Este blogue vai publicar, nos próximos
dias, posts relacionados com o 25 de Abril. Este é o primeiro, da Rita Veloso,
e é divulgado hoje porque nele se refere uma carta escrita há exactamente 41
anos.
Há 38 anos a minha mãe acordou-me era
noite cerrada e disse-me que me ia deixar em casa dos meus tios.
Protestei muito, porque ia ter uma prova
escrita e toda a gente sabe que as provas na 1.ª classe são muito importantes.
Não me ligou nenhuma e não me levou à
escola...
Desde então tenho protestado por não me
ter levado com ela para o Largo do Carmo.
Acompanhei a família a seguir os
noticiários, o Fialho Gouveia a fumar desalmadamente enquanto dizia coisas
totalmente incompreensíveis, para mim, pelo menos. Era uma revolução, uma
revolução, diziam os meus tios histérico-nervoso-jubilantemente!
Mas só percebi bem o que isso queria
dizer passados dois dias, quando cheguei a casa depois de umas rotineiras
compras e o meu pai estava sentado no sofá... Aqui? Nesta sala? Em casa?? Neste
sofá vermelho?? O lugar natural do meu pai era o Forte de Peniche, quando muito
o Hospital-Prisão de Caxias. Preso político desde os meus dois anos e meio, ele
estar em casa era improcessável.
(Ah!, preso político queria dizer que
tinha sido preso por política e política não queria dizer roubar carros nem
bancos, como a minhã irmã em vão tentava explicar aos colegas na escola.)
Ao fim de cinco anos a vê-lo através dos
quadradinhos dos vidros do parlatório ou na sombria sala vigiada das visitas
comuns, ter direito a um colo no MEU sofá vermelho foi muito bom!
Obrigada, MFA, Salgueiro Maia, também por
isso!
Nas semanas seguintes já organizava as
manifs do colégio (com direito a porrada dos esquerdistas e tudo!), fornecendo
as letras das músicas da revolução. A minha preferida era o Hino de Caixas;
assim lia eu até a minha mãe me corrigir...
Há 6 anos, no Rossio depois da manif
"furtaram-me" a mala. Lá dentro tinha o meu caderno da 1.ª classe, do
período Março-Abril. Era um registo enternecedor daquela época, com um desenho
fabuloso do primeiro 1.º de Maio, outros com dois burros copiados do livro de
leitura, com as legendas de Marcelo Caetano e Américo Tomás e um Sol a rir às gargalhadas,
ou ainda aquele do aquário com peixes, em que só um terço da água tem cor e ao
lado tem a legenda rebelde "Agora não pinto mais, porque fiquei sem
tinta". Como apanha também Março, o antes era visível
em respostas dos TPC:
P: Qual a profissão do teu pai?
R: O meu pai de momento não trabalha.
P: Gostarias de ter a mesma profissão?
R: Eu cá não gostava nada!
Nunca recuperei esse caderno, nem outros
documentos idênticos que levava... E eram a única coisa que de verdadeiro valor
estava na mala.
Há pouco tempo ganhei coragem para abrir
a caixa das cartas que o meu pai enviou à minha mãe durante aqueles cinco anos.
Permitiu-me ouvi-lo com ouvidos de adulto, tão diferentes dos que tinha quando
morreu... Partilho um excerto, longo, de uma delas, escrita a 14 de Abril de
1971, ou seja, há 41 anos. Diz que escreve como gostaria um dia de falar com as
filhas. Nós ouvimos.
Há meses que ando a ler uma história
universal mediocre, em 20 volumes. (Vê lá tu! Ainda me sucede, como ao
personagem do Eça, dizer depois "escapou-se-me tudo") Ao longo de
páginas e páginas, vão sendo engolidas gerações e gerações. Cartas quase iguais
às que hoje se cruzam, foram já escritas. Transcreve a tradução duma, gravada
em placas de argila há não sei quantos milhares de anos: um homem escreve a uma
mulher perguntando-lhe dum filho, dos parentes, falando-lhe do seu amor, dos
seus projectos e das suas preocupações. Montanhas anónimas de pó! Para quê? Às
vezes, estremeço e caio no Pessoa: "Sempre uma coisa defronte da outra /
Sempre uma coisa tão inutil como a outra / Sempre o impossível tão estúpido
como o real / Sempre o mistério do fundo tão certo como sono de mistério da
superfície / Sempre isto e sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra!"
Mas não é exacto: não foram pó que ao pó regressou; não foram nada
acumulando-se sobre coisa nenhuma. Tudo isto, até estes versos de Pessoa, até
estas palavras, até esta inquietação angustiada, até estas grades, criaram e
acumularam. Estão aqui connosco, todos, neste nosso mundo e em nós. Lembro uma
frase (...) sobre as tendências "naturais" do homem. (...) É do
século XVIII essa óptica de que a "civilização" afasta o homem do que
lhe é natural! Pura idealização a substituir uma outa mística! A história do
homem não é senão a história natural duma espécie animal: a espécie humana.
Bicho sui generis, a sua história é complexa, mais rápida, multiforme, sujeita
a leis também específicas. Mas ainda e sempre uma história "natural":
que outra coisa poderia ser? Dito doutra forma, a natureza do homem constroi-se
num processo histórico; não é qualquer coisa de fixo, transcedente: é o que
historicamente vai sendo. É tolo - e é mau - reduzir a natureza do homem à
bestialidade primitiva: ao viver em hordas, à meia dúzia de gritos guturais, à
promiscuidade, à ainda animalidade do comer, do habitar, do sentir, do amar, do
pensar. Natural também não se confunde com instintivo: negaríamos a realidade
palpável do que melhor construímos e somos - ou podemos ser. À (...) citação
contraponho esta: «é numa fase adiantada da história do homem que se desenvolve
e se produz pela primeira vez a riqueza sensorial "humana", o ouvido
musical, a vista sensível à beleza formal, em suma, os sentidos capazes de
gozos já "humanos". O homem constroi-se a si próprio humano"» Outras
citações ainda mais explícitas eram possíveis. O erro é empobrecer a natureza
humana fixando-a num certo homem duma dada étape histórica. O crime é cobrir
com o manto do "natural" (logo inevitável, logo bom) intuitos ou
sensibilidades ou erros ou caracteristicas grosseiras e mesquinhas - quantas
vezes, afinal, apenas a própria imagem; ou, dito doutro modo, mascarar de
"natural" o que é já rejeitado pelo próprio homem, o que é já hoje
historicamente desumano. Abre-se o caminho ao que se quer e a tudo...
Em quase todas as épocas, grupos de
homens buscam para a vida um sentido alheio ao facto essencial de pertencerem à
espécie humana - ao que chamamos humanidade. E encontram-se sós, angustiados
perante a morte. Alguns atiram-se à conquista cega duma felicidade a curto
prazo, agora e aqui, porque a morte é imprevisivelmente certa. Foge-lhes a
juventude, fogem-lhes os dias. Velhos, velhos, fazem constantemente as contas
ao que ganharam ou perderam: e sempre se perdem por inteiro. Desenfreados (com
mais ou menos verniz supra-espiritual ou supra-sensível), afundam-se em
qualquer ópio: no haxixe ou na sensualidade ou no vinho ou no jogo ou em
qualquer coisa, mais ou menos idêntica. Tentam atafulhar em cada momento uma
eternidade que lhes foge. Revelam por vezes a lucidez de quem sabe que apenas
se atordoa, de quem se sabe um produto alienado e quase sem culpa duma
humanidade que se constrói dividida. "Cadáveres adiados que procriam"
- ainda F. Pessoa. O fenómeno atinge, porém, expressões mais significativas e
complexas em dados momentos históricos: na decadência grega ou romana, no
século XVII da Inglaterra ou XVIII da França, etc; um pouco em toda a parte,
quando esta história tumultuosa que fazemos põe em causa valores estabelecidos
e simultaneamente aliena e destrói os laços dos homens com o humano; quase
sempre, precisamente nas épocas de rotura em que, num outro pólo, transparece
um homem mais humano, se afirma mais rica e exemplar a construção da grandeza
inequívoca do homem. Hoje, também e mais do que nunca: é o mundo marginal dos
hippies, dos provos, dos blusões negros, e o resto - que, afinal, apenas
condensam com maior virulência, como num abcesso, a desorientação de largos
estractos. Mas as caracterísitcas são ainda idênticas: a desumanização, agora
desenfreada, a solidão vazia vazia, o esgotamento, a loucura, o suicídio -
fisico ou não. Alienados no individualismo vazio, no gozo epidérmico,
saltitantes e instáveis na busca do prazer fácil, acordam cada vez mais sós,
mais mortos, mais condenados. Não é uma conclusão moralizante que formulo; é a
constatação do logro, da total ineficácia para construir mesmo e sobretudo uma
qualquer felicidade pessoal, possível apesar de tudo. O homem só se recupera
humano identificando-se com os objectivos naturais (historicamente naturais) da
própria espécie: a ética humanista é válida porque é a única senda possível
para essa identidade (contraditória, turtuosa e turturada, embora) do homem com
a sua humanidade. Eu sei: só se vive uma vida. Individualmente é muito importante,
mas não conduz a nada dar-lhe um qualquer significado imediatista, de
superficie, de flor-da-pele. O encontro com a morte é irrelevante para pedaço
duma humanidade que essa sim se constrói e perdura. Que construímos e em que
perduramos. Naturalmente humana, breve radicalmente humana.
Escrevo-te aos supetões porque
estou de faxina. Não, com certeza, com palavras abertas, não medidas, como
gostava de te escrever. Mas acredita que te escrevo como gostaria um dia de
falar à R e à S, isento, convicto, rebuscando dizer-lhes qualquer coisa de
muito importante para a sua própria vida. Não palavras para me esconder, não
palavras para cobrir fraquezas ou erros ou qualquer outra coisa. Palavras
esforçadas para comunicar com exactidão o que aprendi neste "trânsito mortal".
Porque contraditório, complexo, com isto ou com aquilo, tal como sou - não faço
contas.