«Por duas vezes, em 2016 e 2021, alguns milhares de pessoas assinaram duas petições promovidas pela Nova Portugalidade, uma associação de extrema-direita que se tem dedicado ao revisionismo histórico em relação ao Estado Novo. O objetivo dos peticionários era garantir, na requalificação da Praça do Império, em Lisboa, “a não remoção dos brasões florais ali existentes no passado” (que incluíam os das antigas províncias ultramarinas, hoje Estados independentes), porque a praça projetada “deve ser preservada fiel, autêntica e integralmente”. A não remoção de uma coisa que existiu no passado desafia, à partida, a lógica, mas já lá vou.
Para os peticionários, o projeto de reformulação da praça teria o “propósito claro, indisfarçável e puramente ideológico de remover os brasões, em particular os que aludem ao antigo Ultramar português, num ato de lastimável talibanismo cultural” e numa “manipulação autoritária da História e o afunilamento de opiniões”. Um afunilamento que resultaria da “importação de uma tradição que não é portuguesa, mas anglo-saxónica”. A tradição genuinamente portuguesa seria, claro, a que afirma que “Portugal foi uma nação africana”. A deles.
A Nova Portugalidade exigia, assim, que se suspendesse o atual projeto e “promover um projeto de reabilitação que não preveja alterações formais e conceptuais, valorizando toda a estrutura existente e preservando-a integralmente para o futuro, incluindo todos os brasões florais, históricos e ultramarinos, lá representados.”
A PRAÇA QUE ORIGINALMENTE NÃO TINHA BRASÕES
Comecemos pelo mínimo de enquadramento (aconselho, para análise mais pormenorizada deste caso, a leitura exaustiva do relatório da Assembleia Municipal de Lisboa sobre a petição, muitíssimo útil para este artigo), que faltou a muito colunista automático que, em 2016 e 2021, veio em defesa do património e contra a reescrita da História, contribuindo para um atentado ao património e para reescrever a História.
O Jardim da Praça do Império, desenhado pelo arquiteto-chefe da Exposição do Mundo Português de 1940, Cottinelli Telmo, ajardinado por Vasco Lacerda Marques, tendo no centro uma fonte com as armas das famílias dos principais descobridores, autoria de António Lino, ligou o Mosteiro dos Jerónimos ao rio. Para isso, o edificado então ali existente foi demolido. E não havia brasões alguns.
A escolha deste espaço para a exposição de propaganda do Estado Novo, em 1940, tinha uma história. A centralidade daquela zona para a exaltação da identidade nacional e imperial vinha de antes: da reabilitação do Mosteiro dos Jerónimos; da trasladação das ossadas de Camões para os Jerónimos; da escolha de Belém para a comemorações do nascimento do Infante D. Henrique, da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia e do Achamento do Brasil, no final do século XIX; e da escolha do Palácio de Belém como sede da Presidência, em 1912.
Na década de 1960, na celebração dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique, foi usada de novo. O Padrão dos Descobrimentos, que pretendia ser efémero para a exposição de 1940, foi só então construído em betão e pedra. E, nesse mesmo momento, acontece a XI Exposição de Floricultura, em que são exibidas as armas das capitais de distrito, das províncias ultramarinas e das ordens de Aviz e de Cristo. Tratava-se de uma exposição provisória, que não fazia parte do projeto original de Cottinelli Telmo e Vasco Lacerda Marques. Fruto do seu anacronismo e efemeridade, acabou, como geralmente acontece, abandonada e irreconhecível.
Em 2015, a Câmara Municipal de Lisboa aprovou um concurso de conceção para a elaboração de projeto de renovação do Jardim da Praça do Império. O júri era composto por Simonetta Luz Afonso, Adriano Moreira, Elsa Peralta, um representante da Associação de Arquitetos Paisagistas, três representantes dos serviços da Câmara. Simoneta Luz Afonso e Adriano Moreira estariam, tenho a certeza, como representantes do “talibanismo cultural e indisfarçável pulsão ideológica”. O projeto não contemplava a “conservação” dos arranjos florais com os brasões.
Até que os ativistas da Nova Portugalidade apareceram. Não se tratava de manter as coisas como estavam, mas, em 2021, tornar permanente o que não o fora, reconstruindo o passado no presente. Mas o que tinham em mente era mais do que isso, como veremos.
SEM VALOR PATRIMONIAL
Nunca esteve em causa qualquer atentado ao património. O projeto de restauro respeitava a Carta de Florença, onde se lê que “se um jardim desapareceu totalmente ou se os vestígios que restam servem apenas para traçar conjeturas sobre as suas sucessivas fases, a reconstituição não deve ser considerada”. E até se diz que, “em princípio, não se deve privilegiar uma época em prejuízo das demais”, que foi o que os peticionários defenderam, privilegiando uma intervenção efémera, no quadro de uma Exposição de Floricultura, entretanto perdida, em prejuízo do projeto inicial. Não por razões patrimoniais, mas políticas.
Por outro lado, os brasões não eram património classificado. E não é por acaso. Não preenchem qualquer requisito presente na Lei de Base de Proteção do Património Cultural, como se explicava no relatório da Assembleia Municipal: não são marcados por uma específica autoria, não apresentam desenhos originais, não correspondem a elementos de antiguidade e memória coletiva da cidade e nem se inserem no perfil arquitetónico do projeto da Praça do Império.
Por fim, estamos perante as ruínas do que foi arte efémera, nunca pensada para ali permanecer como património. Claro que pode haver uma passagem do efémero para o perene. Foi o que se fez, por razões políticas e não patrimoniais, com o Padrão dos Descobrimentos, em 1960. Mas quando se quer preservar na memória a arte efémera ela é fotografada, por exemplo. A própria Assembleia Municipal recomendou que fosse criado um circuito interpretativo, no túnel de acesso ao Padrão dos Descobrimentos, mostrando a evolução da Praça. Só que a Nova Portugalidade procurava uma afirmação política, não uma preservação patrimonial. Se as coisas fossem como defendem, andávamos a preservar os murais do MRPP, que têm o valor histórico de retratar um determinado período da nossa vida política. Não o fazemos.
Foi o próprio Cottinelli Telmo a escrever: “conservar bocados da Exposição (...) parece-me erro! São restos, ruínas, farrapos.” Imagine-se em relação a uma exposição temporária de floricultura, plantada duas décadas depois.
Sobrava então o “valor espiritual”, um eufemismo dos peticionários para falar do “valor ideológico” do que não tem valor patrimonial. E aí, entramos no debate estritamente político em que o país que construiu o seu regime democrático constitucional com base no fim da sua vocação imperial quer celebrar, não as “descobertas” ou a expansão, mas a possessão das colónias, que os brasões representam, na sua marca datada dos anos 60. É bom recordar que estes brasões foram criados em 1935, sem qualquer lastro histórico para além de alguns elementos heráldicos anteriores. Ou seja, mesmo do ponto vista simbólico o seu valor patrimonial é irrelevante.
Não era sequer o Império que os peticionários queriam celebrar, era a representação política que o Estado Novo fazia do Império. Não por acaso, repetiram, na petição, toda a retórica e a linguagem que a ditadura usava para o caraterizar. Não havendo qualquer tentativa de preservação patrimonial que, como veremos, os próprios peticionários abandonaram para abraçar uma solução que desrespeita grosseiramente o que ali alguma existiu ou foi projetado, é um património político e ideológico, eles sim, que defenderam.
CRIAR PATRIMÓNIO PARA REABILITAR O COLONIALISMO
Numa coisa estava toda a gente de acordo: a recuperação dos brasões era, pelo nível de degradação e a inexistência de profissionais especializados para o fazer, inviável. Os próprios peticionários reconheciam que o património que o projeto de recuperação supostamente iria destruir era irrecuperável. Ou seja, a conversa da destruição patrimonial serviu para agitar fantasmas que uns idiotas inúteis transformaram em crónicas indignadas. Não havia nada de recuperável.
Da defesa da manutenção do projeto construído pelo Estado Novo, porque nada podia ser mudado, os peticionários passaram para a fase seguinte: aquilo poderia ser reproduzido na calçada, dando-lhe o caráter permanente que nunca teve. Subitamente, o argumento que tinha sido usado contra todas as alternativas apresentadas (como a reprodução dos símbolos heráldicos dos atuais Estados de Língua Oficial Portuguesa), que era o respeito absoluto pelo projeto de Cottinelli Telmo, evaporou-se. Podíamos, afinal, recriar, mudar, inventar. Até podíamos fixar no chão os brasões que o Estado Novo criou para as colónias, em pleno século XXI. Já não estamos a falar de preservação de seja o que for, mas da construção, em 2022, de um monumento ao colonialismo, com brasões de províncias ultramarinas que não existem, projetadas e desenhadas agora, sem relação com o que alguma vez existiu ou teve para existir.
O que eles queriam não era conservar património que já era irrecuperável, mas criar património novo. Às expensas da autarquia, exigiam ter um monumento às suas próprias convicções políticas. Este grupo político de extrema-direita, que se faz passar por defensor da memória histórica, apossou-se de uma praça de Lisboa, como se tivesse qualquer direito de pernada sobre a história do país, apesar da ditadura de que se sentem herdeiros ter sido derrotado há quase meio século.
Na petição, lamentava-se ser dada “mais atenção ao memorial à Escravatura no Campo das Cebolas do que à comemoração da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”. Esclarecedor é que o indigno empedrado já tenha sido inaugurado com a presença do Presidente da República, enquanto o memorial nem ainda saiu do papel. Talvez diga alguma coisa do poder que estas pessoas vão ganhando.
Dirão que nada disto tem importância, são apenas pedras de calçada. Equívoco displicente. A extrema-direita sempre teve, em Portugal, um problema para se impor: a memória. O que ali estava em causa não eram os símbolos do Império, mas os símbolos do Estado Novo, para quem o Império era instrumental. Desmemoriar, passando a contar a nossa História através da imagética do Estado Novo, é essencial para se naturalizar. E fazem-no à boleia de quem não quer chatices com coisas simbólicas.
E assim conseguiram impor a Lisboa, em pleno século XXI e em nome da proteção do património que nunca existiu, um empedrado definitivo com brasões coloniais que nunca estiveram projetados ou existiram dessa forma, tornando definitivos arranjos florais que se pretendiam efémeros. Nunca foi a preservação do património, que os próprios não se importaram de adulterar grosseiramente, que esteve em causa. Foi a afirmação, no presente, de um discurso derrotado pela História. Foi, ao contrário do que acusam outros, uma afirmação estritamente ideológica.»
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