6.9.25

Gaza

 


«As condições de insegurança são flagrantes: à medida que avançam na Cidade de Gaza, as Forças de Defesa de Israel deixam tudo em ruínas, e os palestinianos deixarão de ter os prédios ainda habitáveis. O Exército israelita destruiu um edifício alto no sul da Cidade de Gaza, alegando que servia como centro de informações do Hamas. O ataque marca o início de uma ofensiva em larga escala, que ameaça milhares de civis encurralados e o sistema de saúde já em colapso.»


Alan, a morte que se afogou

 


«A terrível imagem de Alan Kurdi, o menino sírio de dois anos encontrado morto no areal de uma praia turca, voltou a atormentar-nos esta semana. Porque o corpo de uma criança a ser lavado pelas ondas, cara encostada ao areal, t-shirt vermelha e calções azuis, ainda nos deixa de coração partido. Mas sobretudo porque, cumprida uma década de um postal negro que forrou as capas dos jornais do Mundo (incluindo deste), percebemos que nada mudou.

A compaixão coletiva foi-se desvanecendo, ancorada numa normalização do mundo ocidental perante as tragédias humanitárias. E a desconfiança crescente em relação aos "forasteiros", sejam eles crianças ou não, fez o resto.

Desde 2015, morre, em média, uma criança afogada por dia enquanto tenta atravessar o Mediterrâneo Central entre o Norte de África e Itália. Números da Unicef certamente subestimados, devido à falta de testemunhas em grande parte dos casos. O imenso cemitério de crianças em que se converteu o oceano pode facilmente comover-nos, mas nem por isso assistimos a mudanças nas políticas de acolhimento e, em particular, no discurso político que tolda essas estratégias.»

Na íntegra AQUI.

Medo

 


«Uma vez Mário Soares disse-me que dividia os políticos em duas categorias, os cobardes e os corajosos. E que tinha muito mais complacência com os corajosos, mesmo que estivessem nos antípodas do seu pensamento político, ou fossem claramente seus inimigos. E levava isso à letra: num dia, em que estávamos a conversar antes de uma reunião no Museu Vieira da Silva/Arpad Szenes, tratou mal um antigo ministro do PS que se “encostou” à conversa, e que ele achava que cabia, pelas suas atitudes moles, na primeira categoria. E, como se sabe, coragem a Mário Soares não faltava.

Cobardia e coragem são duas palavras essenciais para usar no mundo de brutalidade em que já estamos a viver, porque a sua principal característica é o uso do medo como instrumento de poder. O exemplo perfeito vem dos EUA de Trump, com consequências devastadoras sobre a democracia americana. É o uso e abuso do poder, a vingança, a constante ameaça, a violência incluindo a morte, a prisão, a expulsão para sítios degradantes e violentos, o despedimento, as decisões prejudiciais para empresas, a perseguição de todos os que se lhe opõem, no passado, no presente e no futuro, que pretendem dobrar, humilhar, fazer ceder ao poder absoluto de um autocrata. Autocrata é obviamente um eufemismo porque Trump comporta-se como ditador, classificação que ele admite o honraria, numa daquelas conversas confusas, caóticas, perversas, malévolas, cheias de insultos e ameaças, que ele faz quase todos os dias. Disse: “Muita gente está a dizer que talvez quisesse um ditador”, ele, Trump, e embora acrescente que ele não é um ditador, gosta do “querer”. Qualquer pessoa que conheça o mecanismo psicológico do narcisista sabe que a primeira frase tem muito mais valor do que a segunda. Ele acha que é um elogio que “muitas pessoas” querem que ele seja ditador…

Mas o medo resulta, faz sempre mais cobardes do que corajosos. Ele extorquiu dinheiro de empresas, algum para ele próprio, com o pretexto de que será para a sua “biblioteca”, como sempre fez com os dinheiros de campanha para pagar despesas de advogados, ameaçou que só permitiria a realização de alguns negócios se grupos de comunicação despedissem alguns dos seus maiores críticos, e, de um modo geral, faz exigências a universidades, museus, televisões, escolas, instituições de apoio aos mais pobres, quer nos EUA, quer no âmbito das Nações Unidas, que tem que acabar com programas de inclusão, e tudo o que pareça ser “woke”, LGBTI+, feminismo, anti-racismo, falar da escravatura como um “mal”. A coisa está lá, mas começa a chegar cá.

Tenho a tentação de estar sempre a falar de Trump, porque ele, com Putin e Xi, são os maiores perigos para a humanidade. E estes são os tempos mais perigosos desde 1945, mesmo mais perigosos do que a crise dos mísseis em Cuba. O caso de Trump é o que mais riscos traz para o mundo, até porque ele está a atacar os fundamentos da maior e mais poderosa democracia do mundo, e essa fragilização é a fonte do poder dos outros. Putin e Xi crescem, um pela violência e o outro pela sagacidade do mal, pelo ânimo que lhes traz Trump. Quem esteve por detrás da força da parada militar chinesa e da mistura de ditadores que lá chegaram pelo tapete vermelho é o homem que quer a rendição da Ucrânia, o desmantelamento da NATO, que retira as forças americanas que estavam na frente europeia face à Rússia, que todos os dias enfraquece os que eram seus aliados, para bater palmas a Putin. Trump gosta de Putin e tem medo de Xi, e despreza os europeus, o Canadá, a Austrália, a Coreia e o Japão, todos os países e dirigentes que não lhe prestam vassalagem, mas, ainda mais, que não o seguem na política pró-Putin. Ele, que não sabe onde é a Hungria, gosta é de gente como Orbán, e admira com inveja Netanyahu, e só o trava por causa dessa mesma inveja, porque ele parece mais feroz do que ele, e isso prejudica-o na sua suposta intervenção para acabar as “sete” ou “oito” ou “dez” guerras com que ele diz que acabou, a caminho do Prémio Nobel da Paz.

Putin e Xi crescem, um pela violência e o outro pela sagacidade do mal, pelo ânimo que lhes traz Trump. . Putin e Xi crescem, um pela violência e o outro pela sagacidade do mal, pelo ânimo que lhes traz Trump. . Putin e Xi crescem, um pela violência e o outro pela sagacidade do mal, pelo ânimo que lhes traz Trump. . Os actos de cobardia reforçam o medo, mas um medo que pode transportar revolta. Só que não chegam, é a coragem que nestes dias conta.

O peixe, como se sabe, apodrece pela cabeça e a cabeça do “mundo livre” eram os EUA. Ou a gente a corta, metaforicamente claro, ou o resto do corpo apodrece, já está a apodrecer.»


Notícias da Flotilha

 


5.9.25

Outra bela casa

 


«Casa Joan Baptista Rubinat», Barcelona. 1909.
Arquitecto: Francesc Berenguer Mestres.


Daqui.

No sofá não se salva ninguém



«Independentemente das cores partidárias, iniciativas como a missão humanitária da Flotilla Global Sumud, que partiu ao final da tarde de segunda-feira de Barcelona rumo à Faixa de Gaza, tendo como tripulantes portugueses a coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, o ativista Miguel Duarte e a atriz Sofia Aparício, são de enaltecer.

Sim, porque a indignação dos cidadãos do mundo ocidental perante o massacre e o genocídio que estão a acontecer à nossa frente não está a fazer o barulho necessário. (…)

Criticar uma viagem arriscada para dar voz a quem não a tem, criticar quem prefere estar no terreno em vez de se revoltar no conforto do sofá é confundir comodismo com coragem.»

Ler na íntegra AQUI.

05.09.1972 - O massacre de Munique

 


Há 53 anos, o comando palestiniano «Setembro Negro» tomou como reféns onze membros da delegação israelita aos Jogos Olímpicos que tinham então lugar em Munique. Morreram logo dois desses reféns, mas, depois de uma intervenção de resgate falhada, levada a cabo pelas forças de segurança alemãs, acabaram por morrer mais nove atletas, cinco dos sequestradores, um polícia alemão e um piloto.



Se este foi, de longe, o mais dramáticos dos acontecimentos em Olimpíadas, não foi o único que ficou marcado por interferências políticas ou por protestos:

1896, Atenas (primeiros Jogos Olímpicos da era moderna) – Boicote da Turquia.

1936, Berlim – Os Jogos Olímpicos do nazismo.

1948, Londres – Japão e Alemanha (os dois grandes vencidos da Segunda Guerra Mundial) nem sequer são convidados.

1956, Melbourne – Boicote de Espanha, Holanda e Suíça contra a intervenção soviética em Budapeste e de Líbano e Iraque contra a posição da Austrália sobre o Médio Oriente. A China abandona os Jogos como forma de protesto contra a presença da bandeira de Taiwan.

1968, México – Power Salute

1976, Montréal – Boicote de vários países africanos como protesto contra a presença da Nova Zelândia, por esta ter disputado um desafio de rugby com a África do Sul, alguns meses antes (quando estava impedida de o fazer devido ao apartheid).

1980, Moscovo – Boicote dos Estado Unidos (seguido por 60 países) como protesto contra a intervenção soviética no Afeganistão.

1984, Los Angeles – Países do bloco soviético (excepto Roménia) e Cuba retribuem o boicote de 1980.

1988, Seul – Boicote de Coreia do Norte, Cuba, Etiópia e Nicarágua.

1992, Barcelona – Devido à guerra com a Croácia e a Bósnia-Herzegovina, a Jugoslávia não é autorizada a participar como país, mas os seus cidadãos são admitidos título individual.

(Podem faltar mais casos, evidentemente.) 
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E agora, Portugal? Despenteias-me?

 


«Como é evidente, o povo português é o desgraçado da anedota. Na sequência de um acidente, um homem está no hospital com as pernas e os braços partidos, falta-lhe um olho e come por um tubo. Exasperado com a sua má sorte, solta um palavrão. Uma freira vai a passar e repreende-o:

— Não devia dizer coisas dessas, meu filho. Deus castiga.

— O que é que ele vai fazer, irmã? Despentear-me?

Para mim, que estou a perder o cabelo, a anedota não é assim tão engraçada. Sei que é possível Deus intervir de forma bastante cruel a nível capilar. Todos os dias surpreendo, ao espelho, um careca na minha casa de banho. Levo algum tempo a perceber que sou eu. Ainda assim, ocorre-me aquela anedota sempre que, na televisão, um comentador diz recear que venha aí uma crise política. Confesso que não estou muito preocupado. Creio que uma crise política seria uma lufada de ar fresco. Tivemos quatro eleições legislativas nos últimos seis anos. Uma crise, segundo o dicionário, é uma perturbação, uma mudança súbita, um percalço na marcha regular das coisas. Gostaria imenso que um percalço viesse subitamente perturbar o modo como as coisas têm marchado regularmente. Quando a marcha regular das coisas é haver eleições num período cada vez mais curto, uma crise seria uma legislatura chegar ao fim.

Parece-me que basta examinar o modo como os acontecimentos têm decorrido para perceber o que o país nos está a querer dizer. Houve eleições em 2019. E, a seguir, em 2022 — três anos depois. E, a seguir, em 2024 — dois anos depois. E, a seguir, em 2025 — um ano depois. Não sei se estão a ver onde quero chegar. É muito óbvio que se trata de uma contagem decrescente. Portugal está a contar: 3, 2, 1… Como se faz na passagem de ano. Ou antes do deflagrar de uma bomba. O país parece sentir que alguma coisa está para acabar. Como a contagem decrescente tem a ver com o espaço entre eleições, é possível que o que está para acabar seja a democracia. O cansaço gerado pela instabilidade costuma levar a um desejo de estabilidade. Fartas de legislaturas cada vez mais pequenas, certas pessoas podem sentir-se tentadas a querer experimentar legislaturas cada vez maiores. Com 48 anos de duração, por exemplo. Sendo assim, uma crise não é exactamente um problema. É capaz de ser uma necessidade.»


Consequências políticas

 


4.9.25

Uma casa fabulosa

 


«Villa Les Clématites», Arte Nova, Nancy, France. 1904-1909.
Arquitecto: César Pain.

Daqui.

Estivadores italianos prometem bloquear portos se Israel intercetar flotilha

 


«A próxima paragem da flotilha humanitária com destino a Gaza é Tunes, onde se lhe juntarão as embarcações vindas do Magrebe e mais ativistas e parlamentares de vários pontos do globo, incluindo o neto de Nelson Mandela. Também de Itália se juntarão mais barcos depois de 40.000 pessoas terem assistido em Génova à sua saída.»

Ler o texto na íntegra AQUI.



04.09.1970 - A vitória de Allende

 


Há 55 anos, Salvador Allende ganhou as eleições presidenciais no Chile.

Excertos do discurso  de vitória:



Texto na íntegra AQUI.


Eduardo Galeano em Los Hijos de los días:


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Eduardo Galeano, ainda

 


Habitação: depois da asneira, pouco sobra e tudo se repisa

 


«Nada há de novo nos anúncios do Governo sobre a habitação, a não ser a necessidade de responder politicamente e parecer que se está a fazer coisas. É a repetição da matéria dada para ocupar ciclo noticioso. A preocupação com a habitação disparou, estando ao nível do tema central de um país idoso, que é o acesso à saúde. O PSD sabe-o.

Basicamente, o primeiro-ministro anunciou duas medidas: 1300 milhões de financiamento e a exigência de que todos organismos públicos ponham os edifícios devolutos ao serviço do arrendamento acessível.

Os 1300 milhões de euros são a linha de financiamento, anunciada por Pinto Luz há mais de um ano, quando fez uma apresentação com 30 medidas para mudar a habitação. Nada mais do que isso. É a concretização do aumento do número de casas abrangidas pelo PRR, de 26 mil para 59 mil. Estes 1300 milhões ainda ficam muito aquém do necessário, até porque, na última reprogramação do PRR feita por este governo, foram retirados 391 milhões à habitação.

Diz Montenegro que “o Governo vai dar um prazo aos departamentos do Estado para justificarem património não usado”, findo o qual será usado pelo Estado para fazer arrendamento acessível ou entregue a privados para o fazerem e gerirem. Volta o mito dos edifícios devolutos do Estado. Digo que é mito porque, na sua maioria, este património são escolas, hospitais, quartéis e outros grandes edifícios sem grande vocação habitacional, que exigem anos de trabalho para reconversão e custos brutais. Há exceções, como os edifícios dos antigos ministérios que migraram para a antiga sede da Caixa Geral de Depósitos. Alguns, como os ministérios da Presidência ou da Segurança Social, são antigos hotéis, o mesmo com o da Educação, facílimo de converter em habitação.

Só que Montenegro, qual Frei Tomás, resolveu colocar no mercado 19 edifícios ministeriais e do Estado para serem vendidos para habitação de luxo ou hotéis. Se contarmos apenas cinco dos principais imóveis a alienar de fácil reconversão, dava quase para 400 casas de 80 m2 em Lisboa. Se contarmos outros que também são convertíveis, é muito mais. Centenas de casas que podiam servir as classes médias que continuam a sair de Lisboa, com um sem número de problemas sociais, ambientais, de ordenamento do território ou organização de serviços públicos.

Recordo que, no tempo de Fernando Medina, a Câmara Municipal de Lisboa comprou 11 edifícios da Segurança Social,convertidos em casas para cerca de 250 famílias. Algumas dessas pomposamente entregues por Moedas, mas nem tentou negociar com um governo da sua cor a aquisição destes ministérios centrais na cidade e para uma política de habitação para a classe média.

O que mais ficou das 30 propostas anunciadas por Pinto Luz e Montenegro há mais de um ano? O que é que o Governo fez de lá para cá?

Um ano passado, continuamos sem ouvir falar em qualquer novo empreendimento nos terrenos rústicos que puderam passar a ser usados para habitação. É normal, porque onde há maior crise, como em Lisboa e no Porto, não há terrenos rústicos e, só nos planos diretores municipais, já se preveem terrenos para 30 milhões habitações. Não é por aqui.

Todos os projetos de habitação que as autarquias candidatam a fundos europeus, como o PRR, deixaram de ter de esperar pela avaliação do IHRU e passou a bastar um compromisso de legalidade de procedimentos assumido pela autarquia. Problema: grande parte das Câmaras nem assim avança, com medo de não ser ressarcida depois.

O que teve forte impacto foi a revogação das medidas que, apelidadas de chavistas e comunistas por Montenegro, estavam a dar resultados. O governo mexeu na parte fiscal, estimulando a procura com garantias de empréstimos e isenções de IMT para os jovens até 35 anos. E limitou a oferta com a desregulação e liberalização das medidas sobre o alojamento local. O aumento do preço das casas disparou, com o maior aumento de sempre desde que há registos do INE neste século, 18,7%. É o triplo do aumento na União Europeia, para percebermos bem a dimensão.

Aqui ao lado, o governo regional de Madrid, da mesma cor do governo português, vai proibir todas as novas licenças de alojamento local em edifícios habitacionais. Andamos em contraciclo, abrindo portas, ainda mais escancaradas ao AL, às borlas fiscais aos nómadas digitais e outros estrangeiros qualificados e aos vistos gold.

NOTA: As memórias de um alfacinha, naquela ladeira percorrida pelo Elevador da Glória, tornam a tragédia de ontem ainda mais próxima e difícil. Os esclarecimentos necessários, para além da gestão mediática a que assistiremos nestes dias, terão de ficar para breve. Agora, solidariedade para as vítimas e famílias


3.9.25

Mariana Mortágua fez bem em ir para Gaza?

 



Flotilha: Mariana Mortágua, hoje

 





03.09.1940 – Eduardo Galeano

 


Um grande uruguaio que nasceu em Montevidéu e que nos deixou em 2015. Quis ser jogador de futebol, mas acabou escritor com mais de quarenta livros publicados. Andou a fugir de ditaduras, em 1973 foi preso depois do golpe militar no seu país e exilou-se na Argentina. Com outro golpe militar  o de Jorge Videla em 1976 , viu o nome colocado na lista dos «esquadrões da morte», partiu para Espanha e só nove anos mais tarde regressou à cidade que o viu nascer.

Ia assim o mundo em 3 de Setembro de 1940, descrito por Galeano nesta página de Os filhos dos dias, publicado em 2012:



Dois vídeos:




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Violência doméstica: o crime sem “outro”

 


«É impressionante o poder da imagem mediada. Por vários dias, as televisões transmitiram uma cena de violência doméstica, em que um bombeiro de Machico espancava a mulher à frente do filho de nove anos, que suplicava pelo fim da tortura de que também ele era vítima. Este vídeo, captado graças a uma câmara de segurança, retrata uma cena quotidiana. Uma cena banal num país que passa o tempo a debater o choque com culturas imigrantes que não respeitam as mulheres. O padrão é o de sempre: um homem que ficou “cego” depois de ler umas mensagens e está profundamente arrependido, até voltar a ficar cego.

No ano passado, a APAV apoiou 12 mil vítimas (mais de 80% mulheres), o que corresponde, como sabemos, a uma gota num oceano de silêncio. Mais de metade vivia em situação de violência continuada.

Foram assassinadas 22 pessoas (19 mulheres) em contexto de violência doméstica. A PSP e a GNR registaram mais de 30 mil queixas, mais outra gota no oceano. Basta pensar que, das 12 mil vítimas apoiadas pela APAV, só metade apresentou queixa – são condenados, anualmente, de dois a quatro mil agressores. E, ao contrário do que já pensámos, as coisas não estão com ar de melhorar. 66% dos jovens que já namoraram dizem ter sofrido, pelo menos, uma forma de violência no namoro.

A violência doméstica é o crime violento mais comum em Portugal. No entanto, não povoa o discurso dos políticos que vivem do medo e do alarmismo nem a comunicação social que faz disso negócio. Porque não permite alimentar o ódio ao outro: ao que vive no bairro social, ao cigano, ao imigrante. É um crime democrático. Cometido pelos nossos vizinhos, familiares, gente de todas as classes e credos, culturas e cores.

Nem é um crime cometido pelo "outro", nem nos pode apanhar desprevenidos, na rua. Não povoa os nossos medos, não nos assusta. Não alimenta o terror do cidadão comum. De tão democrático, conseguimos mantê-lo integrado no nosso quotidiano, ignorando as suas vítimas, que tantas vezes nos são próximas. Desde que, claro, fique invisível. Quando é mostrado, num país com pouco crime e que fala tanto dele, com tanta violência doméstica e que tão pouco fala dela, acordamos para o nosso quotidiano, para os nossos verdadeiros "valores", sem estrangeiros, pobres ou ciganos para culpar. E o espelho é lixado.»


Chat control?

 


2.9.25

Para quando for necessário…

 


Bengala Arte Nova, cerca de 1900.
René Lalique.


Daqui.

Jornalistas assassinados em Gaza

 


Fonte: The Guardian.

02.09.1939 - Neruda e a chegada de exilados da Guerra Civil Espanhola ao Chile

 


Na noite de 2 de Setembro de 1939, o Winnipeg chegou a Valparaíso, no Chile, com 2.365 espanhóis, exilados da Guerra Civil Espanhola e que se encontravam refugiados em campos, em França.

Quando desembarcaram, no dia seguinte, nem queriam acreditar no que viam, nem percebiam bem onde estavam: o Chile era uma terra longínqua e estavam a ser recebidos como heróis...

Se Pablo Neruda não foi o único promotor desta iniciativa, foi certamente o principal. No dia 4 de Agosto, quando o barco saíra do porto francês de Trompeloup, tinha escrito o que viria a relatar mais tarde nas suas Memórias: «Que la crítica borre toda mi poesía, si le parece. Pero este poema, que hoy recuerdo, no podrá borrarlo nadie.» Em Memorial de Isla Negra, incluiu o seguinte poema:

Yo los puse en mi barco.
Era de día y Francia
 su vestido de lujo
de cada día tuvo aquella vez,
fue
la misma claridad de vino y aire
su ropaje de diosa forestal.
Mi navío esperaba
con su remoto nombre “Winnipeg”
Pero mis españoles no venían
de Versalles,
del baile plateado,
de las viejas alfombras de amaranto,
de las copas que trinan
con el vino,
no, de allí no venían,
no, de allí no venían.
De más lejos,
de campos de prisiones,
de las arenas negras
del Sahara,
de ásperos escondrijos
donde yacieron
hambrientos y desnudos,
allí a mi barco claro,
al navío en el mar, a la esperanza
acudieron llamados uno a uno
por mí, desde sus cárceles,
desde las fortalezas
de Francia tambaleante
por mi boca llamados
acudieron,
Saavedra, dije, y vino el albañil,
Zúñiga, dije, y allí estaba,
Roces, llamé, y llegó con severa sonrisa,
grité, Alberti! y con manos de cuarzo
acudió la poesía.

Labriegos, carpinteros,
pescadores,
torneros, maquinistas,
alfareros, curtidores:
se iba poblando el barco
que partía a mi patria. Yo sentía en los dedos
las semillas
de España
que rescaté yo mismo y esparcí
sobre el mar, dirigidas
a la paz
de las praderas.
 .
(Mais descrições aqui.) 
.

Flotilha da Paz

 


«Em 1992 a revista Forum Estudante, criada por Rui Marques, na altura um jovem ligado ao associativismo juvenil católico, lançou a iniciativa chamada Lusitânia Expresso ou Paz em Timor. A Missão Paz em Timor, foi uma ação de solidariedade com Timor Leste, levando até ao mar de Timor o navio Lusitânia Expresso, com estudantes de 23 países, para protestar contra o que estava a acontecer naquela terra ocupada pela Indonésia, que tinha cometido contra a resistência um massacre horrível no Cemitério de Santa Cruz. A iniciativa contou com o apoio de jovens de muitos países e a participação de um ex-Chefe de Estado, Ramalho Eanes. Foi largamente apoiada pelos portugueses, muitos dos quais nunca tinham tido uma experiência coletiva de solidariedade internacional. E seguido passo a passo pela comunicação social.

Agora, largou de Barcelona uma flotilha com destino a Gaza. Parte com 50 embarcações e 300 tripulantes. Tem a bordo pessoas como a ex-autarca de Barcelona, Greta Thunberg, Liam Cunningham e muitos outros. Destina-se a levar mantimentos ao povo palestiniano, vítima de etnocídio, debaixo dos nossos olhos, uma das maiores ignomínias na nossa história de vida.

Mariana Mortágua participa com outros portugueses. Apelou à incorporação de figuras do Estado e a um estatuto de imunidade diplomática, à semelhança do que a Espanha fez aos seus nacionais.

A reação de Paulo Rangel foi a que se pensava. Cínico, como um Maquiavel de opereta, veio apressadamente dizer que não havia imunidade nenhuma. Nem uma palavra para a iniciativa, para o sofrimento dos palestinianos, para os crimes de guerra diariamente cometidos pela IDF. Com a flotilha da Paz o homem não quer nada.

A imprensa portuguesa e os meios de comunicação dão à iniciativa pouco relevo. Vi uma pivot muito preocupada por Mariana ter abandonado a corrida autárquica, essa coisa entusiasmante de saber se elegemos para a Câmara de Arronches o senhor Francisco que saíu do PSD e é candidato independente ou a D. Emília, defecção da CDU.

Ou classificar a flotilha como um ato de propaganda. Bendita propaganda. O Lusitânia Expresso foi parado por aviões e barcos de guerra indonésios quando fazia a última etapa, a partir de Darwin. Deitou nas águas flores de homenagem aos mortos do Cemitério de Santa Cruz e voltou para Darwin. Mas a sua ação chamou a atenção do mundo para a luta dos timorenses.

Dois pesos e dua medidas. O que se passa em Gaza questiona-nos a todos como seres humanos. Terraplanagem de cidades, ataques a hospitais, escolas, edifícios públicos, deslocamento forçado de populações, bloqueio das ações humanitárias de fornecimento de comida e de medicamentos. Gaza era uma prisão a céu aberto. Agora é um campo de matança onde os jornalistas são impedidos de entrar ou abatidos. Ao mesmo tempo que na Casa Branca aparece o projeto Trump de uma Riviera-Gaza distópica, sem palestinianos, com a colaboração de criminosos de guerra como Toni Blair, em quem alguns já viram a bandeira de “uma terceira via” e hoje é testa de ferro de uma Fundação de investidores.

Tal como agradeci a Rui Marques em 1922, obrigado Mariana.»

Luís Januário no Facebook.


Trump não precisa de conspirações



 

«Na última semana, o Presidente da República afirmou que Donald Trump é, “objetivamente, um activo soviético... russo [sic]”. Disse-o sem hesitação, com tal à-vontade, como se a frase fosse apenas ligeiramente excêntrica e não, como de facto é, um precipício. Soou como gafe, foi tratada como delírio marcelesco, mas há na escolha das palavras uma inquietação que vale mais do que o escândalo. Porque, no fundo — e apesar do riso que provocou —, a tese de Marcelo não é nova. Circula há anos, em surdina: Trump não poderá ser um erro da democracia. É (tem de ser) um cavalo de tróia russo. Um presidente estrangeiro no seu próprio país, conduzido pela chantagem, pela dívida, por alguma informação comprometedora.

A ideia de que Trump age sob coacção — de que alguém o guia a partir das sombras — oferece um certo conforto. É um enredo clássico, à la Guerra Fria: o mal vem de fora, é engenhoso, manipulador, não é nosso. Há um vilão com um plano e um protagonista aprisionado. Mas essa hipótese, reciclada da teoria do Manchurian Candidate, talvez seja mais fantasiosa do que perturbadora. Porque a verdade é mais crua. Trump não precisa de conspirações para agir contra a ordem liberal.

Fê-lo de livre vontade, e fê-lo inúmeras vezes. Ameaçou retirar os Estados Unidos da América da NATO, desvalorizou o artigo 5.º do tratado, apelidou a União Europeia de inimiga e fragilizou relações com aliados históricos, enquanto elogiava, sem ironia, a “força” e a “inteligência” de Vladimir Putin. Convidou Volodymyr Zelenskyy a Washington com honras de aliado para, pouco depois, o destratar publicamente. Sabotou as agências de inteligência americanas, em Helsínquia, perante o próprio Putin.

Há gestos que atravessam a democracia como fendas. Donald Trump o primeiro presidente moderno a ameaçar infringir os direitos dos Estados americanos e a ameaçar mobilizar o exército contra o próprio povo. Instigou o redesenho de mapas eleitorais e exigiu, num registo de absurdo institucional, mais cinco lugares no Congresso, como se lhe fossem devidos por direito divino. O Texas, que redesenhou os seus mapas distritais em 2021, não tem qualquer base para o fazer agora. Mas Trump quer e, dentro do seu círculo, querer é quase ter.

Soma-se a tudo isto a sua interferência direta em declarações conjuntas internacionais — como quando recusou reconhecer a Rússia como o agressor num comunicado do G7 — e a crescente erosão dos equilíbrios de poder internos. Desrespeito por ordens judiciais, ataques ao poder legislativo, constrangimento ativo de estados que não alinham com a linha federal. E mais longe: o apoio tácito a figuras próximas do Kremlin, como o candidato Călin Georgescu, cuja eleição na Roménia foi anulada por suspeitas fundadas de interferência russa. A vice-presidência americana, ao reagir, alinhou do lado errado da história.

Isto não exige conspiração. Exige memória. E coragem para ver.

Há algo mais perigoso do que uma pessoa que mente: uma pessoa que acredita. A chantagem pode ser denunciada. A manipulação pode ser desarmada. Mas a crença — sobretudo quando se confunde com destino — transforma-se num motor quase místico. Trump não age como quem serve interesses alheios, como um peão. Age como um cruzado que cumpre um desígnio. E é isso que o torna incontrolável. O seu poder não é apenas institucional, é emocional, espiritual, performativo. E, quando um líder acredita na sua missão com mais fervor do que nas regras que jurou cumprir, já não há sistema de freios que o detenha. Só a queda.

Mas o que nos inquieta verdadeiramente não é ele. Somos nós. O que a figura de Trump expõe — sem máscara, sem filtro, sem media training — é uma verdade que preferimos não ver: o Ocidente produziu o seu próprio delírio. John Gray escrevia que “os racionalistas liberais desviam o olhar do mundo que, sem saber, ajudaram a criar”. Trump não é um intruso. É a distorção de um modelo que já não sabe o que é, nem a quem serve. A ideia de verdade foi-se tornando tão frágil, tão relacional, tão mediada, que acabou por se tornar opcional. E, agora, perante um homem que vive nesse regime de pós-verdade como se fosse o único possível, o espanto já não basta. Espantar-se é, em si, um privilégio.

É por isso que a teoria da conspiração conforta. Porque oferece uma ficção de ordem, ainda que perversa, num mundo que já não reconhece os seus próprios reflexos. Dizer que Trump está sob o controlo de Moscovo é menos inquietante do que admitir que milhões de americanos — e não só — acreditam nele por vontade própria. Que o seguem, que o aplaudem, que o elegem, e que o farão de novo, se tiverem oportunidade. O perigo não está no estrangeiro. Está em casa.

E nós, deste lado do Atlântico, assistimos com uma mistura de incredulidade e impotência. Mas também com uma estranha dependência. Porque Trump ameaça a própria arquitetura ocidental, mas continua a ser o líder da potência na qual se ancora a nossa segurança. A Europa, que se habituou a projectar o seu poder através da diplomacia e da economia, descobre-se desarmada perante o regresso do imperialismo místico. E os que ainda acreditam no primado da razão, da norma e da moderação, reagem com o mesmo gesto de sempre: espanto.

O espanto, hoje, é fuga.»


1.9.25

Ele aí está

 


Flotilha

 




Setembro com Barbara

 



01.09.1939 - A invasão da Polónia

 


Na manhã de 1 de Setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polónia e, dois dias depois, a Grã-Bretanha e a França declararam guerra à Alemanha.

Três vídeos muito úteis para aprender ou relembrar:






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Perceções, pacotes e vídeos: a regressão da propaganda

 


«Poucos dias depois de ter feito uma longa intervenção, na qual dedicou poucos minutos aos incêndios, em parte para se queixar de estar a estragar a transmissão televisiva da festa do Pontal, Montenegro deve ter sido aconselhado pela sua agência de comunicação a marcar um Conselho de Ministros especial para aprovar mais um pacote. É isto que faz há quase dois anos. Nada há que um PowerPoint não resolva.

Pôs a gravata preta, aceitou responder a umas perguntas, assumiu a sua responsabilidade pela percepção injusta sobre a sua responsabilidade (que é uma forma muito particular de assumir responsabilidades) e aqui vai disto: em poucos dias, passámos de sete minutos num discurso de quase uma hora para uma estratégia para a floresta para os próximos 25 anos. Como não há milagres, era, em grande parte, rebranding de matéria herdada para ocupar o sonoro até mais uma crise de perceções passar.

Um dia depois de se ter percebido que nenhuma das 45 medidas incluía os bombeiros, o governo anunciou uma medida para os bombeiros – uma majoração nos seus rendimentos e promessas sobre o estatuto dos bombeiros. Ao rebranding teve de ir fazer acrescentos, à medida que se notaram as falhas da pressa.

Poucos dias antes, foi Ventura que saiu das redes e acordou para um tema pelo qual não podia responsabilizar os imigrantes – mais tarde, depois de puxar pela cabeça, lá apareceu a comparação entre os supostos subsídios dados aos imigrantes e o que recebem os bombeiros voluntários. Se Montenegro caça com pacotes, Ventura caça com vídeos. E desta vez esmerou-se.

No primeiro que vi, recebia, na sede do partido, mantimentos para quem combatia os fogos. Atendia jovens e transportava os mantimentos de forma mais ou menos irracional. Anotava o que faltava, limpando da testa suor inexistente, depois de tanto esforço de notário. Descia escadas transportando pesos, apesar de o elevador do prédio ser visível. E enchia carrinhas, sendo que filmavam lá de dentro. O esforço de realismo era semelhante ao de uma novela venezuelana dobrada. Nenhuma pessoa com cérebro funcional podia sequer ter dúvidas da encenação.

No segundo vídeo que vi, o Super Ventura, que há poucos dias ainda mal tinha dado pelos incêndios, saiu do estúdio e foi para o “terreno”. Ele e um estagiário, de cócoras, camisas impecáveis, atacaram afanosamente uma pequena labareda na base de um eucalipto. Não fosse um momento heroico, poderia pensar-se que era um gozo a bombeiros e cidadãos que andaram a lutar contra os fogos para salvar casas e vidas. No fim, depois de um dia de luta contra os incêndios, Ventura teve o seu momento sentimental para dar festas a um cão que, com faro infalível, não se aproximou da farsa. A ele, o algoritmo não engana. Uns dias depois, ainda vi mais um momento de ação do líder do TikTok, a transportar fardos de palha.

Depois de ver o seu líder apagar uma perigosa labareda, os trolls da extrema-direita nas redes sociais dedicaram-se a tentar desmentir a participação de imigrantes no verdadeiro combate às chamas. Aquele que não se faz de camisinha para o funcionário que trata das redes filmar.

Olha-se para aquilo e pergunta-se se alguém pode realmente acreditar no que vê. Depois, lembramo-nos de que a versão portuguesa do ataque à faca a Bolsonaro e o ataque a tiro a Trump foi o ataque de azia a Ventura, que lhe valeu uma cobertura exaustiva nas televisões e um crescimento imparável nas intenções de voto. Se o espetáculo que deu naqueles dias resultou, porque não havia de resultar a Leni Riefenstahl em versão “Duarte e Companhia”? Parece que o eleitorado aceita que, na nossa pequenez, merecemos uma versão de baixo custo.

Os governos sempre fizeram que faziam para responder aos momentos mediáticos. A oposição sempre tentou fazer que faria melhor se governasse. A demagogia e a manipulação nada têm de novo e a nossa direita, liderada pelo refugo político, parece ter-lhe um gosto especial – vejam como Carlos Moedas governa a capital há quatro anos, sem pegar na Câmara e largar a câmara. Mas nunca nada disto foi feito com tanto desrespeito intelectual pelos destinatários. Enganem as pessoas, mas não as tratem como imbecis. Esforcem-se.

A direita está mais estúpida? Os eleitores são mais ingénuos? Não. O escrutínio jornalístico é que tornava este tipo de exercício mais exigente. Se não fosse feito com o mínimo de profissionalismo, morria à nascença. Não é que o escrutínio já não se faça. Mas deixou de funcionar. Poucos querem saber do “jornalixo”.

Agora, procuram a manipulação direta, sem intermediários óbvios. É por isso que não estamos a assistir apenas a um retrocesso político e ético. O retrocesso é estético e cognitivo. Duas décadas de expansão das redes sociais parecem ter garantido uma notável involução da espécie. Para quem é, isto basta.»


Flotilha rumo a Gaza

 


A saída de Barcelona ontem.

31.8.25

E em Portugal

 


Entrada no «Palacete Chafariz d'El Rei», Arte Nova, Lisboa, início do século XX.

Daqui.

Nos 80 anos de Sérgio Godinho

 


Sérgio Godinho nasceu em 31 de Agosto de 1945. Compagnon de route de muitos de nós, mesmo a distância, já que viveu grande parte da sua vida no estrangeiro até 1974, faz parte de um grupo precioso que nos ajudou a usar a cantiga como arma antes do 25 de Abril e como grito de vitória e de esperança depois.

Difícil é a escolha, mas ficam aqui algumas das suas canções – em jeito de homenagem ao Sérgio e à nossa memória.







Com José Mário Branco, numa das canções desse extraordinário cd, de 2003, «O irmão do meio»:


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Caixadòclos

 


Epidemia de violência

 


«Somados os casos de violência doméstica registados pela GNR e pela PSP, a primeira metade do ano arranca com quase 18 mil casos. É possível que isso venha a representar um aumento, quando se fizerem as contas no final do ano. Mas esse nem é o dado mais relevante. O que verdadeiramente nos devia chocar é que, ano após ano, o número de crimes de violência doméstica permaneça sempre acima dos 30 mil. Uma verdadeira epidemia em que as principais vítimas são as mulheres e, tantas vezes, os seus filhos (ainda que haja uma perceção cada vez maior da violência exercida sobre os homens).

Preocupante ainda é a possibilidade de essas 30 mil ocorrências não serem um retrato fiel do ambiente de violência em que vivem muitas famílias. O crime é público, o que significa que qualquer cidadão o pode denunciar, mas quantos serão os casos de terceiros que ousam quebrar aquela tradição retrógrada que dita que, "entre marido e mulher, não se mete a colher"?

Mais do que uma possibilidade, denunciar é uma obrigação cívica. Basta relembrar o mediático caso do bombeiro do Machico filmado, há dias, a agredir a mulher, que se refugiara em casa de familiares. Nem os gritos do filho de nove anos o demoveram. Se não viu, talvez seja um daqueles casos em que vale a pena fazer uma busca nas redes sociais. E lembre-se que a cena que vai testemunhar é semelhante àquele caso de que ouviu falar entre amigos, vizinhos ou familiares.

É verdade que, se a responsabilidade cívica fosse cumprida, o número de ocorrências acabaria por disparar. Mas seria também um elemento dissuasório e, provavelmente, um passo no sentido de reduzir o fenómeno no médio e longo prazo. É preciso parar esta epidemia de violência e cada um de nós pode ter um papel nesse objetivo. O que não serve para nada é, depois do mal feito, das vítimas maltratadas e eventualmente das mortes (72 homicídios voluntários em contexto de violência doméstica, entre 2022 e 2024, incluindo seis crianças), chorar lágrimas de crocodilo.»

Rafael Barbosa