28.11.20

Fin del Mundo

 


Voltaria de bom grado a andar neste comboiozinho até à estação do Fim do Mundo, bem longe, perto de Ushuaia, quase à esquina do Estreito que Magalhães atravessou há 500 anos para chegar ao Pacífico. E em que dia terá chegado? Pois parece que foi em 28 de Novembro…
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É importante reagir em vez de sucumbir

 

«Desde o mês de Outubro que escuto a escuridão progressiva que se vem abatendo dentro de cada um. Dependendo da área de trabalho onde se inscrevem, do agregado familiar a que pertencem e do estatuto socioeconómico que têm, muda apenas o tom do escuro. A depressividade aumentou entre nós como, aliás, era mais do que previsível. De forma paralela, dentro de alguns, essa depressividade começa a ser tingida por tons de negro mais escuro e denso – a cor da angústia. (…) 

Psicologicamente, é importante reagir em vez de sucumbir. Reagir nesta fase é não escamotear mais a realidade e, aguentando a dor triste de observar e fazer parte do desmoronar, continuar a pensar criativamente. Criativamente é inventar a cada momento uma solução válida para cada problema (individual e colectivo, ao mesmo tempo). Reagir é, no reforço dos laços afectivos, por mãos à obra no que respeita à solidariedade para com os muitos que já passam mal nesta altura. Reagir é reconhecer todos os dias o que corre bem (dentro e fora de nós) e fazer disso um chão seguro para continuar. Reagir é fazer valer o nosso poder pessoal. Neste momento, todos contam. Todas as ideias novas podem ser úteis e todos os movimentos de ajuste comportamental são preciosos. Reagir é também, ser claro e objectivo no que se comunica, evitando sempre que possível, discursos ambíguos, confusos e demasiado detalhados que fazem perder de vista o essencial do que se pretende. Reagir é integrar, colaborando, o coletivo que somos e ao qual pertencemos, despindo de vez os narcisos deixando-os para depois.» 

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Nós, heróis da preguiça...

 


«A autoridade governamental da Alemanha para a saúde pública fez recentemente uma campanha, exortando os jovens a ficar em casa, difundindo um vídeo que tem circulado com grande sucesso no mundo inteiro. Nele, surge um actor de idade avançada, falando do modo como viveu, no Inverno de 2020, quando era jovem, uma segunda vaga da pandemia de Covid-19. Ele situa-se, portanto, num tempo projectado no futuro e é a partir desse lugar que dá o seu testemunho: naquele tempo já longínquo de 2020, quando tinha 22 anos e era estudante de engenharia em Chemnitz, comportou-se como um herói, num momento em que o destino do país “estava nas nossas mãos”. O seu heroísmo consistiu em cumprir escrupulosamente esta regra: “a única coisa a fazer era ... NADA” (transcrevo assim, com as reticências, um momento de suspensão da fala, a preparação para pronunciar um “nada” enfático). Dá-se então um corte, muda-se de plano, e vemos um jovem entregue à preguiça, estendido num sofá e a beber refrigerantes. 

O apelo à preguiça, à coragem heróica de não fazer nada, é coisa estranha num país como a Alemanha. Parece o mundo às avessas. Podemos ver neste vídeo um sinal de que há coisas que nunca mais serão como dantes. E uma delas é provavelmente o fim da economia, ou melhor, do processo de colonização que ela exerceu no espírito mais profundo da nossa época e que nos fazia ver tudo sob o prisma da economia. É verdade que o fim da economia já tinha sido anunciada por quem, deslocando-se para uma escala infra-económica, tinha tirado lições muito categóricas da esquizofrenia generalizada que caracteriza o capitalismo contemporâneo e tinha percebido que a própria economia se vira contra si própria. 

Já não conseguimos ouvir com reverência, nem sequer com paciência, as previsões de crescimento económico e outros dados quantificados até às décimas para o próximo ano. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, proclamou Valéry num célebre texto sobre a “crise do espírito” escrito no final da Primeira Guerra Mundial. Agora, depois de termos assistido a uma impensável e impensada interrupção do funcionamento da economia, e quando até no país de Max Weber se fazem apelos à preguiça ambiguamente irónicos (porque se fossem para ser interpretados de maneira completamente literal não seriam levados a sério), toda a fé no edifício do homo oeconomicus sofreu um abalo que torna muita coisa, neste plano, irreversível. Mesmo que tudo, no domínio económico, se recomponha (e não há dúvidas de que muito está a ser feito para isso, até porque era mais fácil ser anti-capitalista antes desta crise do que agora), a nossa fé entrou em colapso: nós, filhos e netos das relações económicas, sabemos agora que em qualquer momento sobrevêm outras determinações, fazendo ruir o belo edifício e as suas representações ideológicas porque todos percebemos que há algo errado na economia, mesmo se a nossa vontade é a de restaurar a ordem regida por ela. 

Há domínios em que a descrença instalada ou em vias de instalação não provoca perigos imediatos. Mas quando assistimos a uma escalada, às claras, sem qualquer pudor, de um modelo de ciência empresarial, como está a acontecer com as vacinas contra o novo coronavírus, há boas razões para ficarmos não apenas desencantados, mas também assustados. Quem não sabia já, ficou agora a saber o que é a luta pela conquista do mercado pela indústria farmacêutica. Temos assistido a um espectáculo nunca visto (não porque não estivesse em cena, mas porque os seus palcos estavam mais escondidos) da captura e da instrumentalização da ciência para fins económicos e políticos. Médicos e cientistas convertidos ao populismo, reivindicando a condição de “stars”, lutas pela autoridade científica através de meios alheios às regras do campo científico: a par do populismo político, de que tanto se fala, há outros populismos que não atraem tanto a atenção, tais como o populismo médico, o populismo científico (uma contradição nos termos) e um populismo mediático que está tão normalizado que já nem o nomeamos. Nós, leigos e mortais, sabemos agora que é quase impossível organizar uma discussão racional.» 



António Guerreiro
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27.11.20

A quem estamos entregues?

 

«(Declaração de interesses: tenho 76 anos e devo admitir que o choque pessoal que me causaram as notícias de hoje possa influir neste escrito. Tentarei evitá-lo) 

A notícia do dia é a de um plano estratégico de vacinação contra a covid elaborado por um grupo não identificado da DGS e apresentado por Graça Freitas numa reunião do Conselho Nacional de Saúde Pública. Antes de o comentar, deixo a minha perplexidade pelo processo. O governo nomeou um grupo de missão para a vacinação, que, dentro de um mês, terá de apresentar um plano de que consta, obrigatoriamente, a estratégia, com a definição de prioridades e do escalonamento por fases de vacinação. Sendo assim, o que levou Graças Freitas a este enorme erro político, com óbvias consequências na opinião pública, de apresentar à discussão um plano chocante e polémico, prematuro e à revelia das competências do grupo oficial de trabalho, e que o próprio primeiro ministro, como veremos adiante, já teve de vir fazer a “reparação de danos”? 

Já depois das primeiras notícias, veio o Ministério da Saúde esclarecer que a estratégia de vacinação ainda não foi discutida com a tutela e que as informações vindas a público estão incluídas num documento meramente técnico e são parcelares e desactualizadas. Mas o mal já está feito e é, a meu ver, o erro mais grave de todos os já cometidos pela DGS. 

O plano é chocante, absurdo e, pelo que pude estudar hoje, duvidosamente baseado em evidência científica. Quase que é caso para se exigir a identificação, para memória futura, dos seus autores. 

A opção mais surpreendente é a de não considerar como prioritário o grupo etário dos mais de 70 anos (ou 75, o que vem a dar quase no mesmo). Desde o início da pandemia que sempre foi considerado como um grupo a proteger e a quem era recomendado o cuidado de se resguardarem no domicílio, tanto quanto possível. Muito bem. Note-se que não são de risco só por sofrerem mais frequentemente de comorbilidades; a idade é um fator de risco, em si mesma. 

Agora, diz a DGS que as informações das farmacêuticas e da EMEA não apresentam evidência a favor da vantagem da vacinação dos maiores de 75 anos. Podia dizer-se que pode ser mais um caso de diferença entre “não evidência de que” e “evidência de que não”. Mas é mais. Não consegui confirmar essa informação. Pelo contrário, o que li sem margem para dúvidas, por parte da Pfizer, da Moderna e da AstraZeneca, é que as suas vacinas são eficazes em todos os grupos etários. 

Há prioridades no plano que são indiscutíveis: o pessoal e utentes dos lares e o pessoal dos serviços de saúde. Note-se que nos utentes dos lares não haverá distinção de idades, apesar da tal alegada ineficácia da vacina nos mais idosos, que são a esmagadora população dos lares. 

Neste primeiro grupo incluem-se também cerca de 250000 pessoas entre 50 e 75 anos com insuficiência cardíaca, respiratória e renal. Não se conta com os diabéticos e hipertensos descompensados, que são muito mais numerosos e que só virão no último escalão de prioridade. Até agora, a percentagem de mortes no escalão etário 50-70 anos é de cerca de 12%, sendo os restantes 88% de idade superior a 70 anos. A vacinação dos primeiros, no caso de todos os tais 250000 poderem ser infetados, evitará, portanto, cerca de 30000 mortes, teoricamente. A vacinação dos maiores de 75 anos (cerca de 1,7 milhões, 16,3% dos portugueses), mesmo que neste caso, por exercício de argumento, a eficácia da vacina seja de 60%, protege cerca de 1,5 milhões de pessoas, nas mesmas condições teóricas (possibilidade de todos serem infetados). Ao que parece, as únicas contas que este plano fez, numa perspetiva estritamente médica e insensível a considerações éticas e de saúde pública global, baseiam-se no facto de a maioria dos internados em cuidados intensivos serem doentes entre os 50 e os 70 anos com comorbilidades graves. Mas pode ser este o critério principal, por muito que preocupe os médicos intensivistas? De entre os 4276 mortos, no total, e do excesso de mortes não relacionadas diretamente com a covid, que percentagem representam os mortos em UCI? 

Já agora, um aspeto porventura menor. Vão ser vacinados prioritariamente 45000 membros das forças de segurança. Qual é, até agora, a incidência e a mortalidade covid neste setor? Tem afetado significativamente a função das forças de segurança? No meio de tanto disparate, nem me tranquiliza o facto de isto se dever a um erro exclusivo da DGS. As primeiras declarações de Francisco Ramos, responsável pelo grupo agora nomeado pelo governo, não mostram desmarcação em relação a este plano, embora ainda não saibamos o que vai ser o plano definitivo do grupo. 

Fica ao menos alguma esperança no discernimento político de António Costa, que hoje já veio pôr água na fervura, afirmando que "as vidas não têm prazo de validade” e que "há critérios técnicos que nunca poderão ser aceites pelos responsáveis políticos”. Oxalá. E porque estão calados todos os outros responsáveis políticos e partidários? Já se deviam estar a ouvir os clamores. 

P.S. - E também Marcelo. “É de presumir que as pessoas responsáveis não tenham ideias tontas”.» 

João Vasconcelos-Costa, médico virologista, no Facebook (27.11.2020, 17:00)
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Catarina Martins, na votação do OE2021

 


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Vamos planear as presidenciais na véspera?

 


«Não somos o primeiro país nem seremos o último a votar em plena pandemia. O que falta para começarmos a planear? Informação há muita. A International Foundation for Electoral Systems (IFES) tem uma parte do seu site só para isto. A IFES foi fundada em 1987 nos EUA, com o objetivo de promover a democracia, e presta assistência a países na organização de eleições. É financiada pelos EUA, França, Reino Unido, Canadá, Finlândia, Noruega, Suécia, Austrália, OSCE e ONU. O Conselho da Europa também tem uma página dedicada a eleições em tempos de covid-19, com links para várias outras organizações que se têm preocupado com isto. O IDEA – Institute for Democracy and Electoral Assistance, outra organização internacional que estuda, compila informação e oferece assistência eleitoral, tem igualmente uma parte do seu site dedicada às eleições em período da pandemia. 

Desde o início da pandemia que estão a recolher informação sobre como diferentes países votam neste período e a chamar a atenção para os perigos, incluindo adiamento de eleições em 73 deles. Um dos documentos disponíveis na série covid-19 da IFES chama-se “Inclusion and Meaningful Political Participation”. “Inclusão”, que é como quem diz que a falta de participação eleitoral afeta alguns grupos vulneráveis da população, os mais pobres, os mais jovens e as minorias. “Com significado” chama a atenção para o facto de que mais pessoas a votarem reforça a legitimidade democrática dos resultados eleitorais. “Participação política” dispensa apresentações – ou talvez não, pelo caminho que leva a abstenção em Portugal. 

Esta gente tem a solução mágica para resolver o problema bicudo de termos eleições covídicas? Não. Mas tem boas ideias e haverá outras, que é urgente discutirmos. Podemos mudar a forma como votamos. O Conselho da Europa tem um conjunto de recomendações para implementar voto electrónico de forma segura. Temos o voto postal. Podemos discordar destas soluções por levantarem questões de segurança ou privacidade. Mas não é preciso ir por aí – há outras formas de facilitar a participação eleitoral. 

Nos EUA, houve mais de 100 milhões de votos antecipados, dos quais cerca 20 milhões foram presenciais e os restantes postais. O estado de Queensland, na Austrália, onde o voto é obrigatório, votou duas vezes durante a pandemia, nas eleições locais de março e nas estaduais de outubro. A solução foi voto postal e voto antecipado - o período eleitoral durou 11 dias, com horário alargado. Além disso, aumentou-se o número de secções de voto, para garantir maior proximidade e evitar deslocações. Na Nova Zelândia, votou-se de 3 a 17 de outubro e também houve um aumento do número de secções de voto. Mais secções e mais dias para votar quer dizer menos enchentes. Evitar enchentes faz com que as pessoas tenham confiança em ir votar, temendo menos pela sua saúde. 

Na Coreia do Sul, que também votou em abril, para permitir aos eleitores mais velhos votarem a partir do hospital ou de casa, montaram-se secções de voto à sua porta. Na Sérvia, que votou em junho, houve equipas com urnas móveis que foram ao encontro dos eleitores mais vulneráveis, que assim puderam exercer o seu direito de voto. 

Depois, há o óbvio: medidas de higiene nos locais de voto. Mesmo aqui, pode usar-se a imaginação. Na cidade de Milwaukee, no Kansas, os responsáveis eleitorais fizeram uma campanha para recrutar jovens para as mesas de voto. Razões: menor risco para a saúde de quem assegura a permanência nas mesas e oportunidade para entusiasmar os jovens, frequentemente afastados da política e menos dados a votar. 

O facto de não haver debate nem organização que se veja é especialmente trágico no nosso país. Vejamos. Temos taxas de abstenção elevadas e crescentes. Em legislativas, passou de 15% em 1980 para 51% em 2019. Nas presidenciais, quase o mesmo: de 16% para 51% em 2015. Pior: as eleições presidenciais com menor participação eleitoral foram em 2011, quando Cavaco Silva foi reeleito: 53,5%. Mas eleições para segundos mandatos são sempre menos participadas. As segundas eleições menos participadas foram as de 2016, com uma taxa de abstenção de 51,3%: Marcelo Rebelo de Sousa, contrariamente ao que corre por aí, não é um campeão do apoio popular. Teve pouco mais de 2 milhões e 400 mil votos. Excluindo Cavaco Silva no seu segundo mandato, é o Presidente que foi eleito com menos votos. 

Entretanto, estamos metidos na pior crise económica desde que as medimos. O debate caótico do orçamento mostra que a instabilidade política está ao virar da esquina. Nos Açores, as eleições regionais abriram caminho à formação de um governo PSD com o apoio do Chega de André Ventura, um partido xenófobo, misógino e securitário. Se a crise política bater à porta do Governo central, se houver eleições legislativas, se coligações destas aparecerem no caminho do Governo central, vai ser preciso tomar decisões difíceis. Nesse dia, vai ser precisa legitimidade democrática em Belém. Um Presidente eleito com meia dúzia de votos seria uma péssima notícia. 

O pior sinal vem de Belém. O Presidente da República, que devia ser o garante da normalidade democrática e ajudar-nos a planear tudo com tempo, tardou a marcar as eleições e ainda nem sequer disse se é ou não candidato. Cavaco Silva, em 2010, convocou eleições a 11 de outubro, para 23 de janeiro. E anunciou que era candidato no dia 26 de outubro. Na corrida ao tabu, Marcelo ganha a Cavaco. E em 2020 pagamos mais caro.» 

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26.11.20

Há dias em que Alexandre O’Neill não me sai da cabeça

 

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Maradona

 

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Aprenda a aldrabar com os médicos pela verdade

 


«Já aqui escrevi sobre esse grupo que usa a megalómana mas reveladora denominação de “Médicos pela Verdade”. De como, sem serem especialistas da área, se entretêm a lançar suspeitas sobre o que diz quem realmente investiga o coravírus ou trabalha de forma mais direta com a pandemia e, com o grau de segurança possível, vai dando ao Estado a informação para que tome decisões. Como enganam milhares de pessoas nas redes sociais, lançando a confusão e a dúvida fora dos lugares onde se faz o debate científico e vão convencendo os incautos que o contraditório científico se faz em posts no Facebook. Mas, acima de tudo, de como estes médicos, psicólogos, dentistas e enfermeiros têm o atrevimento de, apesar de meterem a foice em seara alheia, se atribuírem a propriedade da “verdade”, insinuando que os especialistas da área andam a enganar os cidadãos. 

A Ordem dos Médicos, com a lentidão que é comum quando não estão em causa as lutas políticas e corporativas do seu bastonário, lá avançou com um processo disciplinar para quem, tendo deveres deontológicos, espalha desinformação nas redes. Desinformação que, no meio de uma pandemia, pode custar vidas. Mas era inevitável que a coisa acabasse por ir mais longe. E foi: uma das fundadoras dos Médicos pela Verdade foi apanhada, no Telegram, a “prescrever" uma forma de ludibriar os testes, para darem negativo. 

Maria Margarida Gomes de Oliveira é mesmo médica (tem dado a cara pelo movimento) e, perante uma mãe cujo filho de 22 anos foi chamado para fazer o teste de rastreio do SARS-CoV-2 porque tinha contactado com uma pessoa infetada, disse-lhe para ele recusar fazer o teste PCR e, “se a pressão pidesca" fosse muita e o jovem não conseguisse escapar, usar a tal receita para que o teste desse negativo. Apesar de se defender com sigilo profissional, não há defesa possível. A “informação” foi dada com várias pessoas a ler. Se aquilo era uma consulta, a violação do dever de sigilo foi da própria. A verdade é que a “receita” foi replicada por muitas pessoas. E até foi repetida a uma grávida, que pretendia garantir que medidas de segurança não fossem tomadas, afastando-a do recém nascido – o que, na realidade, não está previsto. Alguns especialistas ouvidos dizem que a “receita” da anestesiologista é pouco eficaz. Como recordou Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, este comportamento pode ser punido pelo artigo 283.º do Código Penal. 

Da parte criminal tratarão os tribunais, se isto lá chegar. Da parte disciplinar, tratará a Ordem, que também já abriu um processo a esta médica. Mas seria interessante que o bastonário, no intervalo do seu trabalho sindical e político, condenasse de forma clara e audível estes irresponsáveis, contribuindo para os desautorizar aos olhos dos cidadãos. Há médicos a usar o título que lhes é garantido pela Ordem para ensinar pessoas a falsear testes no meio de uma pandemia. Bem sei que é politicamente mais promissor fazer guerrilha contra quem, mal ou bem, a tenta combater. Até já há promessas de carreira autárquica. Mas, apesar de tudo, a Ordem dos Médicos ainda tem a função de regular a atividade médica. E isso faz-se por via disciplinar e tomando posições públicas. A forma descarada como estes médicos espalham desinformação mostra que não temem o poder disciplinar da Ordem ou o julgamento dos seus pares. Lá saberão porquê.» 

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25.11.20

Antes que o dia acabe

 



Quando a nossa festa se estragou / E o mês de Novembro se vingou / Eu olhei p'ra ti / E então eu entendi / Foi um sonho lindo que acabou / Houve aqui alguém que se enganou
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Decisões incompreensíveis

 


O Governo obriga as escolas e creches a fecharem em dois dias úteis e dá tolerância de ponto aos funcionários públicos (que não perdem, assim, nem um cêntimo). 

Para os pais que trabalham no privado, serão os patrões que terão de decidir se lhes pagam ou não esses dias, já que diz a ministra do Trabalho que «Não se aplica o apoio que foi criado para o contexto do ano lectivo 2019/2020». Porquê? Em Março, previa-se «um apoio excepcional à família para trabalhadores por conta de outrem correspondente a dois terços da sua remuneração base, pago em partes iguais pela entidade empregadora e pela segurança social.» 

Para além de todo o resto, não se tem consciência de que vivemos num país em que a maioria mais do que esmagadora das empresas é pequena, ou mesmo micro, e que estas diferenças de tratamento são incompreensíveis e só provocam uma revolta que em nada ajuda a uma adesão cívica ao que é necessário para combater a pandemia?
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25 de Novembro de 1975

 



Estou sentada exactamente no mesmo local em que vi isto há 45 anos e estas imagens serão sempre, para mim, o ícone desta data. Ponto final.
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Se é “pela verdade”, comece por desconfiar

 


«Nas profundezas das redes sociais, trava-se uma guerra. Há relatos de batalhas sangrentas no Twitter, das quais poucos escapam ilesos. Repórteres de guerra infiltrados em grupos de WhatsApp dizem ter avistado homens adultos a marcar sessões de porrada. Tudo por causa de um vírus que parece uma esfregona. Já fui apanhada numa escaramuça provocada por um bocado de tecido manhoso com caveiras ou patinhos que mede aproximadamente 9,5 por 17,5 centímetros, vulgo máscara, mais conhecida entre os mais radicais como “focinheira” ou “mordaça”, o símbolo máximo da subjugação da “carneirada” à narrativa oficial do medo. Afiançaram-me que existem estudos sobre os efeitos neurológicos irreparáveis causados pelo seu uso. Manifestada a minha preocupação com a possibilidade de ser operada por alguém que passa uma boa parte da sua vida com a ela colocada, garantiram-me ser a sua substituição pela abertura de janelas nos blocos operatórios recomendada pelos melhores cirurgiões. 

Por mais tentador que seja tratar por igual todos os que contestam a opção tomada para gerir a pandemia, não consigo apelidá-los em bloco de “covidiotas” ou “negacionistas”, mesmo se os há pelo meio. Muitos estão genuinamente preocupados com as consequências que as políticas seguidas podem deixar no equilíbrio complexo entre liberdade e segurança. Sou inclusive obrigada a reconhecer uma forte tentação em atirar-me para os braços do negacionismo sempre que oiço “na China é que resolveram bem o problema”. Também se deve reconhecer a importância de vozes dissonantes que, desde março, chamam a atenção para a dimensão dos danos colaterais - na economia, na nossa sanidade mental e até no próprio serviço nacional de saúde, todo ele direcionado para os doentes covid. 

Onde se torna difícil acompanhar muitos dos que clamam ser “pela verdade” está na sua frequente posição de superioridade em relação à “carneirada”, que não questiona nada e aceita tudo. Esses carneiros, que não tiveram tempo para tirar um curso acelerado em medicina com especialização em epidemiologia e virologia, mais um bacharelato em matemáticas aplicadas e estatística e uma pós-graduação em gestão dos sistemas de saúde, enfiaram uma máscara no bolso e foram à sua vidinha o melhor possível. Em última análise, se alguém nos vai safar, na saúde e na economia, são eles. 

Suspeito que muitos dos agora agarrados à narrativa da Grande Ilusão sentem tanto medo como os “covideiros” que não largam a máscara nem para dormir. Enquanto estes últimos estão piamente convencidos que se todos cumprirmos as regras o vírus desaparece - o que é pouco provável -, aqueles procuram uma escapatória na recusa do perigo. O seu negacionismo é só uma outra maneira para conseguirem fazer o mais difícil nesta epidemia: sair de casa e navegar na incerteza. 

Se só fosse assim, não vinha grande mal ao mundo. Mais, até tem vantagens. Se ninguém questionasse as grandes opções, talvez não fossem tantos a insistir que todas as medidas devem conseguir o máximo controle do contágio com o dano mínimo na economia. E também podíamos assistir a um baixar da guarda na necessária vigilância perante o apetite voraz do Estado em regular ad infinitum a vida em sociedade em prol do bem comum. 

Mas existe um ponto em que se torna necessário chamar a atenção e pedir cautela. No meio desta azáfama em fazer ver enfim a verdade aos seus semelhantes, acontece não raro conseguirem apenas baralhar ainda mais quem está a tentar fazer o melhor possível para conseguir resolver a gincana em que foi enfiado. Por existir o medo tantas vezes denunciado, exige-se muito cuidado quando se oferece aos outros uma narrativa de negação do perigo. Em pleno cansaço pandémico é demasiado apetecível baixar a guarda. Ora, qualquer que seja a sua posição na guerra do covid, ninguém minimamente sério nega passar uma grande parte da solução pela responsabilidade individual. Será sempre contraproducente dar uma desculpa para que esta diminua. 

Da próxima vez que depararem com um vídeo ou texto proveniente de uma qualquer associação que se autoproclama “pela verdade”, comecem por verificar melhor a sua origem e a sua credibilidade. Recorram ao mesmo critério usado perante um país que se apresenta como “democrático”: se o fosse mesmo, talvez não precisasse de o apregoar logo no nome.» 

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24.11.20

24.11.1906 – António Gedeão

 


Faria hoje uns improváveis 114 anos. Ver mais AQUI.
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Jorge Bateira

 



Vale a pena reservar 5 minutos para ouvir. Nem sempre estou de acordo co JB, mas hoje diz algumas verdades como punhos. 

«Vamos admitir que, perante a pressão do Presidente para que se aprove o Orçamento, perante o catastrofismo dos comentadores e das televisões façam do voto contra da esquerda, perante sondagens desfavoráveis que já reflectem esta formatação da opinião pública, os partidos da esquerda acabam por se abster. Se assim for, a Assembleia da República estará a falhar no principal instrumento que combate esta crise. Para mim, isto é trágico.»
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Pelos mínimos não vamos lá

 


«As administrações do Hospital Beatriz Ângelo (PPP) e da Linha Saúde 24 estão a oferecer vales de compras do Pingo Doce para aliciar os seus trabalhadores a fazerem horas extra. Vales de compras! 

Em outubro, o concurso para 435 médicos de família deixou 148 vagas por preencher. Uma vez que estes internos passaram para especialistas, o saldo no SNS voltou a agravar-se: tem agora menos 1029 médicos que em janeiro, antes da pandemia. O concurso para a contratação de especialistas hospitalares ainda não está concluído, mas a situação deverá piorar: a manter-se a tendência atual, dos 1000 internos, o SNS vai reter 700. 

A falta de profissionais é de tal forma grave que o decreto presidencial que enquadrou a última declaração de estado de emergência permite proibir os profissionais de se despedirem do SNS. Mas, em contramão, o Hospital de Braga e outras instituições entregaram cartas de não renovação de contrato a dezenas de temporários que esgotaram as duas renovações de quatro meses permitidas pelo Governo. 

Às debilidades estruturais do SNS, tem-se acrescentado confusão e falta de planeamento. Porquê? Porque é que em vez de carreiras reconhecidas, salários dignos e condições de trabalho, o Estado se permite promover o Pingo Doce e propor aos profissionais um esquema público-privado de angariações? Depois do caos instalado, ¬¬¬¬-finalmente o Governo admitiu conceder aos hospitais autonomia para contratarem alguns profissionais fora do esquema precário por quatro meses. Esta norma (lançada aliás no mesmo dia em que o PS chumbou a proposta do Bloco para dar autonomia de contratação aos hospitais) limita-se porém a algumas especialidades e vigora apenas durante um mês. 

Em todas as áreas, a resposta do Governo tem sido fraca e tardia, sempre sob pressão e na estrita medida do mínimo indispensável. Dizem-no todas as análises oficiais sobre a proposta de Orçamento do Estado: Conselho de Finanças Públicas, Conselho Económico e Social, Unidade Técnica de Apoio Orçamental, todos garantem que, se o Orçamento não agrava a crise, também não serve para a contrariar. O FMI identifica Portugal entre os países que menos investe a compensar os efeitos da pandemia. A Comissão Europeia diz que, sem as ténues medidas extraordinárias, o Orçamento seria mesmo de contração, ou seja, agravaria a crise. Segundo a OCDE, Portugal é dos países europeus onde a pandemia motivou menores gastos adicionais em Saúde. E tudo isto porquê, para quê? Para poupar uns pontos de dívida? Agora? De que servirão, se a economia ficar arrasada e o SNS não se levantar? 

Vivemos a maior crise das nossas vidas. Se não é agora que se justificam as medidas mais fortes, quando será? As prioridades do Governo estão erradas. E cada dia aumenta o preço que o país pagará por este desacerto.» 

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23.11.20

Realismo

 

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Zita Seabra pula e recua

 


Isto não é fake, retirei eu da conta de Zita Seabra no Twitter. Nem vale a pena comentar o conteúdo, apenas verifico que a senhora, que até é Editora, tem os neurónios em mau estado, já que nem sabe redigir correctamente meia dúzia de linhas e que até ignora que não se põe uma vírgula entre sujeito e predicado.
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Não queremos um mero regresso ao normal, queremos mais e melhor

 


«A pandemia de covid-19 já roubou a vida a mais de um milhão de pessoas em todo o mundo. Para além destas trágicas consequências, evidenciou também as desigualdades e as fragilidades a que a sociedade se encontra sujeita no século XXI. 

Segundo as Nações Unidas, iremos experimentar a maior recessão económica de que há memória desde a Segunda Guerra Mundial. Estima-se um crescimento dramático da pobreza extrema e portanto o regresso da fome. Portugal é um dos países que poderá sofrer um maior nível de destruição económica. 

No segundo trimestre de 2020, segundo dados do Eurostat, o país teve a quarta maior contracção do PIB da União Europeia e desde Fevereiro já perdeu 180 mil empregos, segundo dados do INE. Inversamente, Portugal é o quarto país que menos despende nas medidas de combate à pandemia num conjunto das 38 economias ditas avançadas - cerca de 3,2% do PIB. Somos, portanto, um dos países que mais sofrem a nível económico e aquele em que o Governo menos investe para travar as consequências da crise pandémica. 

É necessário reconhecer que os desafios que vivemos seriam difíceis para qualquer governo, mas o esforço que está a ser feito parece ser insuficiente, sobretudo no que respeita ao sectores mais precários da sociedade. Travar o apoio directo às famílias e às pequenas e médias empresas enquanto se aguarda a chegada dos milhões do Plano de Recuperação e Resiliência é como pensar salvar uma planta cuja raiz já secou, despejando sobre ela um enorme balde de água. O défice público que tanto se pretende conter só tenderá a derrapar com a quebra do consumo e o aumento dos encargos do Estado com prestações sociais. 

Mobilizar a sociedade em torno do futuro implica manter a sua vitalidade, dialogar colectivamente sobre as estratégias adoptadas e planear uma transição que não deixe vidas suspensas. Pelo contrário, assistir à degradação das suas condições é entregá-la de mão beijada ao desespero e às sementes onde germina o fim da democracia. 

Sabemos que a resposta à Grande Depressão implicou o maior esforço de equalização social de que há memória através de uma intervenção pública robusta. Reduziram-se as desigualdades e a concentração de capital, formaram-se os Estado-Providência, consolidaram-se os direitos sociais e regulou-se o funcionamento do mercado. É necessário, por isso, que este Plano de Recuperação e Resiliência seja acompanhado por uma alteração de paradigma muito maior. 

É urgente repensar o panorama de políticas públicas e canalizar os investimentos no sentido de resolver simultaneamente as assimetrias que se sedimentaram no quotidiano e no território. Por um lado, solidificando as condições básicas da existência, induzindo as acessibilidades a uma habitação digna, a um salário justo e a um contrato de trabalho seguros, à qualificação e à saúde universais, a um ambiente saudável. Por outro, interrompendo um modelo de desenvolvimento territorial baseado na competitividade e especialização em prol do mercado global que resulta num país polarizado, pouco coeso e pouco resiliente. 

O impacto da pandemia em Lisboa e no Porto demonstra de forma evidente as vulnerabilidades desta opção. Se estas cidades não se tivessem tornado num mero produto comercializável, se a sua economia fosse mais diversificada, se a habitação não se tivesse transformado num mero activo financeiro ou num apêndice da actividade turística, se não se tivesse optado pelo desaparecimento do seu tecido social talvez estes centros urbanos estivessem hoje em muitos melhores condições para resistir aos impactos desta crise. 

O Governo promete através dos fundos europeus investir 1633 milhões de euros para reestruturar o parque de habitação social e criar a bolsa nacional de alojamento urgente. É uma boa notícia, mas os sinais são contraditórios. No Rossio foi aprovada recentemente a transformação de um quarteirão inteiro num enorme centro comercial, os preços da habitação continuam a subir embora a menor ritmo e os programas de incentivo ao arrendamento de longa duração não constituem mais do que uma benesse aos proprietários, financiada com os nossos impostos para compensar a quebra colossal da procura turística. Situação ainda mais perversa quando a indústria do alojamento local é precisamente aquela que é mais facilmente convertível. 

Em síntese, necessitamos de repensar o papel do Estado e de abandonar definitivamente o modelo em que o mercado é o grande soberano dominando sobre todas as esferas da vida, da economia, da política ou do ambiente (como já nos alertou o filósofo Karl Polanyi), transitando para um modelo baseado na cooperação, na reciprocidade, na participação e numa verdadeira sustentabilidade. O mundo do mercado desregulado é o cenário das grandes divisões sociais, dos conflitos geoestratégicos, da ascensão do fascismo e das grandes catástrofes ambientais. Como diria Thomas Paine, “these are times that try man’s souls” e é por isso que não nos devemos deixar vencer pelo cansaço. Agora que já é possível imaginar o fim da pandemia, devemos exigir não o regresso a uma vida normal, mas a viagem a um futuro capaz de a transcender largamente.» 

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22.11.20

Estado de Emergência – Decreto Nº 9/2020

 


Para ler e coleccionar. Está AQUI.
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21.11.2013 – A 2ª Reunião da Aula Magna

 

Quem mantém um blogue encontra por lá rastos de acontecimentos que se vão esbatendo na memória com o passar dos anos. Em pleno governo da AD, é o caso desta iniciativa de Mário Soares – «Em defesa da Constituição, da Democracia e do Estado Social» –, que contou com intervenções do promotor e de Alfredo Bruto da Costa, Carlos do Carmo, Helena Roseta, João Gabriel Silva, Marisa Matias, Ruben de Carvalho, Pacheco Pereira e Pinto Ramalho. 

Deixo aqui aquele que foi considerado «o discurso da noite». Encontrei-o no blogue e gostei de voltar a ouvi-lo, sete anos depois no calendário e nas nossas vidas – muito mudou para o bem, mas podia estar agora melhor, mesmo com pandemia. 


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Estado de Emergência – uma boa cábula

 


Se não ouviu a conferência de imprensa do PM, ontem, durante mais de uma hora, é isto que precisa de saber. 
E se não sabe em que grupo de risco mora, tem AQUI a lista.
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A ideologia neoliberal também mata

 


«Quem tivesse aterrado em Portugal na última semana e ligasse a TV, consultasse jornais e assomasse às redes sociais pensaria que havia regressado ao passado, com discussões sobre totalitarismos, fascismos, comunismos, campos de concentração ou de trabalhos forçados e até polícias políticas da ex-RDA. Tudo por causa do acordo entre PSD e Chega nos Açores. Como quase sempre neste tipo de debates, o mais revelador é o que fica de fora. O que é latente, mas nunca é enunciado. 

Neste caso, para além de se tentar criar a ideia que os opostos se atraem, o que não é designado tem nome: chama-se ideologia neoliberal, dominante nas últimas décadas no mundo ocidental. É ela que está envolta em contradições, incapaz do progresso social e de promover a coesão colectiva. É ela que tem de ser questionada. É a partir dos seus vazios que irrompem fenómenos populistas. É simples discutir fascismos e comunismos, mas é a desmontagem do neoliberalismo que interessa. O problema é que é bem mais complexo e menos sexy. Baralha noções fáceis, porque tanto é adoptado à direita, em versão musculada, como à esquerda, em versão humanista. Não possui manifesto, nem rostos de déspotas a quem possam ser assacadas responsabilidades. A sua violência faz-se por entre zonas cinzentas. 

Sempre que se evocam atrocidades do passado, o que se quer reafirmar é o presente neoliberal. É dizer: vêem? Não é perfeito, mas é o menos mau, portanto, mais vale estarmos imóveis e nem pensar em alternativas, para além das que são moldadas pelas práticas da competitividade, exclusão ou exploração. Sim, agora, felizmente, não há campos de concentração. Mas isso não nos deve fazer esquecer o terror dos campos de refugiados, do mar Mediterrânico transformado em cemitério, em guerras impostas em nome da democracia, em milhões que morrem por patologias ligadas a alterações económicas. Sim, não estamos perante um processo objectivo que alguém tivesse planeado ou executado. É uma crueldade sem rosto. Mas impiedosa e destruidora. 

Mandarem-nos à cara que houve experiências, no passado, terríficas, não significa que hoje não as tenhamos, mas que se manifestam de outras formas. E a pandemia só veio intensificar esse cenário. Parecemos, hoje, mortos-vivos, que deambulam por entre hospitais mal equipados, depois de décadas de desinvestimento, ou em cidades desertas, com medo do contágio. Os sistemas de saúde entram em colapso, as economias afundam-se, as liberdades são cerceadas, morre-se de doenças provindas da devastação ambiental ou devido à pobreza, desemprego e abandono. O trágico é que a ideologia neoliberal vive bem com isto. Alimenta-se disso. 

Cada nova crise é a forma de se reconfigurar e ganhar novo impulso. Aproveita para se ver livre de uma velha ordem, para instituir uma nova, que é apenas a velha com a aparência de nova. Ventura é isso. Não é anti-sistema. É a sua reencarnação, por excesso, alimentando-se dos destroços, reforçando a ideologia neoliberal do mercado livre, de preferência, sem o estorvo da democracia. Não é essa a tendência de parte do mundo actual? Lideranças musculadas, autoritarismo nacionalista e quanto menos democracia melhor para o capital circular à vontade? Existe lá maior distopia do que ver hoje potências como a China, EUA, Rússia, Brasil ou Índia enunciando grandes diferenças, mas expondo tantas semelhanças? 

Estamos a transformar as nossas sociedades em lugares doentios, contraditórios e sem horizonte. A imaginação política não parece ir além do seleccionar de forma instrumental o passado. Quanto ao presente e futuro, parecem ter sido apropriados pelo neoliberalismo, que promete maravilhas, a maior parte artificiais, desde que exista capital para as adquirir, claro está. Para uma outra perspectiva, seria preciso que, em vez de sonhar revoluções que nunca acontecerão, nos fôssemos religando com o mundo e as muitas possibilidades que nele existem. Oxalá.» 

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