«Uma vez Mário Soares disse-me que dividia os políticos em duas categorias, os cobardes e os corajosos. E que tinha muito mais complacência com os corajosos, mesmo que estivessem nos antípodas do seu pensamento político, ou fossem claramente seus inimigos. E levava isso à letra: num dia, em que estávamos a conversar antes de uma reunião no Museu Vieira da Silva/Arpad Szenes, tratou mal um antigo ministro do PS que se “encostou” à conversa, e que ele achava que cabia, pelas suas atitudes moles, na primeira categoria. E, como se sabe, coragem a Mário Soares não faltava.
Cobardia e coragem são duas palavras essenciais para usar no mundo de brutalidade em que já estamos a viver, porque a sua principal característica é o uso do medo como instrumento de poder. O exemplo perfeito vem dos EUA de Trump, com consequências devastadoras sobre a democracia americana. É o uso e abuso do poder, a vingança, a constante ameaça, a violência incluindo a morte, a prisão, a expulsão para sítios degradantes e violentos, o despedimento, as decisões prejudiciais para empresas, a perseguição de todos os que se lhe opõem, no passado, no presente e no futuro, que pretendem dobrar, humilhar, fazer ceder ao poder absoluto de um autocrata. Autocrata é obviamente um eufemismo porque Trump comporta-se como ditador, classificação que ele admite o honraria, numa daquelas conversas confusas, caóticas, perversas, malévolas, cheias de insultos e ameaças, que ele faz quase todos os dias. Disse: “Muita gente está a dizer que talvez quisesse um ditador”, ele, Trump, e embora acrescente que ele não é um ditador, gosta do “querer”. Qualquer pessoa que conheça o mecanismo psicológico do narcisista sabe que a primeira frase tem muito mais valor do que a segunda. Ele acha que é um elogio que “muitas pessoas” querem que ele seja ditador…
Mas o medo resulta, faz sempre mais cobardes do que corajosos. Ele extorquiu dinheiro de empresas, algum para ele próprio, com o pretexto de que será para a sua “biblioteca”, como sempre fez com os dinheiros de campanha para pagar despesas de advogados, ameaçou que só permitiria a realização de alguns negócios se grupos de comunicação despedissem alguns dos seus maiores críticos, e, de um modo geral, faz exigências a universidades, museus, televisões, escolas, instituições de apoio aos mais pobres, quer nos EUA, quer no âmbito das Nações Unidas, que tem que acabar com programas de inclusão, e tudo o que pareça ser “woke”, LGBTI+, feminismo, anti-racismo, falar da escravatura como um “mal”. A coisa está lá, mas começa a chegar cá.
Tenho a tentação de estar sempre a falar de Trump, porque ele, com Putin e Xi, são os maiores perigos para a humanidade. E estes são os tempos mais perigosos desde 1945, mesmo mais perigosos do que a crise dos mísseis em Cuba. O caso de Trump é o que mais riscos traz para o mundo, até porque ele está a atacar os fundamentos da maior e mais poderosa democracia do mundo, e essa fragilização é a fonte do poder dos outros. Putin e Xi crescem, um pela violência e o outro pela sagacidade do mal, pelo ânimo que lhes traz Trump. Quem esteve por detrás da força da parada militar chinesa e da mistura de ditadores que lá chegaram pelo tapete vermelho é o homem que quer a rendição da Ucrânia, o desmantelamento da NATO, que retira as forças americanas que estavam na frente europeia face à Rússia, que todos os dias enfraquece os que eram seus aliados, para bater palmas a Putin. Trump gosta de Putin e tem medo de Xi, e despreza os europeus, o Canadá, a Austrália, a Coreia e o Japão, todos os países e dirigentes que não lhe prestam vassalagem, mas, ainda mais, que não o seguem na política pró-Putin. Ele, que não sabe onde é a Hungria, gosta é de gente como Orbán, e admira com inveja Netanyahu, e só o trava por causa dessa mesma inveja, porque ele parece mais feroz do que ele, e isso prejudica-o na sua suposta intervenção para acabar as “sete” ou “oito” ou “dez” guerras com que ele diz que acabou, a caminho do Prémio Nobel da Paz.
Putin e Xi crescem, um pela violência e o outro pela sagacidade do mal, pelo ânimo que lhes traz Trump. . Putin e Xi crescem, um pela violência e o outro pela sagacidade do mal, pelo ânimo que lhes traz Trump. . Putin e Xi crescem, um pela violência e o outro pela sagacidade do mal, pelo ânimo que lhes traz Trump. . Os actos de cobardia reforçam o medo, mas um medo que pode transportar revolta. Só que não chegam, é a coragem que nestes dias conta.
O peixe, como se sabe, apodrece pela cabeça e a cabeça do “mundo livre” eram os EUA. Ou a gente a corta, metaforicamente claro, ou o resto do corpo apodrece, já está a apodrecer.»