«Estive na Síria, em 2006, quando se vivia mais um conflito entre o Líbano e Israel, e Damasco e Alepo eram invadidos por libaneses em fuga. Valendo o que vale o olhar superficial do visitante, mesmo que atento e informado, era evidente a natureza autoritária e laica do regime de Assad. As duas coisas. A brutalidade do regime era tão visível como a tolerância religiosa. A isso não será estranho o facto de a elite que concentrava o poder político pertencer a uma minoria, os alauitas (xiitas), herança de um poder colonial que soube garantir que os governos locais não dependiam do povo para dependerem dele.
Conhecendo boa parte dos países em revolta, acompanhei com entusiasmo a Primavera Árabe. Depois dela, reaprendi, como todos, que pior do que a ditadura só o caos. E que quadros pintados a preto e branco, sobretudo nesta parte do mundo, raramente são realistas.
As ditaduras árabes, tivessem sido apoiados pelos EUA ou pela URSS, davam à laicidade a cor da repressão política, cívica e religiosa. Por isso, as alternativas foram lideradas por islamistas que acrescentaram à tirania do poder político o totalitarismo do poder religioso. Onde existiam movimentos islamistas consolidados, com trabalho social no terreno, as coisas ainda seguiram um caminho mais ou menos controlado. Onde a feroz repressão não deixara espaço para qualquer dissidência, como na Síria, o caos veio de fora.
Esta é a parte interessante, se lhe podemos chamar assim, do que assistimos nos últimos 13 anos de guerra civil na Síria, mas também no Iraque ou no Estado falhado da Líbia: serem consequências e dominó do intervencionismo ocidental. Um intervencionismo que armou aqueles que depois combateu. Contra os soviéticos, os que iria combater no Afeganistão. Contra o Irão, os que iria combater no Iraque. Contra Saddam, os que iria combater no Iraque e na Síria. No caso da invasão do Iraque, os neocons, profundos ignorantes do mundo e da região, pretendiam semear uma democracia para que se espalhasse pelo Médio Oriente. Estavam só a dar pauladas num vespeiro, como crianças inconscientes. Semearam o caos que se espalharia pela região.
Se da invasão soviética do Afeganistão nasceria a Al-Qaeda, da invasão do Iraque nasceria o Estado Islâmico, que faria a Al-Qaeda parecer decente. E o caos iraquiano expandiu-se para a Síria, trazendo a mais primitiva fúria religiosa com ele.
NEM GUERRA FRIA, NEM BEM CONTRA O MAL
Não cabe aqui a explicação do intricado xadrez de forças e alianças que combatem na Síria. Quem queira perceber este momento, aconselho a audição de esta conversa desapaixonada, de 45 minutos, com o jornalista sírio-americano Hassan Hassan, do “New Lines Magazine”. Fica esta ideia: quem tente enquadrá-la no confronto simplista entre Rússia e Irão, de um lado, e o ocidente e aliados, do outro, acabará por enfiar qualquer compreensão da situação num beco sem saída. A tentativa de restaurar a ordem da Guerra Fria, com novos alinhamentos, nunca baterá certo em lado algum, aliás. Ou é preguiça, ou infantilização da audiência com uma história moral simples.
É verdade que Assad contou com o apoio da Rússia, resultado de alinhamentos antigos com a URSS e da necessidade de Putin ter um pé no Médio Oriente. Aprendendo com Washington, Moscovo sabe que um líder fraco e dependente é o ideal para fazer tudo o que se queira.
É verdade que o Irão, para além da aliança oportunista com a Rússia (bem diferente foi no passado), tem em Assad, xiita num país maioritariamente sunita, um aliado natural. E é verdade que o Hezbollah se envolveu na guerra civil, competindo, na ferocidade, com russos e islamistas radicais, o que lhe fez perder a simpatia que merecia pela resistência a Israel, quando lá estive, em 2006. Mas a simplicidade acaba aqui.
Israel canta vitória, mas está nervoso, como se percebe pelas movimentações militares. Preferia um Assad fraco e sem legitimidade popular, mesmo que desse apoio ao Hezbollah, a um novo regime marcado pelo nacionalismo islamista e sensível à pressão popular. Não só aplaudiu como apoiou rebeldes no norte, que enfraqueciam Assad e impediam que o Irão estabelecesse uma base sólida na região. Mas Telavive queria a manutenção do poder fraco de Assad, com a continuação da guerra e o controlo pelo poder vigente do sul do território, onde estão as suas fronteiras. A estratégia israelita sempre foi a de dividir para reinar, mesmo que isso implique o caos na região com reflexos em todo o mundo.
As contradições continuam quando falamos da Turquia. Como imaginam, não é por desejar um vizinho democrático que Erdogan apoiou a coligação liderada pela HTS (sobretudo através do Exército Nacional Sírio, integrante da coligação opositora). Ancara até ofereceu a Assad possibilidade de reconhecimento desde que isso correspondesse a uma aliança contra os curdos. Aliança que os interesses momentâneos de uns e de outros tornou impossível. Erdogan quer controlar os curdos da Síria, para, com isso, esmagar os curdos da Turquia.
Os autonomistas curdos estão num dos momentos mais perigosos, porque dependem da boa vontade do HTS, o grupo salafita que que já controlava o noroeste do país, desde 2017. Foram fundamentais para o combate ao Estado Islâmico e a única coisa decente que existiu naquela guerra. Depois de usados, voltarão a ser abandonados. Como de costume. E como de costume, os democratas do Ocidente não querem saber.
A posição da Turquia é excelente para desmontar as simplificações geostratégicas que nos vendem os construtores de fábulas. O mundo não se divide entre amigos e inimigos do Ocidente e do “nosso modo de vida”. Uma ilusão tão forte que boa parte do atual discurso mediático ocidental está a transformar em libertadores aqueles que, ainda há uns dias, eram terroristas islamitas. E os saudosistas da Guerra Fria (inimigos e amigos dos EUA) compram, por hábito, a velha narrativa, que o exilio de Assad em Moscovo ajuda a alimentar. Só que nem o HTS é libertador, nem um prolongamento da CIA. Tudo é mais complicado do que o nosso umbigo.
O NOVO MAL MENOR OU A NOVA TRAGÉDIA
Depois de Mubarak, Saddam e Kadafi (todos diferentes), chegou a vez de Bashar al-Assad. O avanço inesperado da coligação de oposição, que conseguiu em quatro dias mais do que numa década, espantou o mundo, o poder de Damasco e, suspeito, os próprios rebeldes. Para isso terá contribuído o enfraquecimento simultâneo do Irão e do Hezbollah, no confronto com Israel, e da Rússia, assoberbada com a guerra na Ucrânia. E assim caiu o último ditador laico do Médio Oriente.
O caminho que será trilhado pelo Hayat Tahrir Al-Sham (Organização para a Libertação do al-Sha, HTS), movimento descendente do Jabhat al-Nusra, fundado em 2012 como ramo da Al-Qaeda na Síria que recusou aliar-se ao Estado Islâmico (o ISIS que pode vir a controlar parte da Síria), é um mistério. Há promessas de moderação. Há uma aliança com forças mais laicas. Escoltaram o primeiro-ministro para um hotel e o presidente conseguiu fugir, dando sinais de quererem ordem, não um banho de sangue. Fazem promessas de respeito pela autonomia curda e foram tolerantes com a minoria drusa nos territórios que ocuparam. Claro que dizer que os descendentes da Al-Qaeda (com quem cortaram) são moderados é um esforço de contexto. Serem a versão local dos talibãs, desistindo da jihad internacional e passando para um registo mais nacionalista, é curta satisfação. Mas a comparação era com o Estado Islâmico. É sempre uma questão de grau.
Infelizmente, as minhas esperanças com a institucionalização mais ou menos moderada de islamistas, que eram a única alternativa em várias ditaduras árabes, saíram abaladas da Primavera Árabe. Fora do mundo árabe, até foram abaladas pelo percurso de Erdogan, que chegou a ser uma esperança democrática numa Turquia militarizada.
Lembro-me de ter dito, há quase dez anos, na apresentação de “A Síria em Pedaços”, de Bernardo Pires de Lima, que os ditadores têm de cair, mas nem sempre é altura certa para caírem. O caos que se seguiu às primaveras árabes mostrava que ainda não tinha chegado esse momento para a Síria. Não havia uma alternativa de poder que, mesmo que não fosse boa, garantisse que o caos não se instalava no seu lugar. Chegou agora.
Assad já era um cadáver adiado sem controlo de grande parte do país. O caos já está instalado há muito e foi pago com centenas de milhares de mortos, milhões de deslocados e um país arrasado. Assad seria visto, por muitos sírios e o resto do mundo, como o menor dos males quando o caos lhe era alternativa. O banho de sangue que, com a ajuda russa, fez correr pelo país tornou-o, aos olhos dos sírios, no pior dos males. Como se vê pela festa na rua, aliás. Veremos se esta festa é traída, como foram quase todas, depois da Primavera Árabe. Veremos se, derrubado o inimigo que juntava forças tão diferente, regressa outra guerra ou outra tirania. A natureza sectária do HTS não deixa grande espaço para otimismo. Celebre-se o fim de Assad enquanto a Síria não passa para a fase seguinte.
Perante a queda de do carniceiro de Damasco, faço um esforço para ter esperança. Seguramente muito menor do que o esforço do martirizado povo sírio. Espero um dia voltar a passear pelas inesquecíveis ruas de Alepo, ou o que sobra delas; voltar a visitar Palmira, ou o que sobra dela; voltar a sentir a simpatia dos sírios, ou o que sobra dela. Mas, na minha esperança, tento resistir ao engodo que nos vendem, guerra após guerra. A história não é um confronto entre o bem e o mal, a liberdade e a tirania, o certo e o errado. E nada como conhecer o Médio Oriente para o saber. Querem uma prova? O Ocidente está a celebrar a vitória de descendentes da Al-Qaeda.»