22.6.24

Janelas, muitas janelas (2)

 


Jaipur, capital do Rajastão, Índia (que vi em 2005).

Mais sobre Jaipur.

Futebol, bem a propósito

 


Já compraram pipocas para esta tarde de Sábado?

Exactamente

 


Os “justos” avançam na ofensiva política contra os “impuros”

 


«Depois do 25 de Abril de 1974 muita gente escapou à justiça pelo seu comportamento durante a ditadura ou, mais ainda, pelo seu papel de participantes naquilo que era a essência da ditadura: a força bruta contra os que se lhe opunham, com mortes, prisões, torturas. Há, no entanto, em especial, um grupo que escapou à penalização do seu papel na ditadura: os juízes dos Tribunais Plenários. Esses juízes eram serventuários da PIDE, exactamente serventuários, impediam qualquer simulacro de julgamento e de lei, mesmo as que habitualmente a ditadura não aplicava, ficavam furiosos quando os presos referiam as torturas por que tinham passado, ameaçavam os advogados, chegando a mandar prendê-los em pleno julgamento. Era gente que devia ter sido punida com rigor, mas escaparam por uma mistura de protecção corporativa e por serem “meritíssimos juízes”, ou seja, gente da alta, digníssimos juristas, cheios de pompa e circunstância, um exemplo de como ter diplomas, cursos, latim não impedem que se seja torcionário aplicado.

Digo isto porque justiça não havia de todo então e estamos agora a caminhar para institucionalizar não justiça, mas violação de direitos humanos, abusos de poder, interferência não-democrática na vida política. Exagero? Nem pensem. O episódio da divulgação de escutas e documentos em segredo de justiça na comunicação social teve um único objectivo: prejudicar a candidatura de António Costa à presidência do Conselho Europeu. Na semana anterior, as buscas no Ministério da Saúde tiveram também um único objectivo: prejudicar a antiga ministra da Saúde, então candidata. E não se sangrem em vida, foi essa a imediata percepção da imprensa especializada em fugas e acusações, que logo a apontou como alvo, ao ponto de a própria candidata ter de explicar numa entrevista que nada tinha a ver com o absurdo “caso das gémeas” e dizendo também que já não a surpreende “nada”.

Quem escolhe os tempos, seja o Ministério Público que pede as diligências, sejam os juízes de instrução que as autorizam, sabe muito bem qual o impacto público na vida política que têm medidas como as buscas. E sabe ainda melhor que cometer o crime de violação do segredo de justiça, divulgar escutas sem conteúdo criminal e fotografias do processo, no caso desta semana, directamente apontadas a Costa e à sua “casa” governamental, alimenta alguns dos seus opositores europeus que estavam a usar como pretexto a sua “situação judicial” (que ninguém sabe qual é), e é pura política e da pior. É um ataque à democracia que não precisa de qualquer lei sobre o discurso de ódio, para ser isso mesmo, ódio. E não é preciso ir mais longe para perceber como funciona esse ódio, por parte de muita gente que está furiosa com a possibilidade de Costa vir a ter um lugar de relevo na Europa, e que compara as fugas com as revelações de Assange. Sim, ouvi isto mesmo na Rádio Observador, que destila ódio a Costa como quem respira. E objectivamente pede mais sangue telefónico.

Mas, infelizmente, há mais. Não pretendo, nem quero entrar em tecnicidades jurídicas, para que sou incompetente, mas, não tendo as escutas qualquer relevância criminal, a sua realização e divulgação são aquilo que deveria ser classificado como espionagem política, o que, presumo, não havendo em Portugal uma polícia política, é um crime que vai directamente ao âmago da saúde da nossa democracia. É que agora toca a uns, depois tocará a outros, porque há quem se gabe, no sistema judicial, de conhecer todos os podres dos “políticos”, o que, presumo, também deve incluir os/as amantes, os que ainda estão dentro do armário, os que fumam o seu “charro”, os que vêem pornografia, os que jogam nos casinos, os que bebem de mais, ou seja, tudo “podres” sem crime, mas que podem ser úteis um dia. E eles sabem também quais os jornalistas a quem podem confiar as “revelações” dos Assanges nacionais com doses de espionagem política.

Temos, para já, dois actores, os autores das escutas abusivas e da sua divulgação, violando o segredo de justiça, e os jornalistas que são o vector, quase sempre sem edição, sem contexto e, acima de tudo, sem escolha dos materiais, o que é suposto ser o seu trabalho profissional. Posso condenar o seu papel quando não se comportam como jornalistas profissionais, funcionando apenas como transportadores por conta dos que lhes dão alimento. Mas não defendo qualquer censura. Só registo que, recebendo material intencionalmente envenenado, amplificam o veneno desse material.

Mas há mais um actor, nós que lemos e julgamos o que lemos, formando opinião. Somos nós os destinatários finais e os que podem beneficiar do crime, porque é para nós que todo este comportamento intencional se dirige. E, como é óbvio, ninguém fecha os olhos nem deixa de ter opinião sobre o que vê, ouve ou lê, independentemente do seu julgamento sobre o modo como está a receber aquilo que é o fruto de um crime. Se houver alguma cultura democrática e mediática, distingue o que é veneno e o que é informação. Mas sabemos bem que essa cultura não abunda no reino sem racionalidade e cheio de excitação patológica em que vivemos. É também neste reino que o comentário sério deve fazê-lo, como uma das raras armas em democracia.

E aqui, não defendendo eu qualquer censura, só posso dizer que a melhor resposta a este ataque à democracia e aos nossos direitos é dizê-lo na cara de todos, alto e bom som, sem um segundo de hesitação. A outra é prendê-los quando cometem crimes como é o abuso do poder e a violação de direitos fundamentais, a espionagem política e a violação do segredo de justiça. É suposto, não é, Ministério Público?»


21.6.24

Janelas, muitas janelas (1)

 


Singapura, 2012.

P.S. – Retomo uma mescla de várias séries sobre janelas que fotografei por esse mundo fora.

É apenas um pouco tarde

 


Solestício em Bergen


O bom gosto chegou há muito tempo a Bergen e instalou-se para sempre. Tudo é realmente admirável – quase mágico, como alguém me dizia há alguns dias, antes de eu própria o poder constatar, já lá vão uns treze anos, em noite de solestício.

As casas, o verde, a água, a luz, as cores do mercado, nada destoa, tudo parece ter sido «inventado» para se completar, nesta cidade de 280.000 habitantes, onde 15h30 é hora de deixar empregos e regressar a casa («pega-se»» às 8) e que se diz feliz por não ser demasiado fria quando comparada com outras, nem tanto assim por ter fama de ser a mais chuvosa da Europa (já contou com 85 dias consecutivos com água a cair dos céus…). 




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O estado a que a escuta chegou

 


Um português, um francês e um inglês entram no Vaticano

 

João Fazenda

«O Papa convidou cerca de 100 palhaços de todo o mundo para irem ao seu encontro e os palhaços resolveram aceitar o convite. Julgo que foi a decisão certa. A vetusta solenidade do Vaticano não podia ter menos a ver com comédia, e os palhaços nunca devem perder uma oportunidade para estarem onde não devem. À hora marcada, os palhaços aglomeraram-se junto à Porta del Perugino, e Fábio Porchat, da comitiva brasileira, fez a pergunta que nos intrigava a todos: porque teremos sido convidados? Eu disse: “Há 500 anos seria para nos cortar a cabeça, Fábio, mas agora não. Acho eu.” E respirei fundo, para tentar perceber se alguém estava a atear uma fogueira nas proximidades. Não me cheirou a fumo, mas lembrei-me da frase que os padres que me educaram repetiam várias vezes: “Graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhumas.” Talvez tivesse chegado a Roma a notícia de que eu não tinha cumprido esse preceito.

Entrámos e sentaram-nos numa sala guardada por seis soldados da Guarda Suíça, todos vestidos com o tradicional uniforme às riscas amarelas e azuis, e com um capacete encimado por um penacho vermelho. São homens que pertencem a um corpo militar no qual só uns poucos escolhidos têm a sorte de poder entrar, e cumprem a honrosa missão de proteger Sua Santidade, o Papa, líder espiritual de um terço da Humanidade. Provavelmente para não deixar que a vaidade lhes suba à cabeça, obrigam-nos a trabalhar vestidos de arlequim.

Enquanto esperavam, alguns palhaços começaram a ficar inquietos. Chris Rock sentiu-se na obrigação de exibir alguma rebeldia e pôs a tocar, no telemóvel, os versos “I like big butts and I can not lie/ You other brothers can’t deny” da canção ‘Baby Got Back’, de Sir Mix-A-Lot. Em termos de irreverência, no entanto, Rock foi batido por Jimmy Fallon, que optou por comparecer na cerimónia bêbado — o que requereu algum talento, uma vez que eram 7 da manhã. Mas o maior iconoclasta foi um senhor vestido de branco que a certa altura entrou, sentou-se numa cadeira e disse: “Podemos rir de Deus? Claro que sim.” Olhei para a Guarda Suíça. Os guardas nem se mexeram. Nenhuma vontade de castigar aquela heresia. Não era a primeira vez na História que alguém exprimia aquela ideia, mas tenho quase a certeza de que era a primeira vez que um Papa o fazia.

Quando recebi o convite para ir a Roma pensei no que a minha avó diria se ainda cá estivesse. Creio que tentaria descobrir como se telefonava para o Vaticano, para dizer: “Têm a certeza? Pensem bem. Conheço-o desde que nasceu, e a ideia de que um dia ele seria recebido aí nunca me ocorreu. Pelo contrário, sempre tive a forte suspeita de que mais cedo ou mais tarde ele seria recebido no inferno, e não foram poucas as vezes em que desejei ser eu a ir lá entregá-lo pessoalmente.” Parece-me que os acontecimentos lhe deram razão. Pessoas como eu aparecem no Vaticano e de repente o Papa começa com ideias esquisitas. Ela teria muitas dúvidas de que fosse coincidência.»


20.6.24

Um vaso diferente

 


Vaso de vidro com montagem em prata, Museu de Arte Kitazawa Suwa, Japão, 1890-1900.
Daum.

Daqui.

Marcelo e as gémeas

 



João Semedo

 


Seriam 73. Nunca serás esquecido.
Obrigada, João.

Marcelo: mudam-se os tempos

 


Recorda-me o meu baú que, no Rock in Rio de 2018, Marcelo esteve por lá a cantar com os Xutos e Pontapés. Os tempos eram outros até para o presidente.



A cor da justiça

 


«Parece estar para breve o desfecho do caso de Cláudia Simões e parece também, atendendo às alegações finais (e públicas) do Ministério Público, que este desembocará, infelizmente, na absolvição do agente Carlos Canha, assim como dos agentes João Gouveia e Fernando Rodrigues, e na condenação de Cláudia Simões por, no mínimo, resistência e coação sobre funcionário. Segundo essa leitura, os ferimentos que Cláudia Simões apresentava naquele fatídico dia terão sido autoinfligidos e consequência da sua resistência ao agente. Por sua vez, a atuação do polícia terá sido musculada na exata proporção do pretenso comportamento “descontrolado” de Cláudia Simões. Num cenário em que, logo à partida, as desigualdades de género, raciais e de estatuto (um polícia vs. uma civil) são tão evidentes e onde o clima de violência não pode ser escondido (as mazelas físicas de Cláudia Simões e as duas testemunhas agredidas na esquadra naquela noite), só é possível virar o “bico ao prego” se Cláudia Simões, na linha do imaginário colonial, for transformada numa “selvagem”.

Sou “testemunha abonatória” neste caso e, mesmo que não o fosse, alguns diriam que a minha opinião – a de que o agente Carlos Canha violentou Cláudia Simões –, sobretudo publicada, corresponde a uma difamação ou calúnia. Será preciso dizer-lhes que o espaço em que escrevo é exatamente uma “coluna de opinião”, em que cronistas vários apresentam as suas ideias e apreciações, fruto da sua leitura, sempre incompleta e marcada pela sua posição e pelas suas experiências em sociedade, como aliás acontece aos restantes cidadãos?

Vem tudo isto a propósito das alegações finais dos advogados de defesa dos três polícias na sessão de ontem. Um deles decide discursar amplamente contra jornalistas, cronistas, ativistas antirracistas, políticos e cientistas sociais que têm participado no debate público sobre este caso. Em suma, aquilo a que chamou “esquerdismo bulldog”. Sublinhou ainda – num gesto que só consigo interpretar como ameaça – que os agentes tinham o direito de se defender judicialmente dessas narrativas. Antes dele, a advogada de Carlos Canha havia dedicado uma parte importante das suas alegações finais a criticar a decisão inicial do Ministério Público (em 2021), trazendo à baila palavras como “perseguição”, “vingança” e de que o magistrado de então parecia ter tendência para interferir em casos que envolviam polícias. A alfinetada referia-se ao procurador Hélder Cordeiro, que, em 2017, levou a julgamento os 17 polícias do caso da Esquadra de Alfragide e que, em 2021, anulou o inquérito contra Cláudia Simões e acusou judicialmente Carlos Canha e os outros dois agentes. Chegados a 2024, o mesmo Ministério Público, embora representado por outra magistrada, pede a absolvição de Carlos Canha na acusação de violência contra Cláudia Simões.

Os advogados ficaram mal na fotografia, com derivas antidemocráticas e desprestigiantes para o sistema de justiça, mas estão no seu direito. Agora, o que chama mais a atenção é o modo como as suas preocupações ecoam aspetos de outros casos. Por um lado, antecipam contradições e desautorizações dentro do sistema judicial, como aquelas que referi acima, mas também como a recente anulação, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, da decisão da juíza Ferrer, no caso de Mamadou Ba e Mário Machado. Por outro lado, o debate público sobre o racismo em Portugal parece-lhes intolerável, devendo ser silenciado através de processos judiciais. Espero que não venha a dar-se o caso de termos mais condenações de antirracistas por difamação do que de racistas por discriminação étnico-racial.»



19.6.24

A França num dos seus labirintos

 



Vítor Wengorovius

 


Chegaria hoje aos 87 e partiu demasiado cedo. Estive com ele dezenas ou centenas de vezes, mas não consigo recordá-lo a não ser a rir às gargalhadas ou a não ser capaz de parar uma intervenção prevista para cinco minutos e que já durava há quase uma hora. Uma pessoa maravilhosa.

Chico chega aos 80!

 


Chico Buarque da Holanda nasceu em 19.06.1944. Vi-o pela primeira vez em 1966, em Lisboa, em «Morte e Vida Severina», estreada no Brasil pouco antes, com poema de João Cabral de Melo Neto e música do Chico. É até difícil imaginar que este tinha então apenas 22 anos!

Não foi para isto que extinguimos a PIDE

 


«Não podia estar mais à vontade no tema. Desde o primeiro minuto que considero que o despedimento de Christine Ourmières-Widener, uma CEO com resultados, teve como único objetivo resolver problemas políticos a António Costa, na sua demanda contra o seu putativo sucessor e de se livrar de todos os problemas, mesmo com prejuízo para o país. A ex-CEO tem tudo para vencer o processo contra o Estado português.

Não preciso, ninguém precisa, de qualquer escuta para escrever isto. Nem quero tê-las ao meu dispor. Por uma questão de proporcionalidade: o julgamento político de decisões políticas não recorre a meios extremos, garantidos pelo Estado. Isso é o que fazem as ditaduras contra os seus opositores. E, no processo de decadência das nossas democracias, em que ao jornalismo totalmente comercializado participa ativamente, está cada vez mais difícil explicar o que era óbvio para todos os democratas e amantes da liberdade.

Os limites para a utilização de um meio extremo de intrusão do Estado na vida privada dos cidadãos estão claros na lei. Eles impediriam as escutas por arrastão que o Ministério Público organizou contra João Galamba – hoje fica clara a função que lhe pretendiam dar. A justiça não escuta para descobrir crimes, escuta para recolher prova de crimes que sabe terem existido. Mesmo se ignorarmos a ilegitimidade (para não dizer ilegalidade, independentemente da autorização de um juiz) desta forma de investigar, o problema começa quando o próprio Ministério Público decide transcrever a conversa entre o primeiro-ministro e o ministro das Infraestruturas, mantendo-a nas suas mãos. A transcrição estava enquadrada em que processo? Neste caso, não há como atirar responsabilidades para outros atores judiciais: a própria transcrição daquela conversa é abusiva.

A resposta foi dada na segunda-feira, com a divulgação mediática da conversa entre Costa e Galamba, a propósito do despedimento de Ourmières-Widener. A libertação destas transcrições no momento em que o nome de António Costa está a ser negociado para a presidência do Conselho Europeu e o seu envolvimento no processo Influencer é uma pedra no sapato deixada por mais um momento de irresponsabilidade do Ministério Público indicia gestão política da violação do segredo de justiça.

Também já não tenho muita paciência para o discurso de jornalistas que acham que, tendo uma notícia nas mãos, o seu único dever é divulgá-la. Não é assim com nenhuma atividade, também não é com o jornalismo. Todas têm limites éticos e deontológicos. A utilização de escutas judiciais para revelar informações políticas sem qualquer relação com os processos que supostamente estariam a ser investigados recorre a uma forma de recolha de informação que atenta contra os mais básicos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E um jornalismo que desrespeita a liberdade não pode cumprir a sua função cívica.

A utilização destes meios ilegítimos nada tem a ver com jornalismo. As escutas foram usadas por um canal de informação por cabo no dia em que um concorrente nascia. É pura guerra comercial. Aquilo a que assistimos é à substituição do saudável pluralismo pela feroz concorrência comercial. Nela, os limites são apenas os da lei e como vemos, nem esses são cumpridos. Para o jornalismo os limites são maiores do que a lei porque a sua função é, antes de tudo, social.

Só Estados totalitários negam aos cidadãos direito a um núcleo de privacidade. Isto inclui os políticos e até inclui decisões políticas. Sem essa privacidade, a política é, aliás, impossível de se fazer. Estão os magistrados do Ministério Público disponíveis para ver todas as suas conversas profissionais na imprensa? Estão os jornalistas disponíveis para ver publicadas as suas conversas profissionais, incluindo com fontes? Por mim, não quero temer que um artigo como este ou outros que escrevi venha a resultar na divulgação públicas de conversas telefónicas privadas para me prejudicar. Não quero viver num país onde cidadãos cumpridores da lei falam através de meios de comunicação encriptados, temendo que agentes do Estado divulguem as suas conversas.

Há regimes em que o Estado pode escutar todos os atores políticos e usar as suas conversas privadas para os destruir politicamente: a RDA tinha Stasi. E há democracias em que os cidadãos perderam o apego à sua liberdade e aceitam viver num país onde o que dizem em privado pode ser usado contra si, mesmo que não estejam a cometer um crime. É tragicamente irónico que magistrados e jornalistas estejam na primeira linha contra as liberdades e garantias dos cidadãos que deviam defender. Não foi para isto que fizemos o 25 de abril e extinguimos a PIDE.»


18.6.24

Outra bela casa

 


Casa Fuster, Barcelona, 1908-1910, convertida num hotel de luxo em 2004.
Arquitecto: Lluís Domènech i Montaner.

Daqui.

Maria Bethânia

 


Chega hoje aos 78 com uma carreira iniciada em 1963, quando o seu irmão Caetano Veloso a convidou a participar na peça «Boca de Ouro». Foi nessa época que, tal como Caetano, conheceu Gilberto Gil e Gal Costa, e com eles entrou em «Nós, Por Exemplo» (Agosto de 1964).

Depois… continuou até hoje.







«Noturno» ao vivo (2021), versão completa:


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Anouk Aimée

 


Morreu hoje com 92. Menos uma que deixou marca na juventude de muitos de nós.



De Gaulle e a Resistência francesa

 



Vale a pena ouvir este apelo do general De Gaulle, lido na BBC em 18.06.1940, considerado como símbolo e início da Resistência francesa na II Guerra Mundial.


Gaza e o clima são duas crises e uma só indignação

 


«As novas gerações — porque são sobretudo elas que o fazem — protestam contra o suicídio colectivo que as alterações climáticas representam, e protestam contra as consequências trágicas do que se passa em Gaza, porque ambas merecem a mesma indignação, pela angústia da impotência que provocam e pelo desconforto da injustiça que alimentam. Essa indignação é fácil de perceber, tão fácil de subscrever.

A crise climática e a crise humanitária criam um sentimento de impotência individual e uma raiva de grupo na crítica da hipocrisia de Estados e governos que só se preocupam com elas na aparência dos discursos solenes. Um discurso duplo, ambíguo.

À ansiedade climática associa-se agora uma ansiedade humanitária e um activismo mais combativo. São duas ânsias e atitudes que não se auto-excluem nem sobrepõem. Pelo contrário, as duas complementam-se como visão crítica de um mundo governado por uma classe política encarada como falsa e cínica, capaz de sacrificar o planeta e o respeito pela vida humana, em nome de interesses opostos aos valores que tanto gostam de incluir nos seus discursos sobre a superioridade moral e ética das democracias face às tiranias.

Encontros como as COP e os protocolos de Quioto são boas intenções ultrapassadas pelas segundas intenções das potências dominantes e poluentes, que geram descrença e revolta. Na última COP 28, os activistas do clima defenderam a inclusão da Palestina no debate sobre a justiça climática global e reuniram-se à volta de campanhas como #NoClimateJusticeWithoutHumanRights.

A repetição dos ataques a Gaza, que vitimam a população civil, sem qualquer protecção, e o seu prolongamento indefinido cria uma incomodidade semelhante: como lidar com a impotência e a ansiedade destas imagens? A ecoansiedade ou a ansiedade para com Gaza têm um vírus em comum: a inacção. E a exigência de justiça como obrigação ética.

Esta discrepância entre uma crescente ansiedade, que exige mais acção, e o desinteresse dos Estados, que se confunde com inacção, aprofunda um abismo geracional e político entre quem representa e quem é representado.

Os partidos continuam a ignorar as mudanças sociológicas do eleitorado, particularmente estas inquietudes geracionais, relacionadas com a forma de governar e não com a forma de taxar impostos, e a actuar como se o mundo não estivesse em transformação, à excepção de acharem prioritário passar a mensagem política no TikTok e nos programas televisivos da manhã.

Este desfasamento mina a confiança no sistema de representação. Quem protesta convence-se que o coro de indignação a que pertence é ignorado pela classe política, e que esta promete justiça como uma noção meramente instrumental e utilitária, em negação de qualquer imperativo categórico kantiano, que tanto discurso inflamou sobre a superioridade ocidental.

Felizmente, a direita radical não sabe como lucrar com esse descontentamento, ou porque nega as alterações climáticas ou se está a borrifar para elas, mas sabe lucrar com quem pertence à mesma geração e a quem a inacção não perturba. O sectarismo à esquerda afunila-se numa estratégia de combate, o que faz com que o pluralismo seja uma extravagância dos dois lados da barricada, que não tem como consequência o alargamento da sua base de apoio.

Quer num caso, quer no outro, tem sido a Organização das Nações Unidas, enquanto organização, e não o seu Conselho de Segurança, que mais se tem batido para que o mundo acabe com a sua inércia.

O ano passado foi o mais quente de que há registo e o secretário-geral da ONU não se tem cansado de alertar para o facto de termos passado da era do aquecimento global para a da ebulição global e para a necessidade de uma “bóia de salvação” para a Terra.

Como nunca tinha acontecido em outra guerra, as instituições e funcionários das Nações Unidas e de organizações humanitárias (para não falar nos jornalistas) transformaram-se em alvos militares, como observou ao PÚBLICO o subsecretário-geral da ONU e director executivo da UNOPS, a agência da organização para as Operações. A ninguém nesta guerra é atribuído o estatuto da neutralidade.

António Guterres e Jorge Moreira da Silva não se conformam com a passividade com que assistimos à acelerada destruição do planeta e à inconcebível destruição da mais básica das básicas noções de humanidade. Os dois têm denunciado o que deveria ser denunciado ou sustentado pelas principais democracias dominantes sentadas no Conselho de Segurança e fazem-no com coragem e determinação, em nome de valores que não se transaccionam.

Infelizmente, a tentativa de acção da ONU não tem conseguido romper a inércia dos Estados. A carta das Nações Unidas não pode ser uma letra morta.»


17.6.24

Uma bonita «casinha»

 


Villa Broggi Caraceni, Arte Nova, Florença, 1911.
Arquitecto: John Michelazzi.


Daqui.

Jean-Louis Trintignant

 


Tinha 91 anos e morreu em 17 de Juno de 2022. Ficam no baú da nossa memória «Un homme et une femme», «Ma Nuit Chez Maud», «Z» e tantos outros filmes.




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Já podemos discutir a UE a sério?

 


«Para a generalidade dos comentadores, os campos em disputa nas recentes eleições para o Parlamento Europeu reduziam-se a dois: os pró-União Europeia e os anti-União Europeia (UE). Nunca se percebeu muito bem em que consistia uma coisa e outra, mas não importa: para quê complicar uma coisa que é simples?

Na verdade, lendo os programas e ouvindo os discursos, não é assim tão simples. Todos os principais partidos portugueses têm propostas sobre a UE. Nenhum defende o fim da UE, nem o fim da participação de Portugal no processo de integração. Todos fazem críticas e todos têm ideias sobre como melhorar o que existe, embora defendam coisas diferentes. Para tornar tudo um pouco mais complexo, alguns dos mais ferrenhos adeptos da integração europeia estão entre os mais insatisfeitos com aspectos centrais da UE (como ela é de facto e não como gostariam que fosse).

Isto não é de agora. José Medeiros Ferreira foi um dos maiores impulsionadores da adesão de Portugal à CEE; no último livro que escreveu antes de nos deixar (Não Há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)Dita da Integração Europeia), publicado em 2013, mostrava-se alarmado com o estado deplorável em que se encontrava a UE (e com a falta de sentido crítico dos dirigentes políticos portugueses sobre o assunto). O filósofo e professor universitário Viriato Soromenho Marques é um dos intelectuais portugueses que mais se têm destacado pela defesa da união política na Europa; num artigo publicado dois anos mais tarde (Os quatro pecados mortais da Zona Euro), apresentava a moeda única como “uma criatura incompatível com a vida e a prosperidade dos europeus”. Elisa Ferreira, a política portuguesa que mais contribuiu, enquanto eurodeputada e enquanto membro da Comissão Europeia, para atenuar algumas falhas da União Económica e Monetária (UEM), escrevia em 2015, na sequela da crise dos anos anteriores: “A agenda europeia de fundo continua a ser tão urgente como antes, porque as brechas que se tornaram óbvias em 2012 persistem, embora disfarçadas sob capas de sinais de saída do fundo da depressão ou de uma baixa generalizada dos juros.”

Nunca José Medeiros Ferreira, Viriato Soromenho Marques ou Elisa Ferreira deixaram de ser defensores da integração europeia. Isto não lhe toldou a capacidade de perceber as enormes imperfeições da arquitectura institucional da zona euro – e as consequências devastadoras que podem ter para economias como a portuguesa.

Mesmo críticos mais acérrimos, como João Ferreira do Amaral (professor universitário e assessor de dois presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio), não deixam de valorizar a lógica cooperativa que esteve nas origens da UE. Em vários dos livros que escreveu contra a moeda única, o economista sublinhava que o euro era, na verdade, o maior inimigo da coesão política entre países europeus.

Para o mundo a preto e branco que nos é servido no comentário político ou se é contra ou a favor da UE. Quem é favor elogia; quem é contra critica; não há espaço para mais. Mas não é bem assim.

Podemos reconhecer o contributo decisivo que a UE teve, desde as suas origens, para trazer a paz a um continente onde a guerra era até aí a norma. Ou a institucionalização dos valores da liberdade, da democracia, dos direitos humanos e da protecção do ambiente. Ou ainda o diálogo entre culturas e a troca de experiências que enriquecem as pessoas e as instituições que neles participam. Reconhecer tudo isto e muito mais não nos impede – nem deve impedir – de assinalar os aspectos menos consensuais da UE realmente existente.

Vale a pena ter presente que a manutenção da paz não foi o único objectivo que levou à criação da CEE em 1957. Os seis países fundadores tinham sido até havia pouco grandes potências económicas e políticas à escala global. Quando a II Guerra Mundial terminou, estavam reduzidos ao estatuto de potências intermédias, com economias destruídas e endividadas. Desde o início que a UE foi um projecto de poder político e económico de um conjunto muito restrito de nações ricas que não se resignam a ter um papel secundário no panorama mundial.

A criação de um mercado unificado de escala continental cumpria todos aqueles propósitos: promovia a paz por via da interdependência económica; criava oportunidades para as grandes empresas dos países mais ricos se tornarem ainda maiores e mais eficientes, tirando partido de economias de escala; e dava maior poder negocial às maiores nações europeias nas relações económicas internacionais.

Com os anos, o mercado interno europeu tornou-se um fim em si mesmo. Foi em nome dele que se criou a moeda única (seria difícil manter as fronteiras comerciais abertas, se houvesse oscilações cambiais entre os países). Foi também em nome dele que se limitou o espaço de intervenção dos Estados nas economias (tal seria considerado concorrência desleal).

Mas há um problema: quando se unificam mercados, não se promove apenas a concorrência entre empresas. Os custos de produção reflectem as escolhas que as sociedades fazem sobre o seu modelo de desenvolvimento, traduzindo-se em salários mínimos, direitos laborais, regras ambientais, impostos, etc. Ou seja, o mercado único põe em competição directa não apenas as empresas europeias, mas também os modelos sociais dos países participantes. Deixando de ter controlo sobre a taxa de câmbio, a emissão de moeda, a taxa de juro e as taxas aduaneiras, os Estados nacionais pouco mais podem fazer do que conter os salários e reduzir os impostos para ganhar competitividade e/ou combater as crises. A UE retirou muito poder aos Estados, mas não lhes tirou a “liberdade” de reduzirem os direitos e os impostos sobre os lucros para resolverem os problemas que enfrentam.

Muitos dos defensores da cooperação entre países e povos europeus percebem bem que a UE que hoje existe conduz, com frequência, à delapidação de direitos laborais, à fragilização do Estado social, à instabilidade financeira e ao aumento das assimetrias entre países e entre grupos sociais. Uns vivem bem com isso, pois acreditam que a constitucionalização da concorrência de todos contra todos tratará prosperidade. Outros empenham-se em corrigir o viés neoliberal da arquitectura da UEM, valorizando as evoluções da última década. Outros ainda são muito cépticos quanto à possibilidade de inverter um rumo que é, de facto, contrário à ideia de Europa social. Entre os últimos há quem (já) não acredite que a UE possa ser muito diferente do que é. Mas até entre esses há quem lute para que seja menos má. As coisas são mesmo mais complicadas do que nos querem fazer crer.»

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16.6.24

Marketing realista, com pitada de humor negro

 


As feridas do Interior

 

«Completa-se amanhã mais um ano sobre o incêndio que mais vítimas causou no país e é provável que o tema entre pouco no espaço mediático, visto que o 10 de Junho já passou por Pedrógão. Ouviram-se odes ao país inteiro, à ruralidade, à coesão social e à resiliência. Prometeu-se que será desta que as medidas para corrigir assimetrias serão concretizadas e que as políticas de valorização da metade mais esquecida do país não ficarão na gaveta. Para o ano, muito provavelmente, voltaremos a ouvir reflexões idênticas.»


David Mourão-Ferreira morreu num 16 de Junho

 


David Mourão-Ferreira morreu em 16 de Junho de 1996. Um dos nossos grandes poetas do século XX, ficcionista também, acidentalmente político como Secretário de Estado da Cultura, de 1976 a Janeiro de 1978 e em 1979, autor de alguns poemas imortalizados pelo fado na voz de Amália Rodrigues.

Dois poemas ditos pelo próprio, um cantado por Amália:








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25 de Novembro: a direita obrigou-se a homenagear Vasco Lourenço

 


«Uma parte da direita sempre se sentiu desconfortável com o 25 de Abril e fez do 25 de Novembro a “sua” data. O desconforto com as comemorações da revolução via-se em coisas quase risíveis – como a recusa de muitos dos seus deputados e altas figuras do Estado a usar o cravo vermelho nas comemorações oficiais na Assembleia da República. Cavaco Silva nunca o fez.

A prova de que o 25 de Abril, pelo menos nos seus primeiros 20 anos, continuava a ser efectivamente uma data “fracturante”, via-se na recusa do seu símbolo popular: um cravo que, espontaneamente, uma florista ofereceu aos militares. Uma flor! Nessa flor, para os partidos da direita, estava condensado todo o “comunismo” que abjuravam na data.

Aqueles que se insurgiram, anos depois, com o facto de a esquerda aparecer como “dona do 25 de Abril”, esqueciam-se que era a direita – e não só Marcello Caetano e os seus ministros – que viveu aquele dia e os seguintes com “mixed feelings” ou mesmo “bad feelings”.

Algumas dessas personalidades emigraram logo para o Brasil ou para outros países e só voltaram anos depois. Uma parte esteve, depois, num grupo terrorista chamado MDLP, sob a liderança de António de Spínola – o mesmo a quem os capitães entregaram o poder que tinham conquistado e que se tornou o primeiro Presidente da República da democracia.

Alguns desses ex-MDLP que queriam a contra-revolução andam por aí: o advogado José Miguel Júdice pode ver-se todas as terças-feiras na SIC Notícias; Diogo Pacheco de Amorim é hoje vice-presidente da Assembleia da República.

O 25 de Novembro ainda hoje é considerado pelos historiadores como “uma nebulosa”. Há algumas coisas provadas, outras não. O papel do PSD e do CDS aparenta ser diminuto. Foi um confronto entre o Grupo dos Nove alinhado com Mário Soares (o Grupo dos Nove era uma facção moderada das Forças Armadas onde pontificavam Melo Antunes e Vasco Lourenço, entre outros) com a esquerda militar.

Independentemente de, a 26 de Novembro, Melo Antunes ter declarado que finalmente se poderia implantar o socialismo em Portugal, não há nada a fazer. É nessa data que a direita festeja o seu 25 de Abril.

O PS de Mário Soares e o Grupo dos Nove engendraram o 25 de Novembro e depois foram à sua vida. A direita agarrou-se à data como contraponto ao 25 de Abril. Na realidade, a data fracturante, para uma parte da direita, é o 25 de Abril.»

Com a aprovação das celebrações anuais do 25 de Novembro na Assembleia da República (e o Chega ainda queria mais um feriadozinho), os partidos da direita, se quisessem mesmo ser fiéis à história, teriam de, anualmente, homenagear Mário Soares, Vasco Lourenço, Melo Antunes, Pezarat Correia, Franco Charais, Rodrigo Sousa e Castro, Vítor Alves, Canto e Castro, Costa Neves e Vítor Crespo.

Mas isso nunca irá acontecer. O que os partidos da direita querem é homenagear Jaime Neves, do regimento de Comandos da Amadora, o responsável operacional. Porquê? Porque Jaime Neves queria a ilegalização do Partido Comunista no dia seguinte. E tanto Melo Antunes como Mário Soares vieram imediatamente pôr cobro ao delírio do operacional do 25 de Novembro.

O PCP continuou no Governo liderado por Pinheiro de Azevedo, ao lado do PS e do PSD. A esquerda militar foi derrotada a 25 de Novembro. Álvaro Cunhal deu ordem aos militares comunistas para não se mexerem – eventualmente depois de uma conversa com Francisco da Costa Gomes, um homem também hoje odiado pela direita e que foi essencial naquele tempo para evitar a guerra civil.

A história é sempre muito complexa e nunca a preto e branco. Obviamente, para efeitos de política imediata, é mais fácil usar slogans e panfletos do que ir estudar. Mas os acontecimentos desta semana vieram demonstrar a relação complicada que alguma direita ainda tem com o 25 de Abril, pondo o 25 de Novembro ao mesmo nível. Cinquenta anos depois, é obra.»