20.6.24

A cor da justiça

 


«Parece estar para breve o desfecho do caso de Cláudia Simões e parece também, atendendo às alegações finais (e públicas) do Ministério Público, que este desembocará, infelizmente, na absolvição do agente Carlos Canha, assim como dos agentes João Gouveia e Fernando Rodrigues, e na condenação de Cláudia Simões por, no mínimo, resistência e coação sobre funcionário. Segundo essa leitura, os ferimentos que Cláudia Simões apresentava naquele fatídico dia terão sido autoinfligidos e consequência da sua resistência ao agente. Por sua vez, a atuação do polícia terá sido musculada na exata proporção do pretenso comportamento “descontrolado” de Cláudia Simões. Num cenário em que, logo à partida, as desigualdades de género, raciais e de estatuto (um polícia vs. uma civil) são tão evidentes e onde o clima de violência não pode ser escondido (as mazelas físicas de Cláudia Simões e as duas testemunhas agredidas na esquadra naquela noite), só é possível virar o “bico ao prego” se Cláudia Simões, na linha do imaginário colonial, for transformada numa “selvagem”.

Sou “testemunha abonatória” neste caso e, mesmo que não o fosse, alguns diriam que a minha opinião – a de que o agente Carlos Canha violentou Cláudia Simões –, sobretudo publicada, corresponde a uma difamação ou calúnia. Será preciso dizer-lhes que o espaço em que escrevo é exatamente uma “coluna de opinião”, em que cronistas vários apresentam as suas ideias e apreciações, fruto da sua leitura, sempre incompleta e marcada pela sua posição e pelas suas experiências em sociedade, como aliás acontece aos restantes cidadãos?

Vem tudo isto a propósito das alegações finais dos advogados de defesa dos três polícias na sessão de ontem. Um deles decide discursar amplamente contra jornalistas, cronistas, ativistas antirracistas, políticos e cientistas sociais que têm participado no debate público sobre este caso. Em suma, aquilo a que chamou “esquerdismo bulldog”. Sublinhou ainda – num gesto que só consigo interpretar como ameaça – que os agentes tinham o direito de se defender judicialmente dessas narrativas. Antes dele, a advogada de Carlos Canha havia dedicado uma parte importante das suas alegações finais a criticar a decisão inicial do Ministério Público (em 2021), trazendo à baila palavras como “perseguição”, “vingança” e de que o magistrado de então parecia ter tendência para interferir em casos que envolviam polícias. A alfinetada referia-se ao procurador Hélder Cordeiro, que, em 2017, levou a julgamento os 17 polícias do caso da Esquadra de Alfragide e que, em 2021, anulou o inquérito contra Cláudia Simões e acusou judicialmente Carlos Canha e os outros dois agentes. Chegados a 2024, o mesmo Ministério Público, embora representado por outra magistrada, pede a absolvição de Carlos Canha na acusação de violência contra Cláudia Simões.

Os advogados ficaram mal na fotografia, com derivas antidemocráticas e desprestigiantes para o sistema de justiça, mas estão no seu direito. Agora, o que chama mais a atenção é o modo como as suas preocupações ecoam aspetos de outros casos. Por um lado, antecipam contradições e desautorizações dentro do sistema judicial, como aquelas que referi acima, mas também como a recente anulação, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, da decisão da juíza Ferrer, no caso de Mamadou Ba e Mário Machado. Por outro lado, o debate público sobre o racismo em Portugal parece-lhes intolerável, devendo ser silenciado através de processos judiciais. Espero que não venha a dar-se o caso de termos mais condenações de antirracistas por difamação do que de racistas por discriminação étnico-racial.»



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