12.12.24

12.12.1993 – Autárquicas em Lisboa

 


Velos tempos, bons tempos.

O PSD quer mesmo engordar o Chega?

 


«Se o debate quinzenal desta quarta-feira era para ser o primeiro dia do resto da vida deste Governo – que agora tem o Orçamento aprovado e luz verde para se manter no poder até 2026 – foi um dia “poucochinho”.

É espantoso como o Governo e o PSD não perceberam que a táctica do “conluio”, para afrontar o PS e o Chega, tem riscos imensos. É quase uma estratégia autofágica, quando a urgência do PSD é conseguir conquistar em futuras eleições o eleitorado que votou Chega nas últimas legislativas.

O que leva Luís Montenegro e Hugo Soares a inventar “conluios” entre Chega e PS? Enfim, num Governo que não ata nem desata nas sondagens, num tempo político que não sai da confusão que é um “empate técnico”, percebe-se que exista algum desespero – se calhar a mesma forma de desespero que levou o primeiro-ministro a fazer a patética conferência de imprensa para fazer uma acta de actividades policiais, desespero que se prolonga no facto de, na tarde desta quarta-feira, se ter autocongratulado pela figura que fez e ter voltado a desfiar os números de operações da polícia. As situações de possível desespero resolvem-se, em política, com sangue-frio. Aparentemente, o primeiro-ministro, que chegou a ser saudado por ter essa qualidade, já se esqueceu como se faz.

No debate desta tarde, Luís Montenegro e Hugo Soares, o líder parlamentar do PSD, não se cansaram de apontar as “provas de conluio” entre PS e Chega que Hugo Soares acusou de serem, ambos, “forças de bloqueio”.

A aprovação do aumento das pensões no Orçamento viabilizado há dias pelo PS foi apontada como lesa-pátria. Montenegro chegou a dizer que ainda será mais duro quando vestir o fato de presidente do PSD: “Não me calarão a voz na denúncia desta situação.”

Foi um favorzinho que o Governo e o PSD decidiram fazer a André Ventura. Com o à-vontade de quem não foi obrigado a viabilizar o Orçamento, o Chega tinha a passadeira vermelha estendida para poder voltar a colocar-se como o partido fora do sistema, que nem o Orçamento da AD aprovou, nem governou o país durante os últimos 50 anos. Afinal, o que não faltam são “conluios” entre Governo e PS, da viabilização do Orçamento à eleição do presidente da Assembleia da República, passando por uma data de coisas do “sistema”. Achar que a táctica do “conluio” não serve para engordar o Chega é, no mínimo, uma ingenuidade.

Se o “conluio” não se entende, já se percebe que o primeiro-ministro atire à cara de Pedro Nuno Santos que o Governo não pode fazer em nove meses o que os governos de António Costa não fizeram em oito anos.

O PS está a provar, em ricochete, a táctica costista da “culpa da troika” e da “culpa do Passos”. Por muito que Pedro Nuno Santos apele ao facto de Montenegro agora ser primeiro-ministro e estar obrigado a responder perante o Parlamento, o primeiro-ministro ainda tem bastante tempo para usar a táctica dos governos PS. Costa fê-la render até ao fim.


Cunhas e compadrios



 

11.12.24

Antes de Mr. Clooney

 


Cafeteira de estanho Jugendstil (nome para Arte Nova na Alemanha e na Áustria), cerca de 1900.

Daqui.

Se não fora não querer

 


Debate quinzenal na AR

 


Abri a TV mas já fechei, aquilo faz mal aos nervos. Nem sequer pelo conteúdo, mas pela forma: aquela gente detesta-se e faz mal ao país.

Manoel de Oliveira

 


Seriam 116, hoje.

Hoje é dia de Aniki Bobó:



Israel: cultor e vencedor do caos

 


«Sobre o que penso em relação ao que se passa na Síria, escrevi o fundamental na segunda-feira. A simplificação emocional a que assisto, que confunde a natural esperança do martirizado povo sírio perante a queda de um sanguinário ditador com uma “libertação” levada a cabo pelos que ainda há uma semana eram tratados como terroristas, dependentes de uma coligação que tem como único cimento o ódio ao carniceiro caído, confirma o que temia. Mas não é preciso transformar fanáticos religiosos em libertadores para festejar a queda de um carniceiro.

Um dos exemplos que dei no texto anterior para ilustrar as contradições que impedem histórias simples ou esperanças infundadas foi a posição da Turquia e de Israel. Guardo a Turquia e o novo e o miserável sacrifício dos curdos para outro momento. Concentro-me em Israel porque foi o primeiro a revelar, da forma a que Netanyahu nos habituou, o seu absoluto cinismo na relação com esta guerra.

Mal tinha Assad aterrado em Moscovo, já Israel conduzia uma intensa campanha de ataques aéreos em quase todo o território sírio. Mais de 300 operações em apenas 48 horas. Destruição de toda a força aérea síria. Portos militares e outras instalações sem interesse militar destruídas. Muito para além do risco de armamento químico. Esse é o argumento impressivo, para calar o mundo perante a violação recorrente das regras internacionais. Curiosamente, ou nem por isso, as bases militares russas foram poupadas. O objetivo deste ataque é impedir que a Síria seja um Estado com capacidades militares próprias, ficando, por isso, entregue às suas milícias sectárias. Que se mantenha, como o Líbano, um Estado falhado.

No momento em que escrevo ainda não é claro até que parte do território sírio avançaram as forças militares israelitas. Os media internacionais, desmentidos por Israel, diziam que estava a cerca de 25 quilómetros de Damasco. Certo é que, aproveitando o vazio de poder, as forças israelitas ocuparam a zona desmilitarizada, protegida há cinco décadas por forças da ONU, numa violação do acordo de cessar-fogo de 1974, firmado após a Guerra do Yom Kippur. Quem o disse foi o enviado especial da ONU para a Síria, Geir Pedersen, não aceitando as justificação de que se trata de uma medida de segurança.

A ideia de que está a criar uma zona tampão para segurança de Israel é esclarecedora de como vai expandido o seu território. É uma zona tampão para proteger o que já era, supostamente, uma zona tampão. E, de tampão em tampão, lá se vai conquistando território aos vizinhos. É provisório, diz Israel. As ocupações provisórias, por supostas razões de segurança, tendem a tornar-se definitivas no projeto expansionista israelita.

Tudo isto aconteceu perante o silêncio despreocupado do Ocidente, para quem o respeito pela integridade territorial das nações só se aplica à Ucrânia, assim como as acusações de cumplicidade com criminosos só se aplicam à relação de Putin com Assad, não a si próprio, perante a chacina em Gaza. Quem aceite o argumento da defesa preventiva teria de o aceitar para a Rússia, porque a lógica cínica e mentirosa é a que foi usada para o Donbass.

Israel foi fundamental para a vitória dos islamistas descendentes da Al-Qaeda. Não apenas pelo apoio indireto, enfraquecendo o Hezbollah e o Irão, mas por ações mais direcionadas. O objetivo foi impedir que o Irão se estabelecesse no norte, nunca foi a queda de Assad, que não era prevista para próximo, aliás. Pelo contrário, interessava-lhe o prolongamento da guerra, que desmobiliza forças, enfraquece qualquer poder no país e garante que os sírios estão entretidos consigo mesmos. Como Israel bem sabe, o HTS não significa qualquer risco para ele. Tem de segurar o poder interno e partilha um inimigo comum: o Irão. Sendo uma fação mais sectária do que nacionalista, tem nos xiitas, não em Israel, o seu alvo prioritário. Não é por acaso que EUA e Ocidente estão satisfeitos com este desfecho.

A oposições é, neste momento, liderada pelo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), descendente do Jabhat al-Nusra, ramo da Al-Qaeda na Síria. Mas conta com o Exército Nacional Sírio, que combateu, aliou-se e pode voltar a combater o HTS. Esta força é composta por uma coligação variada e contraditória, que foi apoiada pela Turquia para controlar os curdos. Junta a Brigada Sultão Suleiman Shah, a Divisão al-Hamza e a Divisão Sultão Murad, alinhadas com Ancara, e a Ahrar al-Sham, que tinha como objetivo "derrubar o regime de Assad" e "estabelecer um estado islâmico governado pela sharia". E há as Forças Democráticas Sírias, uma coligação de combatentes curdos, mas também de árabes e outros grupos étnicos, que contaram com o apoio dos EUA para combater o Estado Islâmico.

Ao deixar fugir o Presidente Assad e ao negociar a transição com o seu primeiro-ministro, o líder do HTS, Al-Jolani, parece totalmente concentrado em segurar o poder que existe, aproveitando a benevolência do Ocidente a inesperada vitória relâmpago. Apesar de não ser provável, bom para o resto do mundo e para a região que, apesar dos riscos, essa transição fosse pacífica. Mas é certo que Israel não o permitirá, porque estabilidade interna dos vizinhos é poder consolidado de possíveis inimigos.

O lema de Israel tem sido o de dividir para reinar. Desgastar o poder dos vizinhos e de quem o possa conquistar. Alimentar o caos e a desordem à sua volta. Promover Estados falhados para ser quem, na região, vai impondo a ordem. Seja no sul do Líbano, no sul da Síria ou em Gaza. E nunca respeitar a integridade territorial dos vizinhos, perante a bonomia do Ocidente.

Israel não está sozinho na interferência direta na guerra da Síria. Tem uma vasta companhia, da Rússia aos EUA, do Qatar e Emirados ao Irão, da Turquia ao Hezbollah. A única coisa que o distingue é a rapidez com que mudou de lado, para ter a certeza que ninguém conquista realmente o poder. Israel não é o único foco de destabilização do Médio Oriente. Mas quem mais vai ganhando com o caos que ajuda a promover.»


10.12.24

O progresso matou a beleza?

 


Campainhas de porta Arte Nova, Barcelona, cerca de 1900.

Daqui.

E 𝐧ó𝐬 𝐚𝐢𝐧𝐝𝐚 𝐧𝐨𝐬 𝐩𝐫𝐞𝐨𝐜𝐮𝐩𝐚𝐦𝐨𝐬 𝐜𝐨𝐦 𝐨𝐬 𝐜𝐨𝐦𝐩𝐚𝐭𝐫𝐢𝐨𝐭𝐚𝐬

 

Sigam!

10.12.1948 – Declaração dos Direitos Humanos




 

Em 10 de Dezembro de 1948, os países-membros da ONU aprovaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com 48 votos a favor e 8 abstenções (União Soviética, Bielorússia, Ucrânia, Polónia, Checoslováquia, Jugoslávia, Arábia Saudita, e África do Sul). A iniciativa surgiu como uma reacção às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra.

Ver no Youtube para evitar sobreposição de legendas:


Quando se destrói o que está a ser bem feito…

 


«Quem nunca necessitou de ser cuidado ou de cuidar de alguém em contexto de saúde ou em situações de dependência? Um país envelhecido como o nosso e impreparado em termos de respostas sociais para responder ao envelhecimento progressivo não pode dar-se ao luxo de, numa decisão abrupta, sem qualquer aviso ou comunicação prévia, extinguir o Centro de Competências para o Envelhecimento Ativo (CCEA).

Criado em 2023, com o objetivo de formação e capacitação dos cuidadores e cuidadoras de pessoas mais velhas e de apoio às políticas do envelhecimento activo, o CCEA é apontado como exemplo a seguir pelos países da União Europeia e UNECE (Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa). Portugal possui um plano de ação que o levou a ser destacado em termos internacionais como o primeiro país a ter um programa multissetorial que está a servir de modelo para vários outros, até por ter foco não na longevidade, mas na melhoria da qualidade de vida das pessoas.

Contudo, o Governo entendeu substituir a palavra “envelhecimento” por “longevidade”, como se para atingir a longevidade não fosse necessário envelhecer!

O CCEA tem, na sua sede em Loulé, 21 pessoas a trabalhar e mais duas em cada polo aberto em 17 distritos do país. Possui uma equipa multidisciplinar com enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais e gerontólogos, para garantir qualidade e especialidade multidisciplinar. No ano de 2024, formou 5000 cuidadores em todo o país. Foram criados cursos grátis, para cuidadores formais e informais, de cuidados aos adultos mais velhos, nutrição, prevenção da violência, cuidados com a demência, entre outros, sendo a oferta ajustada às solicitações dos cuidadores.

Além deste trabalho tão necessário, o CCEA apoia ainda a implementação do Plano de Ação do Envelhecimento Ativo e Saudável, com ações preparadas para as escolas, ações de prevenção em saúde e bem-estar, estimulação cognitiva para a prevenção da demência, walking football, apoio aos municípios para implementação no país de uma política de proximidade que chegue às pessoas (estando em elaboração mais de 60 planos municipais de envelhecimento), empoderamento sénior com a criação dos conselhos municipais da vida sénior, difusão de informação para que os apoios cheguem efetivamente aos mais necessitados, caso do Complemento Solidário para Idosos (CSI), o programa de saúde oral grátis para as pessoas mais velhas, sistema de transporte para acesso à saúde, entre outras atividades.

Ficámos a saber que tudo isto foi extinto, no passado dia 26 de novembro, pelo actual Governo, que parece querer privilegiar uma visão meramente assistencialista e redutora do envelhecimento ativo, ignorando o papel de oportunidade e de possibilidades de atuação múltipla que deve ter. A APRe! lamenta a destruição daquilo que está a ser bem feito, ao ser cancelado todo um trabalho, em curso, de contributo para a mudança estrutural da sociedade portuguesa, colocada em causa com esta extinção do CCEA.»


O analista imparcial

 


9.12.24

Luzes? Bem precisamos

 


Candeeiro de mesa, vidro camafeu e bronze dourado, cerca de 1900.
Émile Gallé.


Daqui.

Presidenciais

 


Ninguém ainda acabou de ponderar, mas há mais um que pondera.
Já dá para criar um clube de preponderantes – sem mulheres, só de fato e gravata.

09.12.1425 – A minha Universidade

 


A minha querida Universidade, hoje Katholieke Universiteit Leuven, mas que, até 1970, incluía também a actual Université Catholique de Louvain, foi fundada há 599 anos – em 2025 haverá certamente uma grande festa.

Nem sei quantas centenas de horas terei passado nesta magnífica Biblioteca, mas de uma coisa não duvido: sem ter estado quase seis anos da minha vida nesta Universidade, podia ser hoje não sei exactamente o quê, mas certamente não aquilo que sou.

Síria: não é a vitória do bem contra o mal, é o mal menor que passou a ser o maior

 


«Estive na Síria, em 2006, quando se vivia mais um conflito entre o Líbano e Israel, e Damasco e Alepo eram invadidos por libaneses em fuga. Valendo o que vale o olhar superficial do visitante, mesmo que atento e informado, era evidente a natureza autoritária e laica do regime de Assad. As duas coisas. A brutalidade do regime era tão visível como a tolerância religiosa. A isso não será estranho o facto de a elite que concentrava o poder político pertencer a uma minoria, os alauitas (xiitas), herança de um poder colonial que soube garantir que os governos locais não dependiam do povo para dependerem dele.

Conhecendo boa parte dos países em revolta, acompanhei com entusiasmo a Primavera Árabe. Depois dela, reaprendi, como todos, que pior do que a ditadura só o caos. E que quadros pintados a preto e branco, sobretudo nesta parte do mundo, raramente são realistas.

As ditaduras árabes, tivessem sido apoiados pelos EUA ou pela URSS, davam à laicidade a cor da repressão política, cívica e religiosa. Por isso, as alternativas foram lideradas por islamistas que acrescentaram à tirania do poder político o totalitarismo do poder religioso. Onde existiam movimentos islamistas consolidados, com trabalho social no terreno, as coisas ainda seguiram um caminho mais ou menos controlado. Onde a feroz repressão não deixara espaço para qualquer dissidência, como na Síria, o caos veio de fora.

Esta é a parte interessante, se lhe podemos chamar assim, do que assistimos nos últimos 13 anos de guerra civil na Síria, mas também no Iraque ou no Estado falhado da Líbia: serem consequências e dominó do intervencionismo ocidental. Um intervencionismo que armou aqueles que depois combateu. Contra os soviéticos, os que iria combater no Afeganistão. Contra o Irão, os que iria combater no Iraque. Contra Saddam, os que iria combater no Iraque e na Síria. No caso da invasão do Iraque, os neocons, profundos ignorantes do mundo e da região, pretendiam semear uma democracia para que se espalhasse pelo Médio Oriente. Estavam só a dar pauladas num vespeiro, como crianças inconscientes. Semearam o caos que se espalharia pela região.

Se da invasão soviética do Afeganistão nasceria a Al-Qaeda, da invasão do Iraque nasceria o Estado Islâmico, que faria a Al-Qaeda parecer decente. E o caos iraquiano expandiu-se para a Síria, trazendo a mais primitiva fúria religiosa com ele.

NEM GUERRA FRIA, NEM BEM CONTRA O MAL

Não cabe aqui a explicação do intricado xadrez de forças e alianças que combatem na Síria. Quem queira perceber este momento, aconselho a audição de esta conversa desapaixonada, de 45 minutos, com o jornalista sírio-americano Hassan Hassan, do “New Lines Magazine”. Fica esta ideia: quem tente enquadrá-la no confronto simplista entre Rússia e Irão, de um lado, e o ocidente e aliados, do outro, acabará por enfiar qualquer compreensão da situação num beco sem saída. A tentativa de restaurar a ordem da Guerra Fria, com novos alinhamentos, nunca baterá certo em lado algum, aliás. Ou é preguiça, ou infantilização da audiência com uma história moral simples.

É verdade que Assad contou com o apoio da Rússia, resultado de alinhamentos antigos com a URSS e da necessidade de Putin ter um pé no Médio Oriente. Aprendendo com Washington, Moscovo sabe que um líder fraco e dependente é o ideal para fazer tudo o que se queira.

É verdade que o Irão, para além da aliança oportunista com a Rússia (bem diferente foi no passado), tem em Assad, xiita num país maioritariamente sunita, um aliado natural. E é verdade que o Hezbollah se envolveu na guerra civil, competindo, na ferocidade, com russos e islamistas radicais, o que lhe fez perder a simpatia que merecia pela resistência a Israel, quando lá estive, em 2006. Mas a simplicidade acaba aqui.

Israel canta vitória, mas está nervoso, como se percebe pelas movimentações militares. Preferia um Assad fraco e sem legitimidade popular, mesmo que desse apoio ao Hezbollah, a um novo regime marcado pelo nacionalismo islamista e sensível à pressão popular. Não só aplaudiu como apoiou rebeldes no norte, que enfraqueciam Assad e impediam que o Irão estabelecesse uma base sólida na região. Mas Telavive queria a manutenção do poder fraco de Assad, com a continuação da guerra e o controlo pelo poder vigente do sul do território, onde estão as suas fronteiras. A estratégia israelita sempre foi a de dividir para reinar, mesmo que isso implique o caos na região com reflexos em todo o mundo.

As contradições continuam quando falamos da Turquia. Como imaginam, não é por desejar um vizinho democrático que Erdogan apoiou a coligação liderada pela HTS (sobretudo através do Exército Nacional Sírio, integrante da coligação opositora). Ancara até ofereceu a Assad possibilidade de reconhecimento desde que isso correspondesse a uma aliança contra os curdos. Aliança que os interesses momentâneos de uns e de outros tornou impossível. Erdogan quer controlar os curdos da Síria, para, com isso, esmagar os curdos da Turquia.

Os autonomistas curdos estão num dos momentos mais perigosos, porque dependem da boa vontade do HTS, o grupo salafita que que já controlava o noroeste do país, desde 2017. Foram fundamentais para o combate ao Estado Islâmico e a única coisa decente que existiu naquela guerra. Depois de usados, voltarão a ser abandonados. Como de costume. E como de costume, os democratas do Ocidente não querem saber.

A posição da Turquia é excelente para desmontar as simplificações geostratégicas que nos vendem os construtores de fábulas. O mundo não se divide entre amigos e inimigos do Ocidente e do “nosso modo de vida”. Uma ilusão tão forte que boa parte do atual discurso mediático ocidental está a transformar em libertadores aqueles que, ainda há uns dias, eram terroristas islamitas. E os saudosistas da Guerra Fria (inimigos e amigos dos EUA) compram, por hábito, a velha narrativa, que o exilio de Assad em Moscovo ajuda a alimentar. Só que nem o HTS é libertador, nem um prolongamento da CIA. Tudo é mais complicado do que o nosso umbigo.

O NOVO MAL MENOR OU A NOVA TRAGÉDIA

Depois de Mubarak, Saddam e Kadafi (todos diferentes), chegou a vez de Bashar al-Assad. O avanço inesperado da coligação de oposição, que conseguiu em quatro dias mais do que numa década, espantou o mundo, o poder de Damasco e, suspeito, os próprios rebeldes. Para isso terá contribuído o enfraquecimento simultâneo do Irão e do Hezbollah, no confronto com Israel, e da Rússia, assoberbada com a guerra na Ucrânia. E assim caiu o último ditador laico do Médio Oriente.

O caminho que será trilhado pelo Hayat Tahrir Al-Sham (Organização para a Libertação do al-Sha, HTS), movimento descendente do Jabhat al-Nusra, fundado em 2012 como ramo da Al-Qaeda na Síria que recusou aliar-se ao Estado Islâmico (o ISIS que pode vir a controlar parte da Síria), é um mistério. Há promessas de moderação. Há uma aliança com forças mais laicas. Escoltaram o primeiro-ministro para um hotel e o presidente conseguiu fugir, dando sinais de quererem ordem, não um banho de sangue. Fazem promessas de respeito pela autonomia curda e foram tolerantes com a minoria drusa nos territórios que ocuparam. Claro que dizer que os descendentes da Al-Qaeda (com quem cortaram) são moderados é um esforço de contexto. Serem a versão local dos talibãs, desistindo da jihad internacional e passando para um registo mais nacionalista, é curta satisfação. Mas a comparação era com o Estado Islâmico. É sempre uma questão de grau.

Infelizmente, as minhas esperanças com a institucionalização mais ou menos moderada de islamistas, que eram a única alternativa em várias ditaduras árabes, saíram abaladas da Primavera Árabe. Fora do mundo árabe, até foram abaladas pelo percurso de Erdogan, que chegou a ser uma esperança democrática numa Turquia militarizada.

Lembro-me de ter dito, há quase dez anos, na apresentação de “A Síria em Pedaços”, de Bernardo Pires de Lima, que os ditadores têm de cair, mas nem sempre é altura certa para caírem. O caos que se seguiu às primaveras árabes mostrava que ainda não tinha chegado esse momento para a Síria. Não havia uma alternativa de poder que, mesmo que não fosse boa, garantisse que o caos não se instalava no seu lugar. Chegou agora.

Assad já era um cadáver adiado sem controlo de grande parte do país. O caos já está instalado há muito e foi pago com centenas de milhares de mortos, milhões de deslocados e um país arrasado. Assad seria visto, por muitos sírios e o resto do mundo, como o menor dos males quando o caos lhe era alternativa. O banho de sangue que, com a ajuda russa, fez correr pelo país tornou-o, aos olhos dos sírios, no pior dos males. Como se vê pela festa na rua, aliás. Veremos se esta festa é traída, como foram quase todas, depois da Primavera Árabe. Veremos se, derrubado o inimigo que juntava forças tão diferente, regressa outra guerra ou outra tirania. A natureza sectária do HTS não deixa grande espaço para otimismo. Celebre-se o fim de Assad enquanto a Síria não passa para a fase seguinte.

Perante a queda de do carniceiro de Damasco, faço um esforço para ter esperança. Seguramente muito menor do que o esforço do martirizado povo sírio. Espero um dia voltar a passear pelas inesquecíveis ruas de Alepo, ou o que sobra delas; voltar a visitar Palmira, ou o que sobra dela; voltar a sentir a simpatia dos sírios, ou o que sobra dela. Mas, na minha esperança, tento resistir ao engodo que nos vendem, guerra após guerra. A história não é um confronto entre o bem e o mal, a liberdade e a tirania, o certo e o errado. E nada como conhecer o Médio Oriente para o saber. Querem uma prova? O Ocidente está a celebrar a vitória de descendentes da Al-Qaeda.»


Esclarecimento

 


8.12.24

Síria

 



Quando eu perdi uma Nossa Senhora

 


Quando chega o 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, lembro-me às vezes de um pavilhão ao ar livre que servia de sala de aula ao que hoje seria a minha pré-primária, com um calor absolutamente abrasador de um Verão moçambicano, não muito longe da praia da Polana.

Devia ter uns quatro ou cinco anos e tive o primeiro choque religioso de que guardo memória, quando percebi que só havia uma Nossa Senhora e não duas, tão diferentes que me habituara a vê-las! A da Conceição sempre me tinha parecido mais bonita do que a outra porque tinha aos pés muitos anjinhos e não umas pobres alpercatas, pairava nas nuvens e não em cima de uma árvore mais ou menos raquítica, marcava no calendário o Dia da Mãe e devia ser mais importante porque dava direito a um dia com praia e sem escola.

«Avant la lettre», talvez achasse mais do que normal que uma criança que tinha dois pais não ficasse atrás no que às mães dizia respeito.
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08.12.1980 – O dia em que mataram John Lennon

 


John Lennon morreu baleado à porta do edifício onde morava – o Dakota Building –, situado numa das esquinas do Central Park de Nova Iorque.

Primeiro um entre quatro, mais tarde a solo, «the smart Beatle», deixou uma marca que mais de quatro décadas  passadas sobre o dia em que foi estupidamente assassinado não apagaram.

Músico por excelência mas não só, activista também, ele que devolveu a medalha de Membro do Império Britânico à Rainha Isabel II, como forma de protesto pelo apoio do Reino Unido à guerra do Vietname e o envolvimento no conflito de Biafra. Já com Yoko, na década de 70, continuou a envolver-se numa série de iniciativas de luta pela paz, sobretudo e ainda por causa do Vietname. Tudo isto e o apoio explícito a organizações da extrema-esquerda, como os Panteras Negras, estiveram na origem de uma perseguição por parte do governo de Nixon, com abertura de um processo para tentativa de extradição.

«Give peace a chance» (1969) e «Power to the people» (1971), entre outras, inscrevem-se expressamente nesta linha de actuação:






E «Imagine», sempre:


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Não percepciono nada disto

 



«Foi na segunda-feira passada. Um amigo telefonou-me e disse: “Estás na primeira página do ‘Correio da Manhã’.” Fiz o que toda a gente faz nessas circunstâncias: abri o Google, pesquisei “países sem acordo de extradição com Portugal” e dirigi-me para o aeroporto. Durante o percurso, no entanto, outro amigo enviou-me uma fotografia do jornal. A notícia referia-se a uma sondagem sobre as intenções de voto nos candidatos à Presidência da República. O título principal dizia: “Gouveia e Melo esmagador na corrida à Presidência. Almirante é o preferido”. Por baixo, o jornal acrescentava: “Marcelo deixa Belém sem voto da maioria.” E, por fim: “Ricardo Araújo Pereira recolhe preferências.” Dei instruções ao taxista no sentido de voltarmos para casa. Afinal, não era uma notícia para me cobrir de vergonha, era para me cobrir de ridículo. Prefiro assim. Estou habituado.

Dentro do jornal, a parte da notícia que me dizia respeito relatava o seguinte: “Uma das perguntas do barómetro permitia ao inquirido escolher quem preferia que se candidatasse a Belém, com nomes como o humorista Ricardo Araújo Pereira, Ramalho Eanes ou Rui Rio a surgirem entre as figuras apontadas pelos portugueses, ainda que sem expressão.” Portanto, ao que tudo indicava, um cidadão enfadado tinha resolvido responder ao inquérito sugerindo o meu nome como possibilidade para candidato a Presidente. Em princípio, terá hesitado entre escrever “Ricardo Araújo Pereira” ou “um chimpanzé”, optando pela primeira hipótese, por a considerar mais absurda. O facto de um fenómeno não ter expressão nunca impediu os jornais de o noticiarem na primeira página, e foi o que aconteceu. Por isso, receio que se tenha criado a percepção de que integro a lista de candidatos a Presidente da República. É inegável que possuo o que parece ser, neste momento, o requisito essencial para uma candidatura ao cargo, a saber: falar na televisão aos domingos à noite — o que reforça a tal percepção. Ora, como aprendemos esta semana, as percepções são perigosas. O primeiro-ministro deu uma conferência de imprensa às 20 horas para nos informar que, embora Portugal seja um país seguro, existe uma percepção de insegurança. Além de combater a insegurança, ele propõe, por isso, combater a percepção de insegurança, talvez espalhando, pelas ruas e cafés, agentes do Governo que de vez em quando suspiram: “Estou cá com uma sensação de segurança... Acabei de ver dois carros da polícia.”

Impossibilitado de convocar conferências de imprensa para a hora do jantar, gostaria no entanto de aproveitar este espaço para desmentir que seja candidato a PR. O meu trabalho é fazer pouco do Presidente da República. Não aceito ser despromovido a Presidente da República. Obrigado.»