«O lugar-comum “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça” é uma completa falsidade, cuja repetição, quase sempre de forma defensiva, contribui para uma confusão cómoda para todos e má para a democracia. Ele evita os políticos de terem de se pronunciar sobre casos que têm um óbvio significado político e, pior do que isso, dá um estatuto de independência e isenção à “justiça” que ela só tem por excepção. Numa democracia, a “justiça” é politizada, como são todos os três poderes clássicos, até porque aplica leis que são produzidas pelos outros poderes, legislativo e executivo. Tal não significa que a justiça não deva ser independente nos seus procedimentos, o que é toda uma outra coisa.
Mas uma coisa é essa base política de tudo em democracia, outra é a “justiça” actuar como agente político, quer como braço armado de grupos de interesses ou de movimentos políticos, quer por querer ter uma função justiceira, abusando dos seus poderes para “corrigir” aquilo que acha estar errado na política ou na sociedade. O sujeito do “acho” tanto pode resultar de maior influência partidária na magistratura como de uma forma de ideologia corporativa, baseada na arrogância de se auto-representar como moralmente superior ao resto do mundo, e como tendo uma “missão” de punir os males dos outros.
O caso mais grave deste tipo de comportamento de, na prática, ilegalizar a política foi em Itália. É verdade que havia (e há) uma corrupção generalizada no sistema político italiano, que gozava de uma protecção política, e a Operação Mãos Limpas tinha todo o sentido. Mas ela tornou-se rapidamente, mais do que um acto de “justiça”, numa actividade persecutória que, muito mais do que o crime e os criminosos, destruiu a arquitectura política italiana, em particular a Democracia Cristã e o Partido Socialista, abrindo caminho para o palhaço do Cinco Estrelas e para a neofascista Meloni. E onde é que estão os juízes mais conhecidos dessa operação? Na política, criando novos partidos, como o significativamente chamado Itália dos Valores, e sendo deputados e senadores.
Em Portugal, a mesma tentação justicialista tem estado sempre presente, com altos e baixos, na “justiça”. Um caso exemplar, infelizmente deixado no esquecimento, foram as atitudes de procuradores que procederam a uma espécie de pesca de arrasto que, a pretexto da pedofilia, pretendia encontrar culpas no seu alvo preferido, os políticos. Foi o célebre álbum com fotografias que acabava por ter sempre o efeito de sugerir que os que lá estavam tinham alguma coisa a ver com os casos investigados, mesmo que não houvesse um átomo de indícios ou suspeitas sobre a maioria dos retratados. Só que, por acaso, não eram jogadores de futebol, mas políticos. O mesmo com a tentativa de aceder aos dados de muitos milhares de chamadas telefónicas para ver “se se encontrava alguma coisa”.
O mesmo tipo de justicialismo é uma das motivações para os chamados megaprocessos, que acabam por ser benéficos para aqueles sobre os quais há sérias provas de que cometeram crimes, mas que acabam por beneficiar ou de prescrições ou de processos infinitos, cheios de imbróglios jurídicos que os podem fazer cair em tribunal. O que a “justiça” apanhada nestas atitudes acaba por fazer é facilitar as fugas ao segredo de justiça como forma de punir, na opinião pública, aqueles que não consegue levar a tribunal.
A tentação de ilegalizar a política está mais que presente nos dias de hoje em Portugal e é, em conjunto com a comunicação social politizada e as asneiras do Governo, uma fonte importante da crise da democracia que vivemos. Um dos seus aspectos mais perversos é a rapidez com que o Ministério Público anuncia que abriu um inquérito a qualquer acusação que a pseudocomunicação social politizada (com quem vive, aliás, em simbiose) faz, mesmo que seja evidente que não há qualquer ilegalidade ou crime na acusação, que acaba arquivada às escondidas. Mas o efeito público desse anúncio é sugerir a ilegalidade ou o crime à opinião pública que pensa: “Se o Ministério Público abriu inquérito, é porque há alguma coisa…”
Nos últimos dias, o justicialismo esteve em alta, com buscas feitas com grande estardalhaço a Rui Rio e ao PSD. Eu sou amigo de Rio e sei muito bem o que ele é, e por que razão era preciso arrastá-lo para este “somos todos iguais no crime”. Mas, nesta matéria, sou também amigo de Montenegro, de Hugo Soares, de todos os presidentes do grupo parlamentar do PSD, incluindo eu próprio, e dos presidentes dos outros grupos parlamentares, mesmo o do Chega, que acha que nada disto é com ele e é completamente com ele.
O absurdo deste processo é total. Claro que os partidos são subsidiados com “dinheiros públicos”, como agora se diz para sugerir impropriedades, até porque a lei lhes proíbe outras fontes de financiamento para além das quotas dos militantes. E são-no por duas formas: pela subvenção atribuída em função dos resultados eleitorais, e pelo financiamento de um dos seus órgãos estatutários, os grupos parlamentares. É completamente impossível e absurdo pensar que possa haver uma barreira entre os dois subsídios na sua utilização e é natural que, no seu conjunto, estes “dinheiros públicos” apoiem aquilo que é a actividade partidária em geral. Não é o problema de “todos fazerem o mesmo”, é que é suposto todos fazerem o mesmo, e fazem.
Se seguíssemos à letra esta distinção absurda, teríamos que arrancar das ruas os cartazes do PCP, do BE e do CDS, pagos pelos seus grupos parlamentares no Parlamento Europeu. Se seguirmos o rastro do dinheiro europeu, também parte dele vem dos contribuintes portugueses. Ou teríamos de impedir os deputados do PCP de darem parte do seu ordenado ao partido, ou ilegalizar a compra de sanduíches comidas pelo secretário-geral do PSD ou do PCP, que não são deputados, numa reunião do grupo parlamentar nos Açores ou no Minho. E as viagens de dirigentes e assessores, como é que são pagas? Um assessor pago pelo grupo parlamentar não pode entrar ou trabalhar também na sede do partido se a sua actividade é impossível de distinguir num sítio ou noutro, porquê? Podia encher o PÚBLICO com exemplos caricatos da impossibilidade e irrazoabilidade dessa distinção.
Se o carácter absurdo deste processo é uma lei confusa, então que se mude de imediato, que os políticos deixem de ter medo da sombra e acabem com ela. Mas o que mais me preocupa é outra coisa: os meios e recursos que foram mobilizados, cem inspectores e um dia de buscas, com total e desejada exposição pública, aponta claramente para mais uma tentativa justicialista de ilegalizar a política, como se fosse um lugar de crime. E é que não tenho qualquer dúvida em dizer isto.»
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