mostra bem a ineficácia da máquina pública e a falta de empenho de várias entidades num tema que deveria ser prioritário. Numa altura em que a confiança de boa parte dos cidadãos na classe política está minada e todos os mecanismos legais e éticos que reforcem a regulação são bem-vindos, enterrar a transparência é um péssimo serviço prestado aos próprios políticos. E é, pela tentação de cedermos a conclusões demagógicas, um dano causado à própria democracia.»

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