«Aproveito o debate de mais um Orçamento, sobre o qual já escrevi, para falar destes oito anos.
Quem queira fazer uma avaliação distanciada do legado que António Costa ficará perturbado ao concluir que, do que virá a ser o mais longo mandato da história da nossa democracia, muito pouco ficará. Mesmo descontando o tempo da pandemia, que começa a ter as costas largas, praticamente nada de estrutural foi feito.
Não estou a falar das "reformas estruturais" defendidas pela direita que se resumem, de facto, a privatizações e redução da regulação do mercado e das leis laborais, que contribuíram zero para a modernização e produtividade do país. Estou a falar de algumas coisas que, para pegar no justamente desprezado José Sócrates, sobrevivem ao tempo em que se governou: aposta nas energias renováveis que hoje nos dá umas poucas vantagens competitivas e instrumentos de soberania económica; o Simplex, que correspondeu a um enorme salto na desburocratização e digitalização da administração pública; o Parque Escolar, que independentemente dos erros e megalomanias, foi o último grande investimento em infraestruturas públicas, juntado qualificação física da escola pública a apoio à economia sem ser por via de subsídios ou borlas fiscais; a criação das Unidades se Saúde Familiar, uma das mais bem sucedidas experiências de melhoria do SNS desde a sua criação; e até, mesmo que discorde dos moldes, a reforma da Segurança Social que supostamente garantiu a sua sustentabilidade. Bastava que António Costa tivesse uma destas medidas no seu currículo para ser uma festa. E estou a compará-lo com um primeiro-ministro que pode acabar preso.
Se procurarmos bem, as duas medidas com um alcance minimamente comparável, mas muito mais fáceis de aplicar, por apenas dependerem de uma decisão política, foram a descida do preço do passe social, que, para além do brutal impacto progressivo no aumento do rendimento disponível das famílias, sinalizou a mudança de rumo no seu desmantelamento, iniciado por Cavaco Silva; e, em sentido semelhante, a redução das propinas. Estruturais, por que deixam um sinal político difícil de reverter sem reação. Mas não exigiram qualquer engenho na sua aplicação. A redução do preço do passe nem foi acompanhada de um grande investimento no transporte público para dar resposta ao aumento da procura. A isto ainda poderia acrescentar o aumento do Salário Mínimo Nacional, que, não dependendo do Estado, definiu um novo patamar de exigência no combate à desigualdade salarial.
Estas medidas, assim como a generalidade da devolução de direitos, aconteceram nos primeiros anos do mandato de Costa (a única exceção digna de nota são algumas medidas constantes na agenda do trabalho digno), durante a “geringonça”, e por proposta ou pressão do BE ou do PCP. Era preciso aprovar orçamentos e medidas deste género eram impostas a Mário Centeno – que por sua vontade não teria feito mais nada a não ser juntar dinheiro, adiando o país mais uma vez – para que o governo sobrevivesse. Quando a única coisa que merece elogio a este governo é o excedente orçamental, estamos conversados.
Quando se olha para os dois últimos anos é quase impossível não concluir que a maioria absoluta oferecida ao PS pelos eleitores que apreciavam a “geringonça”, para supostamente castigarem o BE e o PCP, transformou-se, na realidade, num castigo autoinfligido. A maioria absoluta foi apresentada pelos principais dirigentes do PS como a oportunidade de fazer reformas. Nunca conseguiram explicar que reformas o Bloco e o PCP travavam. E nunca conseguirão explicar que reformas fizeram sem eles. Pelo contrário, as poucas marcas que Costa deixa são, para além da própria “geringonça”, resultado da pressão ou da proposta destes partidos. Sem eles, o imobilismo acomodado e arrogante foi total.
Dirão que os grandes responsáveis por isto foram estes dois partidos, que ao fazerem cair o governo ofereceram este presente ao PS. Acontece que a “geringonça” acabou em 2019. O que o BE e o PCP teriam para oferecer foi o que ofereceram nos primeiros anos depois dessas eleições: total ausência de guião para um acordo maioritário, condenados a aprovar orçamentos que não correspondiam a nada de diferente de uma maioria absoluta do PS. Estariam, por estes dias, a ser julgados como cúmplices e seriam, muito provavelmente, ainda mais penalizados. Os erros do PCP e do BE foram, respetivamente, não exigir um acordo escrito depois de 2019 e não ter, sem ele, votado logo contra o primeiro OE, pondo fim definitivo à fraude de uma “geringonça” decretada por António Costa unilateralmente e sem deveres.
O preço que será pago por esta maioria absoluta fora de tempo não é apenas a perda da última oportunidade para salvar alguma coisa do Estado Social ou fazer reformas sociais e económicas difíceis de desmantelar pela direita radicalizada que pode vir depois. O lastro que pode vir a sair destes quatro anos, ao contrário do que aconteceu com a “geringonça”, é o afastamento da esquerda do poder por muito tempo. Por completa incapacidade de decisão política e falta de visão estratégica, Costa perdeu a oportunidade de deixar uma marca. Não foram a pandemia e a guerra. Essas só disfarçaram a falta de propósito político no exercício do poder.
As conquistas de António Costa foram o nascimento da “geringonça”, que desejou para garantir a sua sobrevivência política, e o que dela nasceu de positivo. O resto, e é o resto que ficará na memória das pessoas (Sócrates nunca será recordado pelas conquistas que aqui deixei, mas pelo seu triste fim), é um deprimente deserto. O problema não são os casos, comuns em governos que duram muito. É não haver nada que os compense.
Costa ajudou, com a incapacidade de perceber que a cooperação tem de ser politicamente útil para todos, a rebentar com os partidos à sua esquerda. Depois de quatro anos de maioria absoluta, pode deixar o PS em igual estado. Porque fez coisas muito erradas? Não. Porque, sempre que dependeu apenas dele, nada fez. Foi e é um gestor do quotidiano sem rumo. Que uma pandemia e uma guerra ajudaram a não ter de ser mais do que isso.»
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