Os amigos do Nuno continuam a encontrar-se – virtualmente e não só - e eu tento contribuir, de vez em quando, repescando uma ou outra das suas crónicas publicadas no Diário de Notícias (neste caso, em 23.03.2008). O texto desta tem, no parágrafo final, uma maldadezinha que realço. Quando lá chegarem, verão qual…
«De há muito que a Páscoa me encurrala contra a parede dos piores receios. Porque ainda não estou seguro de passá-la incólume. Por entre as ameaças de rever, pela infamante enésima vez, o Quo Vadis, o Ben Hur e A Túnica, renascem esses pavores antiquíssimos de dar de caras com o Victor Mature. Já nem sei onde ou quando ele aparece. É um terror antigo, que eu só esconjuro com os lençóis a taparem-me a cabeça. À geração que o não sofreu, só posso dizer que era um cepo muito grande e desajeitado, que exibia um fácies imune à circunstância envolvente, no qual apenas uma sobrancelha bailarina se esforçava por revelar quaisquer manifestações de uma nunca provada vida interior. Para ser clemente, admitirei que terá feito um "Doc" Holliday aceitável. Mas só depois de estragar boa parte da cinematografia do seu tempo – com destaque para as superproduções em deslumbrante technicolor, onde milhares de figurantes, vestidos fora de moda, perseguiam objectivos místicos – é que ele recolheu aos curros que a todos, afinal, aguardam. Hoje, estaria justissimamente esquecido, não fosse uma pérfida tecnologia que não esquece nem perdoa um fotograma que alguma vez viu a luz.
Digo isto para que as minhas elocubrações pascais mereçam alguma tolerância. E para que me perdoem todos aqueles cujas palavras ou actos me possam ter remetido para as estranhas declarações que se seguem. Nas minhas horas de terror pessoal, é a desconversar que a gente se entende.
Olho para trás, para o lado bom dos tempos do Victor Mature. Mas aqui, ao pé da porta.
Escassos foram, durante a ditadura, os que arriscaram alguma coisa a combatê-la. É, de resto, sempre assim. Os resistentes não são conquistadores precisamente porque são minoritários. E, se as ditaduras reprimem as minorias que as combatem, é para se assegurarem da omissão amedrontada da maioria que submetem. Nesta reside a chave (ou, se quiserem moralizar), a culpa. É, afinal, com essa amarga maioria que os ditadores governam, ainda que o façam também contra ela. E é no dia em que se prova que a resistência já é, ou pode tornar-se, maioritária, e que o medo e o desespero cedem perante a coragem e a vontade, que a ditadura deixa de ditar e a oportunidade da liberdade acontece.
É claro que, logo após a manhã libertadora, ninguém diria que as coisas foram assim. A vida de quem foi livre antes do tempo é banalizada pelas biografias de ficção dos que só se libertaram do medo quando já não havia razões para ele. E é precisamente por estes serem maioritários (e submergirem os outros) que "as revoluções devoram os seus próprios filhos". A menos que haja, da parte destes, o realismo - outros dirão a "sensatez" - de abdicarem dos seus pergaminhos e aceitarem um código do esquecimento. Então, sim, a História poderá ser reescrita de modo a circunscrever a explicação do alfa e ómega de um regime num chefe, mais umas centenas de legionários e uns milhares de agentes da polícia política - que é como explicar a treva generalizada por uma lâmpada fundida. Os que se ficaram pela omissão, os que voluntariamente se tornaram prisioneiros de projectos de uma vida medíocre, aconchegada e sem risco, reclamarão agora para si um novo passado. Desenganem-se os indignados: ainda que em legítima defesa, a democracia transigirá com esses, permitindo-lhes reinventar uma vida inteira. Porque ela própria só faz sentido e só subsiste enquanto regime maioritário.
Em consequência, não fica bem aos donos de um passado ilustre - que o é porque foi devotado aos outros - reivindicarem agora tal sangue azul contra os demais. Se o querem merecer, a devoção e o desinteresse devem continuar a guiá-los e reivindicar privilégios não é decerto o melhor modo de o fazer. Aguentem-se com as comendas morais e com o que a memória salvar. Mas pior fica, aos que primaram por prudência, silêncio e omissão durante os tempos difíceis, virem agora servir-se do esquecimento pactuado e quererem impor aos novos as fantasias e jactâncias que lhes podem conferir currículo e "moralidade". Porque estes abusam do pacto. E contra eles é legítimo desenterrar todas as verdades.»
A «maldadezinha é esta: o último parágrafo refere-se a ISTO, depois de uma alegre galhofa em que, o Nuno e eu, gozámos a pessoa e o tema.
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