10.7.23

Cartoon na RTP: à censura junta-se o ridículo e um sério aviso

 


«Num espaço da RTP dedicado a cartoons, garantido por um coletivo fundado por André Carrilho e pelo falecido João Paulo Cotrim (o Spam Cartoon), a prestigiada ilustradora Cristina Sampaio pôs um polícia a acertar cada vez mais tiros à medida que a cor do alvo escurecia. Não foi preciso esperar muito pela reação de alguns sindicatos de polícia. O Sindicato Nacional da Carreira de Chefes da PSP (o nível de especialização destes sindicatos pode ser explicado pela estratégia de dividir para reinar) apresentou queixa-crime, porque acha que "há uma intenção de vilipendiar todos os polícias, retratando-os como xenófobos e racistas".

A reação pavloviana é especialmente ridícula quando o alvo da crítica ao documentado racismo nas forças de segurança europeias e dos EUA não era, desta vez, a polícia portuguesa, abundantemente referida em relatórios internacionais. Era a francesa, por causa dos recentes acontecimentos nos arredores de Paris, como explicou André Carrilho e é evidente para quem veja noticiários. Alguns polícias portugueses apressaram-se a enfiar a carapuça. Lá saberão porquê.

Repetindo o que já tinha acontecido com um outro cartoon no "Inimigo Público", exigiram que se pusesse a crítica na ordem. Da outra vez, a Direção Nacional da PSP anunciou que se estrearia no absurdo e levaria o cartoonista Nuno Saraiva a tribunal. Não sei se o fez ou apenas quis exercer uma pressão para futuros atrevidos que achassem que a polícia está tão sujeita à crítica como qualquer outra instituição, seja ou não do Estado. Sei que a ideia é instituir a regra não escrita de que a crítica à PSP está interdita no espaço público. Que esta instituição publica goza de um estatuto de excecionalidade que a ninguém é dado em democracia.

Como seria de esperar, o Chega, que só aceita a sua própria liberdade de expressão, quer o “todos os responsáveis” no Parlamento (imagino que inclui a cartoonista) para darem explicações aos deputados, como se eles fossem membros de uma comissão de censura a que os cidadãos tivessem de prestar contas das suas opiniões. Extraordinário e sério aviso para o futuro é o PSD ter-lhe seguido o exemplo. O seu grupo parlamentar questionou o Conselho de Administração da RTP se o canal “teve conhecimento prévio do cartoon antes de o transmitir”. Ou seja, se teve oportunidade de censurar e não o fez.

A reação do PSD explica-se pela concorrência entre partidos de direita, onde até o defunto CDS se tem de pôr em bicos de pés. E foi acompanhada pelo Observatório da Segurança Interna, uma associação de direito privado que pensa ter competência para definir os limites do “sentido de humor” e da “liberdade de expressão”, mesmo quando, aproveitando o momento para aparecer nas notícias, nem se dá ao trabalho de identificar o alvo de uma crítica.

Nada tenho contra a indignação perante o cartoon. Que façam petições e boicotes. É o que tenho defendido sempre que há acusações de cancelamento pelo suposto “politicamente correto”: a liberdade de expressão implica liberdade de reação e de indignação. Quem se queixa de “cancelamento”, só porque é criticado por algo que disse sem que algum poder legal ou hierárquico tenha sido usado contra si, é quem acha que a liberdade de expressão é para uso exclusivo.

Bem diferente é a Assembleia da República querer impor, através de um poder ilegítimo sobre o canal público de televisão, censura de um cartoon. Todas as instituições do Estado, da Autoridade Tributária ao Serviço Nacional de Saúde, passando pelo Parlamento e pelo governo, e não excluindo a PSP e demais forças de segurança, estão sujeitas à critica livre. Não cabe aos deputados fiscalizar a liberdade de expressão na sociedade. Nem sequer na RTP.

Sendo pública, a RTP não deixa de ser independente do poder político. Passámos, aliás, décadas a criar regras para que assim fosse e ainda temos muito trabalho para fazer. Achar que a direção ou Conselho de Administração da RTP devem responder perante os deputados sobre o conteúdo de um cartoon é pôr um órgão de comunicação social sob tutela dos deputados. Depois vai ser o quê? O conteúdo de uma notícia que desagrada a um determinado partido? Uma crítica de um comentador que não caiu bem no governo?

Estes são os mesmos deputados que, recentemente, se indignaram com a interferência política na TAP. Talvez não seja difícil perceberem que esta tentativa de interferência é um pouco mais grave e sensível.

Não reagia a esta notícia se tudo isto se tivesse ficado pelo Chega. Sei o que a casa gasta. Os seus amigos do VOX ainda agora chegaram às câmaras municipais e, com o apoio cúmplice do PP, já começaram a suspender peças de teatros e filmes que tinham apoio público ou estavam em instituições públicas porque não correspondem às suas convicções políticas e culturais (aqui, aqui, aqui e aqui). A extrema-direita só acredita na sua própria liberdade de expressão. É tão partidária da censura e da repressão cultural como sempre foi. Ainda mais quando a crítica se dirige às forças onde se infiltra para instrumentalizar o poder repressivo do Estado.

O meu problema é ver o PSD a alinhar com o Chega. É um aviso. O que faria, neste caso, se estivesse no governo? Dependendo ou não do Chega para governar, vai ceder aos apelos à censura? Não vai reconhecer a independência da RTP face ao poder político, achando que deve impor constrangimentos à liberdade de expressão naquele canal, incluindo de artistas, humoristas e cartoonistas? Seria bom esclarecer-nos.»


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