«Poucos dias depois de ter feito uma longa intervenção, na qual dedicou poucos minutos aos incêndios, em parte para se queixar de estar a estragar a transmissão televisiva da festa do Pontal, Montenegro deve ter sido aconselhado pela sua agência de comunicação a marcar um Conselho de Ministros especial para aprovar mais um pacote. É isto que faz há quase dois anos. Nada há que um PowerPoint não resolva.
Pôs a gravata preta, aceitou responder a umas perguntas, assumiu a sua responsabilidade pela percepção injusta sobre a sua responsabilidade (que é uma forma muito particular de assumir responsabilidades) e aqui vai disto: em poucos dias, passámos de sete minutos num discurso de quase uma hora para uma estratégia para a floresta para os próximos 25 anos. Como não há milagres, era, em grande parte, rebranding de matéria herdada para ocupar o sonoro até mais uma crise de perceções passar.
Um dia depois de se ter percebido que nenhuma das 45 medidas incluía os bombeiros, o governo anunciou uma medida para os bombeiros – uma majoração nos seus rendimentos e promessas sobre o estatuto dos bombeiros. Ao rebranding teve de ir fazer acrescentos, à medida que se notaram as falhas da pressa.
Poucos dias antes, foi Ventura que saiu das redes e acordou para um tema pelo qual não podia responsabilizar os imigrantes – mais tarde, depois de puxar pela cabeça, lá apareceu a comparação entre os supostos subsídios dados aos imigrantes e o que recebem os bombeiros voluntários. Se Montenegro caça com pacotes, Ventura caça com vídeos. E desta vez esmerou-se.
No primeiro que vi, recebia, na sede do partido, mantimentos para quem combatia os fogos. Atendia jovens e transportava os mantimentos de forma mais ou menos irracional. Anotava o que faltava, limpando da testa suor inexistente, depois de tanto esforço de notário. Descia escadas transportando pesos, apesar de o elevador do prédio ser visível. E enchia carrinhas, sendo que filmavam lá de dentro. O esforço de realismo era semelhante ao de uma novela venezuelana dobrada. Nenhuma pessoa com cérebro funcional podia sequer ter dúvidas da encenação.
No segundo vídeo que vi, o Super Ventura, que há poucos dias ainda mal tinha dado pelos incêndios, saiu do estúdio e foi para o “terreno”. Ele e um estagiário, de cócoras, camisas impecáveis, atacaram afanosamente uma pequena labareda na base de um eucalipto. Não fosse um momento heroico, poderia pensar-se que era um gozo a bombeiros e cidadãos que andaram a lutar contra os fogos para salvar casas e vidas. No fim, depois de um dia de luta contra os incêndios, Ventura teve o seu momento sentimental para dar festas a um cão que, com faro infalível, não se aproximou da farsa. A ele, o algoritmo não engana. Uns dias depois, ainda vi mais um momento de ação do líder do TikTok, a transportar fardos de palha.
Depois de ver o seu líder apagar uma perigosa labareda, os trolls da extrema-direita nas redes sociais dedicaram-se a tentar desmentir a participação de imigrantes no verdadeiro combate às chamas. Aquele que não se faz de camisinha para o funcionário que trata das redes filmar.
Olha-se para aquilo e pergunta-se se alguém pode realmente acreditar no que vê. Depois, lembramo-nos de que a versão portuguesa do ataque à faca a Bolsonaro e o ataque a tiro a Trump foi o ataque de azia a Ventura, que lhe valeu uma cobertura exaustiva nas televisões e um crescimento imparável nas intenções de voto. Se o espetáculo que deu naqueles dias resultou, porque não havia de resultar a Leni Riefenstahl em versão “Duarte e Companhia”? Parece que o eleitorado aceita que, na nossa pequenez, merecemos uma versão de baixo custo.
Os governos sempre fizeram que faziam para responder aos momentos mediáticos. A oposição sempre tentou fazer que faria melhor se governasse. A demagogia e a manipulação nada têm de novo e a nossa direita, liderada pelo refugo político, parece ter-lhe um gosto especial – vejam como Carlos Moedas governa a capital há quatro anos, sem pegar na Câmara e largar a câmara. Mas nunca nada disto foi feito com tanto desrespeito intelectual pelos destinatários. Enganem as pessoas, mas não as tratem como imbecis. Esforcem-se.
A direita está mais estúpida? Os eleitores são mais ingénuos? Não. O escrutínio jornalístico é que tornava este tipo de exercício mais exigente. Se não fosse feito com o mínimo de profissionalismo, morria à nascença. Não é que o escrutínio já não se faça. Mas deixou de funcionar. Poucos querem saber do “jornalixo”.
Agora, procuram a manipulação direta, sem intermediários óbvios. É por isso que não estamos a assistir apenas a um retrocesso político e ético. O retrocesso é estético e cognitivo. Duas décadas de expansão das redes sociais parecem ter garantido uma notável involução da espécie. Para quem é, isto basta.»

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