20.6.25

Um programa clarificador

 


«Um programa eleitoral é o que um partido faria se governasse sem condicionalismos políticos. Quando não tem maioria, a diferença entre o desejo e o possível nota-se logo no programa de governo. Foi o que aconteceu com a ‘geringonça’, onde Costa acabou por apresentar um programa de governo mais à esquerda do que queria. Porque dependia do BE e do PCP. Olhando para a nova composição do Parlamento, Montenegro acrescentou medidas. Não me refiro às 80 que foi pescar aos programas dos outros, um exercício mediático sonso, mas às novidades que tornaram o programa consistentemente mais à direita, numa extensão inédita. É normal. Se o país virou à direita, o Governo vira com ele. Mas tem de ser coerente: se vira à direita, fala com a direita. O que não faz sentido é fazer as mudanças estruturais com o Chega e a IL e ter os Orçamentos aprovados pelo PS.

Quanto ao Chega, o PSD anda atrás do prejuízo. Ventura fala de reagrupamento familiar e o Governo limita o reagrupamento familiar. Fala de nacionalidade, muda a Lei da Nacionalidade. É a extrema-direita que determina os termos em que se debate a imigração. Mas a agenda do Chega não é o centro desta guinada. É o reforço do que foram as curtas experiências governativas do PSD neste século. O seu “reformismo” sofre dos pecados que aponta à esquerda: vive de dogmas ideológicos que escondem o serviço que presta a clientelas. A receita é plana e sem variações no tempo ou na conjuntura. Um fetiche pelas leis laborais num país que sofreu de uma precariedade endémica, a que agora acrescenta mudanças à lei da greve, continuando a retirar força aos sindicados. E a fé de que se baixar IRC e reduzir a progressividade do IRS teremos uma explosão económica. Como já foi explicado, os grandes ganhadores são, em Portugal, o sector financeiro, o retalho alimentar e o imobiliário (de luxo). E são as grandes empresas, muitas delas em regime de oligopólio. Não competem com o exterior, não exportam, não inovam e não qualificam.

Na saúde (e provavelmente na Segurança Social), onde três ou quatro grupos partilham um mercado inelástico, repete-se o padrão. Tudo é simplificado com uma ideia eficaz: ao doente tanto dá se é tratado pelo público ou pelo privado. Acontece que o público e o privado são concorrenciais. Competem por um bem escasso: os médicos. Quando o Governo cria USF geridas por privados, vai buscar os médicos de família ao público. O mesmo com os cirurgiões. Como? Dando ao privado, quer nas USF, quer nas listas de espera para cirurgias, a possibilidade de escolher os doentes rentáveis. Com essa rentabilidade ganha músculo para ir esvaziando o SNS dos melhores médicos, privatizando-o aos bocados. O que o PS foi fazendo por falta de estratégia o PSD faz de forma declarada. Trata-se, e não apenas na saúde, de uma desnatação do Estado. Uma desnatação trágica, tendo em conta a relevância económica do Estado num país periférico como o nosso.

A degradação do SNS, assim como a degradação da escola pública, corresponde ao fim da aliança entre a classe média e os mais pobres, que sustenta o Estado social. A classe média deixa de querer usar os serviços públicos e, por isso, de os querer pagar por via dos impostos. E a extrema-direita cumpre o seu papel histórico, direcionando a revolta contra os de baixo, “subsidio¬dependentes”. Como nos EUA, a classe média passa, na ilusão de que o “mérito” a levará até lá, a identificar-se com os mais ricos e a votar em quem a defenda dos pobres, deixando de partilhar com eles as escolas e os hospitais, transformados em guetos degradados. Deixando de se preocupar com eles.

Há um ano instituiu-se que este Governo era mais centrista porque distribuiu dinheiro a funcionários do Estado. A ideia resulta de uma caricatura da esquerda, de que a própria tem responsabilidade. Este é o Governo mais à direita da nossa história democrática. Não pelas convicções de Montenegro, que nem sei se as tem, mas porque o equilíbrio político assim o determina. Assim como Costa não era o mais à esquerda e fez, porque tinha de fazer, a ‘geringonça’. E é por isso que o PS não pode, na situação difícil em que se encontra, ser o garante incondicional da estabilidade, com o risco de contribuir para um desequilíbrio perigoso, de que será vítima. No próximo Orçamento, o pior que pode acontecer é Montenegro viver com os duodécimos do seu OE anterior. Até é possível que o próximo Presidente acabe com a ideia absurda de que os chumbos de Orçamentos correspondem a dissoluções. Talvez seja bom o PS aproveitar esse momento para obrigar o Governo a abandonar a estratégia “pisca-pisca”, travando a sua própria irrelevância enquanto oposição. Fazer de morto não vai funcionar.»


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