«Num debate sobre o Ministério Público (MP), a propósito da entrevista do procurador-geral da República, entre Garcia Pereira e Luís Rosa que se tornou imediatamente confrontacional, o jornalista, que Garcia Pereira cognominou “defensor oficioso do MP”, afirmou que as reacções à chamada “delação premiada” se deviam a um “complexo com a PIDE”.
Este cidadão que aqui escreve não tem, nunca teve, nem nunca terá qualquer “complexo com a PIDE”, porque a combateu, porque a conheceu, e porque no dia 25 de Abril de manhã era um e de tarde era outro, entre outras coisas por ver os torcionários com medo a fugir pelos interstícios dos buracos onde estavam escondidos. É por isso que vir com a palavra ambígua e medrosa do “complexo” me é insultuoso.
É também por isso, que, sem comparar o MP à PIDE, que seria sempre absurdo, me preocupa a cultura de impunidade, de desculpas eternas com a “falta de meios”, ausência de responsabilidade e de escrutínio, e discricionariedade, associado a um corporativismo justicialista que faz mal à democracia e torna a luta contra a corrupção um braço do populismo e não uma luta pela legalidade e punição dos corruptos. Mais uma vez foi disto que foi feita a entrevista do novo procurador-geral da República.
A utilização sistemática da violação do segredo de justiça para os jornalistas “amigos”, ou para parecer que há crimes quando não há provas, ou para funcionar como punição sem julgamento, ou – tão mau como isso – a eternização das investigações, escutas telefónicas, violação de prazos e utilização da prisão como mecanismo intimidatório , sempre sem responsabilização e sem apresentar resultados, tudo isto é abuso, abuso de poder e suja uma instituição como o MP e impede que a luta contra a corrupção seja limpa, transparente e eficaz. Eficaz, sem abusos. É mais difícil? Não estou certo, dá é mais trabalho, exige mais competência e uma outra cultura de responsabilidade.
Quanto à “delação premiada”, tenho sentimentos contraditórios. Se for excepcional, cuidadosamente aplicada, e partir de um absoluto estado de necessidade, e com controlo de um juiz, pode ser útil para o combate à corrupção. Mas temo que, com a cultura justicialista do MP, seja apenas mais um instrumento de facilitismo para acusar sem provas e obter material excitante para as fugas de informação.
Uma das piores coisas que se pode dizer dos portugueses com abundantes provas é a sua propensão para a denúncia. Não se pode ocultar a evidência. Existe uma cultura de delação entranhada e hoje exponenciada no surto de ressentimento que domina a deriva populista.
No Arquivo Ephemera todos os espólios de alguma dimensão estão cheios de denúncias, antes e depois do 25 de Abril. Seja o espólio de Sá Carneiro, seja o de Otelo tem correspondência com um terço de denúncias, quase tantas como as cunhas. Há mil e uma explicações por que é assim, mas uma avulta – a de um sentimento de ausência de poder, de qualquer poder mesmo mínimo, associado a várias formas de inveja, pessoal, familiar, em casa, no emprego, e muito isolamento psicológico. Os textos miseráveis das cartas com denúncias são de leitura incómoda e mesquinha, mas são demasiado comuns para que se possa imaginar que efeito podem ter quando se une na prática da “delação premiada” a fome do MP ao excesso de alimento dos denunciantes.
Se já hoje o MP abre inquéritos face a denúncias anónimas e absurdas com o argumento de que tem de o fazer – a explicação mais esfarrapada que há –, a denúncia com vantagens, a começar a de apagar crimes em que se participou, pode tornar-se comum e a ser abraçada por procuradores demasiado desejosos de ouvir um eco fácil e que pode ser pouco fiável face às suas suspeitas.
Voltando ao “complexo”, sem dúvida que a denúncia generalizada pode ser associada à PIDE (a Legião Portuguesa também recebia muitas denúncias), mas tudo que favoreça um prémio para esse acto é um terreno malsão. E o terreno contaminado cresce todos os dias com o veneno que vem da impunidade anónima da cloaca das redes sociais. Vamos ver.»
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