«Em pleno cavaquismo, em plena crise política desencadeada pelo bloqueio da Ponte 25 de Abril, José Pacheco Pereira escreveu uma crónica tentando explicar a quem governava o que era a vida de uma família com casa na Margem Sul de Lisboa mas cujos pais trabalhavam no centro da capital. A crónica caiu como uma bomba, porque era uma crítica vinda de dentro, com uma dose de ultrarrealismo. Sinalizava a Cavaco Silva que estava a perder o país.
Trinta anos passados não estamos nem numa crise económica nem na fase final do ‘montenegrismo’, mas estamos com falta de consciências críticas no PSD. Isso explica como o Governo vai mudando a identidade do próprio partido sem que ninguém apareça a fazer perguntas. Isso é muito notório em temas como a imigração e a nacionalidade, mas causa espanto também quando se olha para a proposta de revisão da lei laboral, anunciada há uma semana.
Imagine um casal cuja gravidez não vingou ou que foi obrigado a interrompê-la. Se a proposta do Governo for concretizada, o pai deixa de ter direito aos três dias de luto a que hoje tem direito sem perder rendimento. A mulher manterá esse direito, até por mais dias, mas terá de fazer esse luto sozinha, enquanto o homem vai chorar para o seu posto de trabalho.
Imagine agora uma mãe que veio de Castelo Branco mas arranjou trabalho num hospital em Lisboa. Ela não tem apoio familiar: o marido teve de emigrar, está sozinha com o filho de 3 anos. Se a ideia do Governo for aprovada, essa mãe deixa de poder dizer ao chefe que não pode trabalhar à noite ou ao fim de semana, por não ter quem fique com o seu filho. Ela que se arranje.
São apenas dois exemplos, ainda que existam outras ideias questionáveis na proposta de alteração “profunda” anunciada pelo Governo, no sentido de “flexibilizar” o trabalho e “fazer crescer a economia”. Olhando para elas, em conjunto, vale a pena perguntar o que quer realmente este PSD. Tudo isto aparece de onde e porquê, quando o impacto destas propostas é tão grande em algumas pessoas mas irrelevante nas empresas e inexistente na economia nacional? E também porquê, quando vai em sentido contrário a um dos valores mais importantes do centro-direita, precisamente o da proteção e valorização da família, quando funciona como desincentivo à natalidade, que deve ser partilhada pela mãe e pelo pai, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença”, como se diz nos tradicionais votos de casamento?
Volto atrás para sublinhar: que o PSD, quando está no poder, ouça as empresas e as suas necessidades, faz parte da saudável alternância política. Que o faça cegamente, sem ter um fio de prumo que lhe permita manter coerência, valores e o interesse estratégico do país é preo¬cupante. Que o faça sem medir o impacto que isso tem na vida real de muitas famílias é um sinal de alarme — muito evidente quando até André Ventura veio avisar que não contem com ele para isso.
Há uns anos, por causa de uma simples e pontual tolerância de ponto (aquando de uma visita do Papa Francisco), um exasperado João Miguel Tavares perguntou numa crónica a António Costa se queria ficar com os filhos dele no Palácio de São Bento, porque não tinha onde os deixar quando fosse trabalhar. Nessa altura, Costa recebeu-os. Talvez fosse mais urgente a Montenegro fazer agora o mesmo e receber em São Bento os filhos ou os pais que está prestes a prejudicar. Talvez percebesse melhor.»

1 comments:
Creio que há um erro de qualificação. O PSD de hoje, governado por gente de Entre Douro e Minho, gente de província (rurais, segundo Marcelo Rebelo de Sousa) não é um partido de centro-direita clássico. O tempo dos barões de Cascais já foi. O que há são barões e viscondes da província e provincianos, sem preocupações de estruturação de pensamento. Por outras palavra, o que o PSD tem é o que os partidos do liberalismo monárquico tinham, caciques, e que, de certo modo, o Estado Novo tinha; quadros locais, porém para pior porque, recorrendo ao inglês, o Estado Novo era topdown e o PSD é bottom-up. É a voz dos senhores doutores da chanfana e do bacalhau, não é a voz dos professores de Coimbra. Têm cursos universitários mas não são universitários.
Gente desta não quer saber de democracia para nada. Olham para a democracia, para as suas regras e convenções, como olham para a advocacia. É a velha anedota: afinal de quem é a vaca? A vaca é nossa.
Este partido está coligado com um outro partido populista, mas mais ideológico e de matriz sulista, o Chega, rei dos subúrbios e dos rufias que há 200 anos apoiaram Dom Miguel.
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