3.10.20

Marisa Matias – Declaração de candidatura

 


Declaração apresentada a 3 de outubro de 2020 em Lisboa

Em 2016, fui candidata à Presidência e Portugal vivia um momento singular. Tínhamos sofrido a troika e a política de empobrecimento. O país estava enfraquecido pela pobreza e pela emigração. Mas, logo depois da derrota da direita nas legislativas de outubro de 2015, Portugal já tentava abrir caminhos, entre ameaças europeias e vaticínios céticos contra a solução política que iniciou uma recuperação dos rendimentos das pessoas. 

Esse fatalismo foi vencido e a política mudou. Na proteção das reformas e pensões, na recuperação dos rendimentos, no desenvolvimento de serviços públicos, impedindo novas privatizações, o país ganhou com o reforço da esquerda e com a mobilização popular. Foram dados passos importantes e festejei-os convosco. 

A minha candidatura fez parte dessa mudança que quebrou o ciclo da austeridade e que permitiu ao país respirar e recuperar. Esta é uma candidatura das pessoas que à esquerda não baixam os braços e constroem soluções para o país. Uma candidatura de quem, como Maria de Lurdes Pintassilgo, acredita na força do diálogo. De quem acredita que podemos ter uma política diferente. Mesmo diferente. 

Foi essa esperança que me propus representar nessas eleições de 2016. Fui ouvir as pessoas e fazer a campanha como gosto, junto delas, encontrando vontades e abraçando essa imensa energia de quem trabalha e não vive para truques, vantagens e podridão. Os votos que me deram foram de confiança nessa energia, de afirmação de uma esquerda que sabe o que quer. 

Sabemos que hoje vivemos tempos diferentes, num contexto novo e ameaçador. Perante uma nova crise, a maior das nossas vidas, temos a responsabilidade de usar o que aprendemos nas crises anteriores, para proteger Portugal, a nossa casa comum, e para enfrentarmos os perigos que assombram todo o mundo, desde a destruição climática até à espiral de violência racista e discriminatória. 

A pandemia acelerou a crise económica e social. Mas também é certo que não a inventou. Não foi a Covid que empurrou dezenas de milhares de jovens para cima de bicicletas e motas para serviços de entrega porta a porta, sem contrato e sem direitos. Não foi a Covid que criou os lares clandestinos, onde são maltratados tantos idosos. Não foi a Covid que inventou a soberba dos patrões que fecham a porta, despedem as trabalhadoras e abrem nova empresa ao lado. Não foi a Covid que inventou a violência sobre as mulheres ou as crianças. Não foi a Covid que inventou a corrupção ou juízes ao serviço de traficantes do futebol. Tudo isso já existia antes da doença e é outra ameaça sobre o nosso país. 

Mas sei que a pandemia nos atingiu como uma tempestade e, apesar do heroísmo das e dos profissionais de saúde e de tantos outros trabalhadores (e nunca me esquecerei do que fizeram e do que estão a fazer), houve já quase duas mil mortes e dezenas de milhares de pessoas infetadas. Sei e sabemos que ainda temos tempos muito duros pela frente. 

Vivemos uma crise sanitária e ela mostra-nos onde está a força do nosso país: na solidariedade e no cuidado, no profissionalismo e na humanidade. A força do país não está na riqueza, não está nas fortunas, não está no facilitismo, que só fizeram nascer corrupção e desigualdade. A força é o que é comum, a começar pelo Serviço Nacional de Saúde. A democracia é o que é de toda a gente, é a liberdade que cuida de toda a gente. Essa força é o meu programa: a democracia é o é que de todos, para todos e por todos. 

E, por cima da crise sanitária, temos a crise social. Os seus efeitos recaem de forma desigual sobre a população, os mais pobres e os esquecidos são sempre as primeiras vítimas, o desemprego é uma praga, a vulnerabilidade cresceu. Em poucas palavras, Portugal está aflito. 

É dessa aflição que vos quero falar. Ela tem razões imediatas e que serão superadas, mesmo que demore muitos meses, mas há outra doença que nos ataca e que nunca nos quer largar: é o nosso atraso, é o que nos falta nos centros de saúde e hospitais, é o abandono escolar, são as atividades poluentes, é o desemprego, é a falta de investimento que constrói qualidade de vida, é a fraude e a mentira. 

Por isso vos digo que uma economia mais justa tem de assentar em transparência e respeito. Transparência no combate à impunidade dos financeiros, à corrupção das portas giratórias do poder, à fuga fiscal de quem mais tem. A resposta aos nossos problemas estruturais impõe medidas corajosas de controlo público, de reforço de incompatibilidades, de investigação e repressão do crime económico, financeiro e fiscal, de escolhas estratégicas pelo ambiente e pelo emprego. 

Os que nada querem fazer e que estão satisfeitos com os seus privilégios vão ter-me pela frente. E, como sei que me perguntam o que quer a minha campanha, digo já com todas as palavras: se há os que querem Portugal parado, eu quero o meu país vibrante de jovens, de cultura, de respeito pelo trabalho, de solidariedade. 

Eu não sou candidata para fazer vénias ao sistema ou a poderes que são os responsáveis pelo atraso de Portugal. Não aceito discriminações, não tolero a intolerância, não me calo perante o ressentimento e a ignomínia. A mentira e a grosseria, ou o aproveitamento da vulnerabilidade dos que sofrem, estão a tornar-se sistema. Há, de Trump à Europa, uma mistura de políticos em segunda mão com advogados de negócios, com especuladores, com saudades da impunidade, que procura embrulhar um programa de atraso com a violência contra os trabalhadores, os pobres, as mulheres, os imigrantes. 

A todos eu digo que contem comigo: repito, a democracia é o que é de todos, para todos e por todos. As pessoas que têm orgulho de todas as cores da democracia são muitas, somos a maioria e não nos vergamos. Com a minha campanha, quero dar a voz a essa enorme maioria. 

É por isso que vos digo que esta crise será vencida por quem venceu a última crise, há cinco anos. E quero dirigir-me a essa imensa maioria que, com o seu trabalho e a sua luta, todos os dias constrói este país. 

Não encontrarão nesta candidatura o conformismo de quem quer que tudo fique na mesma. Encontrarão, isso sim, a força determinada de quem, convosco, vai à luta pelas soluções que protegem Portugal: a segurança do emprego e do salário, a garantia de uma democracia que queremos forte e de um país que queremos livre. 

Em 1994, Maria de Lourdes Pintasilgo elaborou o relatório da Comissão Independente sobre População e Qualidade de Vida constituída pelas Nações Unidas. Deu ao documento um título original, “Cuidar o Futuro”, e nele explorou as várias dimensões da justiça económica, social e ambiental - sempre sob o prisma do compromisso entre gerações. 

Pintasilgo não foi “apenas” a primeira mulher candidata à Presidência da República. Ela marcou Portugal com a sua mensagem de solidariedade - no modo como vivemos está já o modo como viverão os nossos filhos. Julgo que desse sentido de responsabilidade podemos retirar a melhor definição de país: uma comunidade capaz de se questionar hoje sobre o que quer ser amanhã. 

Como Pintasilgo, sei que as eleições presidenciais não estão acima da política. Quem ocupar a Presidência não será um adorno nas escolhas decisivas que temos pela frente. Como Pintasilgo, sei que os princípios da nossa Constituição são guias essenciais que devem apontar caminhos a quem responde pela República. Cuidar o futuro é não temer as escolhas decisivas de hoje. 

É por isto que aqui estou, neste momento difícil em que devemos afirmar a democracia, sem jogos de sombras. 

Eu sou o que digo e o que faço e por isso me comprometo convosco. 

Sei que não há liberdade sem pão. 

Não há liberdade sem habitação. 

Não há liberdade sem cultura. 

Não há segurança sem saúde. 

Não há segurança sem salário e sem contrato. 

Não há segurança sem igualdade. 

Não há segurança sem liberdade. 

Liberdade e segurança, é a minha luta. Aqui estou para isso. Já me conhecem, chamo-me Marisa Matias e vou à luta convosco. 

Obrigada pela vossa força. 

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Indignos para receber heranças

 

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O meu primeiro Barreiro

 


José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«Nunca imaginei ir tantas vezes ao Barreiro como vou agora. As razões são mais ou menos conhecidas e têm que ver com o facto de dois armazéns do Arquivo Ephemera serem no Barreiro. Não apenas no Barreiro, mas em pleno território da CUF, depois da Quimigal e agora da baía do Tejo, atrás do mausoléu onde está sepultado (ilegalmente, aliás) Alfredo da Silva, e no meio de armazéns e ruínas de fábricas, oficinas e estranhos ofícios que lá se instalaram, como uma igreja evangélica, e vários ateliers de arte. Vou lá e estou bem lá, mas, voltando atrás, nunca imaginei “frequentar” o Barreiro como hoje. 

O Barreiro, se fosse uma pessoa, dir-se-ia que era um “carácter”, um portador de identidade, por boas e más razões, que não deixa ninguém indiferente, mesmo que esteja já muito “descaracterizado”, ou seja, estragado. Tem em cima do seu presente um enorme passado e nunca é fácil viver com muita história em cima. A história não está só nas pedras, nas colunas de aço abandonadas, nos silos a desfazerem-se, nos terrenos poluídos, está dentro das pessoas, das famílias, das associações, das ruas e parques. Está no dístico da CUF, “o que o país precisa, a CUF faz”, está numa das melhores vistas do Tejo e de Lisboa, numa longa faixa ribeirinha, está em tradições únicas como a do esperanto, ou do futebol popular e operário. 

Aí por volta de 1966, um pequeno grupo de amigos, estudantes de várias faculdades, “associativos” como se dizia, ou seja, opositores do regime, num período que nós ligamos ao Maio de 1968, mas que na realidade começou muito antes, interessava-se pela cultura que era duplamente do contra, contra o Estado Novo e contra a ortodoxia neo-realista. Isto incluía um outro cinema, uma outra literatura, uma outra música, mas, acima de tudo, uma outra vida. Nós pensávamos que era nova, mas na realidade era mais um remake de outros momentos anteriores em que houve mudança, ou pelo menos vontade de mudança. E isso implicava, como também sempre aconteceu, uma certa forma de vagabundagem que acompanhou esse pré-Maio, mais uma certa forma de libertinagem, e mais uma série de outras “agens” que não vêm aqui ao caso. 

Não havia muito dinheiro, e a cidade, onde eu era estrangeiro, tinha uma geografia que nós próprios criávamos, desde a Cidade Universitária, ao Campo Grande, ao Saldanha, ao Rossio e à Praça da Figueira, e, por fim, nos sítios onde, junto de gente pouco frequentável, se podia comer por muito poucos escudos, na Rua da Alegria, ou na Rua do Alecrim. Uma geografia de cafés, restaurantes e tascos, que para mim era sempre escassa, porque vinha habituado a uma terra com cafés por todo o lado e onde por 2$50 se podia passar o dia, ler e escrever, e sobrava dinheiro. 

Numa dessas noites, eu, a Diana Andringa e o Alexandre de Oliveira resolvemos ir ao Barreiro, já era noite escura. O Alexandre morreu cedo e não sei se a Diana se lembra como eu dessa noite, mas como nada de muito relevante para as nossas personae de hoje está em jogo, posso contá-la como me lembro. A razão por que resolvemos fazer essa viagem nocturna era porque o Barreiro era o Barreiro, o local mítico da classe operária, e como todos os esquerdistas in the making, a terra era simbólica da revolução que desejávamos, mas para a qual não tínhamos mão-de-obra, e duvidávamos sequer de ter a legitimidade de fazer parte dela. 

O mundo era simples, no Barreiro havia não só operários, havia a “classe operária” e essa “classe” pertencia ao PCP. Anos mais tarde arrogámo-nos ao direito de a roubar ao PCP, sem nunca se ter grande sucesso. Verdade seja que as coisas já não eram como no mito, a CUF estava a mudar, ensaiava a primeira comissão de empresa, e o PCP no Barreiro já não era o que era, minado por velhos conflitos entre famílias comunistas, a tal ponto que muitos “controleiros” consideravam-no uma zona difícil, não porque houvesse poucos militantes, mas porque havia muitos e, como já disse antes, história a mais. E nessa noite, como nós não frequentávamos a “classe operária”, havia que ir vê-la ao Barreiro. E lá fomos para o barco. 

A viagem de barco era belíssima, entre as luzes de uma margem e de outra, e, depois de chegados, a pé lá fomos ver a CUF, até à portaria de entrada dos operários do lado da cidade, e às voltas pelas ruas, percebendo muito bem porque uma se chamava “Rua do Ácido Sulfúrico”, porque cheirava a qualquer coisa cáustica. Tenho ideia de que não falámos muito no meio das luzes das torres das fábricas e do ruído industrial, numa paisagem que hoje quase não existe em Portugal, porque era uma experiência que nos tornava silenciosos. Se era para ver os operários, o que recebemos foi o pacote completo: o mundo da fábrica, de uma fábrica a sério, como não havia outra em Portugal, um mundo para nós tão estranho como Marte. 

Quando nos cansámos, percebemos que não tínhamos sequer pensado em qualquer horário de regresso, mas conseguimos apanhar ou o último barco da noite ou o primeiro da manhã, já não me lembro. Mas tínhamos visto o Barreiro, como se fôssemos em peregrinação. Isto hoje pode parecer, a quem não viveu estes anos e estes momentos, insignificante ou trivial, mas foram estes que nos fizeram. E bem.»
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2.10.20

José Cardoso Pires chegaria hoje aos 95



 

Cardoso Pires nasceu em 02.10.1925 e e morreu em 1998. 

Não vou recordar tudo o que dele é conhecido como um dos nossos grandes, grandes escritores do Século XX, mas sim que tive a sorte de o conhecer e que, pelo mais puro dos acasos, almoçámos juntos perto do Largo do Carmo, no dia 25 de Abril de 1974. 

Podia descrever os sustos que apanhávamos, nesta casa, quando ele (que nunca se entendeu bem com automóveis) saía a guiar o carro a 20 km à hora, depois de larguíssimas horas de conversa e de uns tantos copos de wkisky; como se comia bom peixe num barracão que já não existe, em plena praia da Caparica, «Tricana» de seu nome; como nunca esquecerei o andar onde se exilava para escrever, frente ao mar, e como me impressionavam as longas tiras de papel onde escrevinhava palavras, pequenas frases e trocadilhos, que iam saindo de conversas mais do que banais, para mais tarde os utilizar. E mil outras recordações que me reaparecem hoje num filme a preto e branco, neste triste Outono  que vamos vivendo.

Para «cortar» a nostalgia, repesquei este belíssimo texto: 

Cidade ocupada e radiosa

«A cidade apareceu ocupada e radiosa. Deparámos com colunas militares inundadas de sol; e povo logo a seguir, muito povo, tanto que não cabia nos olhos, levas de gente saída do branco das trevas, de cinquenta anos de morte e de humilhação, correndo sem saber exactamente para onde mas decerto para a LIBERDADE! 

Liberdade, Liberdade, gritava-se em todas as bocas, aquilo crescia, espalhava-se num clamor de alegria cega, imparável, quase doloroso, finalmente a Liberdade!, cada pessoa olhando-se aos milhares em plena rua e não se reconhecendo porque era o fim do terror, o medo tinha acabado, ia com certeza acabar neste dia, neste Abril, Abril de facto, nós só agora é que acreditávamos que estávamos em Primavera aberta depois de quarenta e sete anos de mentira, de polícia e ditadura. Quarenta e sete anos, dez meses e vinte e quatro dias, só agora.» 

José Cardoso Pires, Alexandra Alpha
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Trump

@pedrovieira
 

Trump «disse» que testou positivo. A ver vamos, como dizia o ceguinho, a telenovela segue durante os próximos dias.
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Direito à indignação

 


«Foi Mário Soares quem cunhou esta expressão provocatória: o direito à indignação! 

Um "direito" que exprime o escândalo perante a indignidade, a falta de respeito, contra a violação inaceitável das regras elementares da convivência humana, a reação sentida e legítima contra uma ofensa insuportável. Mário Soares sempre foi assim ao longo de toda a vida, até para desautorizar o seu primeiro-ministro, Cavaco Silva, em Março de 1995, no pleno exercício das funções de presidente da República! Vem isto a propósito da polissemia da expressão, "dignidade humana", e da sua importância e atualidade. 

Esta pandemia que não sabemos ainda por quanto mais tempo nos vai atormentar expôs com flagrante nitidez velhos problemas que tardamos em reconhecer e enfrentar, como as desigualdades crescentes que romperam a coesão das sociedades e a crescente vulnerabilidade dos velhos estados soberanos no contexto da desregulação internacional que enfraqueceu a autoridade democrática num mundo desregulado, ameaçado pelas alterações climáticas e pela proliferação anárquica de conflitos armados. 

Vivemos um tempo de ansiedade e de incerteza. Aquilo que ainda há poucos anos se acreditava serem valores essenciais e irrenunciáveis tornou-se objeto do tráfico venal entre interesses instalados que já nem tentam ocultar o mais despudorado oportunismo. Significativamente, o debate entre os dois candidatos às eleições presidenciais nos Estados Unidos da América que ocorreu na madrugada desta quarta-feira ofereceu-nos o mais deplorável espetáculo do estado lamentável em que se encontra o planeta e a mais poderosa potência que sobreviveu à Guerra Fria. Nem o moderadíssimo candidato democrata, Joe Biden, conseguiu manter uma postura de estado, séria e impassível, face à diarreia verbal do seu opositor e atual presidente, Donald Trump. 

A pandemia que paralisou por longos meses a economia mundial revelou também o lado mais trágico da miséria que alimenta o opulência dos mais ricos. Desde os camponeses da Índia aos americanos do Norte e do Sul, aos lares de idosos da Suécia ou aos bairros mais pobres de Madrid, o vírus atuou de forma metódica, coerente, letal. Dos que sobreviverem, muitos vão enfrentar o desemprego ou a insolvência mas muitos outros sobrarão para alimentar a fome insaciável da máquina de fazer dinheiro. O que farão os governos, os partidos, os representantes eleitos? O conceito de dignidade humana atingiu hoje um patamar incompatível com a indiferença perante o absurdo de tamanhas desigualdades. Não há liberdade sem igualdade e é o escândalo perante tal indiferença que alimenta a extrema-direita populista e autocrática. Só na relação entre seres de igual dignidade é que a liberdade se torna um bem estimável, valioso e carente de proteção.» 

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1.10.20

Dois anos sem Aznavour

 



Continuo a ouvi-lo, faz parte de mim.
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Mafalda versus Marcelo

 


Se a Mafalda pudesse concorrer às presidenciais em Portugal, Marcelo ficaria livre para tomar banhos no Guincho 365(6) dias por ano.
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Trump, o touro enraivecido


 

«Ao contrário do que os media logo opinaram, em uníssono e usando o mesmo adjetivo, caótico, o debate entre Trump e Biden autorizou pelo menos duas conclusões. A primeira é simples, os jornalistas estão e estarão mal equipados para lidar um touro como Trump. Falta-lhes o aguilhão, a vara para tanger bois. A segunda é ainda mais simples, os debates de Trump nunca são ou serão sobre políticas e sim sobre propaganda, diversão e insulto. Um debate é uma troca de ideias, de propostas e de argumentos e Trump é escasso em todos estes bens. O arsenal palavroso dele é um amálgama de ofensas, provocações e afirmações de potestade, quase todas falsas. Assim, o respeito está ausente e o caos garantido, e caos é o pântano onde floresce esta planta carnívora. 

A campanha de Trump tinha preparado um panfleto onde proclamava que Trump tinha debatido o suficiente com Biden e acabava por ali. O problema? O panfleto foi solto antes do debate, ou seja, nada tinha a ver com o resultado da ação. Em Trump, nada tem a ver com o resultado da ação e sim com a perceção do que ele deseja ser o resultado da ação, repetido à exaustão e ventilado na plataforma de eleição dos trolls, o Twitter. O debate não foi um debate mais foi aquilo que Trump conhece, usa e abusa, a televisão do formato reality show. Neste caso, abusou. Em quantos votos isso o pode prejudicar? Provavelmente, poucos. O Trump com quatro anos de palco e de Casa Branca em cima não é o mesmo da campanha de 2016, e os eleitores dele também não são os mesmos. Os idólatras estão mais entrincheirados. 

Trump está a lutar pela sobrevivência, pessoal e a do grupo económico com a marca, e usará todos os truques do gangsterismo para escapar ileso em caso de uma vitória de Joe Biden. Ilegalidades, intimidação, usurpação de poder, incitamento à violência, negação das evidências, manipulação distribuída pelas plataformas, do Twitter à imprescindível Fox News, e um rol de mentiras e factos negados, nada ficará de fora do arsenal Trump, e este arsenal não é político nem integra políticas. Querer retirar da torrente de lama uma pedra preciosa é exercício inútil. É como argumentar contra Bashar al-Assad, o presidente da Síria, quando ele negava o uso de armas químicas. Assad decidira lutar pela sobrevivência usando as armas proibidas e, num terreno menos sangrento, Trump luta pela sobrevivência usando as armas proibidas pelo civismo da polis. Quando ele mencionou os Proud Boys, um grupo de supremacistas brancos de extrema-direita, não foi, ao contrário do que disseram alguns jornalistas, para os absolver por não os condenar. Foi para os incitar à violência armada, avisando-os para se prepararem. A subtileza é importante. Os Proud Boys celebraram. 

Se a eleição correr mal a Trump, não hesitará em atiçar as milícias da igreja de fiéis, e em desafiar a “lei e ordem”. Porque não só acha que pode ditar a lei e a ordem, como sabe que caso Biden ganhe, o grupo Trump estará condenado a anos no banco dos réus, e Trump e filhos gastarão os lucros inflacionados que nunca tiveram, mais uma cortina de fumo e marketing, em advogados e peritos legalistas. E nem vamos falar do crime de traição à pátria, que os serviços secretos guardam com prudência, decerto em camadas de encriptação. Ou negociará um perdão com os democratas, o que começa a ser uma possibilidade remota dada a acrimónia. Mas, se a guerra civil for uma ameaça, os democratas não hesitarão em aplacar o touro enraivecido. 

Em última análise, Trump negociaria um retorno ao seu meio de origem, a televisão, e certamente a Fox News e o sr. Murdoch o contratariam para continuar a disparar flechas envenenadas para cima de uma Administração democrata. Mesmo ganhando a Casa Branca, sem o Senado ser retirado ao Partido Republicano, a democracia americana continua em risco de vida. 

Assim o tem repetido Thomas Friedman, o colunista do “The New York Times” e um dos raros jornalistas equipados para lidar o touro. No “debate”, entre aspas, Chris Wallace foi massacrado pela boçalidade de Trump, e acabou, como sempre acontece aos jornalistas neste tipo de debates, a ser o bode expiatório da noite. Retirar o microfone ao Presidente, como alguns sugeriram? Seria um atentado à liberdade de expressão, esse elástico que estica até ao infinito, e um gesto que daria a Trump a oportunidade para se armar em vítima. 

E, claro, a obsessão jornalística com a imparcialidade e a neutralidade, fez com que logo a seguir ao debate os títulos online tentassem fazer equivaler o touro desembestado a um político normal. Os primeiros títulos tentavam também responsabilizar Biden pelo desastre e colaram-lhe a frase do “palhaço”. Biden chamou palhaço a Trump, uma ofensa onde os únicos ofendidos seriam os palhaços. A equivalência moral dos dois candidatos é uma falsa premissa que conduz a falsas conclusões. Às primeiras sondagens sobre quem ganhou e quem perdeu, igualmente inúteis para virarem o eleitorado como as eleições de 2016 demonstraram, os títulos online começaram a mudar. Sobretudo no “Financial Times”, que parecia acusar Biden de ter contribuído para um debate “mal-educado” ou “sem maneiras”. O título foi logo substituído pelo adjetivo “caótico”. O que o adjetivo não diz, e omite, é que o caos tem um único criador, e não dois. Trump é o caos, e não é um caos criativo. A propaganda não é política, mas é uma arma política eficaz, perguntem aos totalitaristas e autocratas, perguntem à história de todas as ditaduras. 

Ao cabo de quatro anos de desordem, Trump continua a ser um magnete mediático. Quatro anos em que a CNN se transformou numa plataforma de Trump por oposição, quatro anos de Trump bashing em vez de informação clara e factual, e de igualdade de tratamento e tempo de antena aos dois partidos, de alargamento do ecrã a Biden em vez da sua ocupação a tempo inteiro por Trump e comentadores de Trump. Quatro anos em que os eleitores Trump sentiram que o seu homem era vítima de tratamento diferenciado e negativo, quatro anos em que nem um facto ou factoide do grupo Trump e da família foi investigado. Biden foi deslizando na invisibilidade, bem como os democratas. É um elogio à sua resistência que tenha conseguido chegar inteiro ao debate. A televisão não o queria. E, pior ainda, também não o detestava, como detestava Hillary Clinton. Se Biden conseguiu a nomeação, isso atesta uma capacidade política. E se for eleito, é Kamala Harris que será eleita para um segundo mandato. Ou não. E a democracia expirará em direto.» 

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30.9.20

Adeus Quino e obrigada

 


La muerte de Quino: el día que contó cómo nació Mafalda.
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30.09.1935 – Porgy & Bess

 


Porgy & Bess estreou-se na Broadway, em Nova Iorque, há 85 anos, com um elenco formado unicamente por elementos afro-americanos – uma decisão mais do que ousada para a época, que retardou o seu êxito até 1976. 

«Summertime» é certamente o trecho mais conhecido da ópera, mas há muitos mais. 








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EUA, presidenciais

 


Eu não vi o debate desta noite, mas já percebi que o vencedor foi Xi Jinping.
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Um crime sem atenuantes

 


«A morte de um cidadão estrangeiro em instalações de um serviço público, alegadamente provocada por agressões bárbaras e com requintes de crueldade, é abominável em qualquer país onde exista um resquício de Estado de direito. 

O tratamento desumano e degradante a que foi sujeito o cidadão ucraniano Ihor Homenyuk no Centro de Instalação Temporária do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do aeroporto de Lisboa, no dia 12 de Março, não motivou a indignação que merecia nessa altura, por força do alarme social que a chegada da pandemia começava a alimentar. 

Este caso mancha a reputação de um serviço com pouca notoriedade pública, associado a uma enorme burocracia, cujos funcionários terão encoberto o caso, e mancha a imagem do próprio Estado. A morte de Ihor Homenyuk pode ter sido uma excepção, mas os contornos do caso permitem supor que nestes centros de instalação temporária o uso da violência não é algo inédito. 

Como é possível que um ser humano esteja manietado durante 15 horas numa sala, onde terá sido agredido com um bastão metálico por três funcionários do SEF, que se encontram em prisão domiciliária, sem que mais ninguém se tivesse apercebido da gravidade do que ali se estava a passar? Como é possível que a morte natural tenha sido aventada na certidão de óbito, quando o seu corpo apresentava vários tipos de lesões grosseiras? 

Ihor Homenyuk morreu devido a um misto de negligência e de barbaridade, seja nas medidas de contenção de que foi alvo, extremamente excessivas, seja no acompanhamento que deveria ter tido e não teve, seja na verificação do óbito. Nesta cadeia de falhas sucessivas, ninguém se salva. Não há dúvida possível. 

O que se passou naquele centro de instalação temporária viola a convenção internacional dos direitos humanos e revela um profundo desrespeito pela vida de um semelhante enquanto estava sob custódia policial. Não há atenuante que possa ser invocada para justificar este crime hediondo, num país que teve o discernimento de regularizar todos os imigrantes com processos pendentes no SEF até 18 de Março deste ano. 

É obrigatório que a Inspecção-Geral da Administração Interna feche o inquérito que o ministério ordenou que abrisse, com as devidas consequências no SEF, e que a investigação e acusação do Ministério Público, que deve ser divulgada ainda esta semana, ajudem a Justiça a encerrar este caso com a dignidade que o Estado negou a Ihor Homenyuk quando este chegou a Lisboa com um simples visto de turista.» 

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29.9.20

Samora Machel

 


Seriam 87, hoje.
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Catarina Martins no Polígrafo





Independentemente do conteúdo, vale a pena avaliar a agressividade do entrevistador e a firmeza da entrevistada.
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Lutar contra o desperdício



Um bela inspiração para o Outono 2020.
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Travar agora uma segunda vaga de despedimentos

 


«Em março, o Bloco lançou o despedimentos.pt, um site para a denúncia de despedimentos e abusos laborais. O objetivo é informar e apoiar quem mais precisa, mas também fornecer um retrato realista de uma das piores faces da crise: a irresponsabilidade das empresas que despedem por escolha e que aproveitam a pressão da crise para todos os abusos. 

Até hoje, recebemos 1382 denúncias, correspondentes ao universo de 145 mil trabalhadores, de todos os distritos do país e quase todos os setores de atividade. 

Em empresas como o Pingo Doce, a Trofa Saúde ou a Bourbon, a desregulamentação dos tempos de trabalho transformou-se em horários excessivos, retirada de dias de descanso e abusos nos bancos de horas. Noutras, como a Molaflex ou a Gestamp, foi imposto trabalho a tempo inteiro a trabalhadores em lay-off. Noutras empresas ainda, foram reportadas violações das regras de segurança e higiene no trabalho, abusos na marcação de férias ou no exercício do teletrabalho. Entre todos os casos analisados, são os despedimentos e, em particular, o rompimento dos vínculos precários, que afetam a maior parte das pessoas que nos contactaram. Trabalhadores "à experiência" na FNAC, na Altice ou no McDonalds; trabalhadores temporários ou em outsourcing na Galp, no IKEA, na HiFly ou na Roca; trabalhadores com contratos a prazo na Prozis, Continental-Mabor, Eurostyle; trabalhadores a recibos verdes na Casa da Música, em Serralves, no IEFP, na Segurança Social... todos foram despedidos, independentemente da situação financeira da entidade patronal. 

Nós sabemos que, a cada crise, os despedimentos, os abusos e os cortes salariais só contribuem para afundar a economia. E sabemos que é nestes momentos que a chantagem cresce, impondo regras ainda mais desfavoráveis para o futuro. Tudo isto é feito em nome da "excecionalidade" da crise. Mas porque é que essa mesma "excecionalidade" não nos leva, pelo contrário, a criar medidas especiais de proteção do emprego e do salário? 

Para travar uma nova vaga de despedimentos é urgente uma lei que impeça despedimentos em empresas que apresentaram lucros nos últimos seis meses ou que recebam apoios (protegendo vínculos permanentes como precários). Esta medida excecional, a vigorar em 2021 e 2022, deve ser complementada com outras formas de proteção dos trabalhadores: a revogação da duplicação do período experimental: a reposição do valor da indemnização por despedimento ou caducidade do contrato de trabalho; a obrigação de contratos de trabalho para os milhares de estafetas e trabalhadores de plataformas digitais que, tendo sido essenciais na pandemia, foram descartados da proteção laboral. 

Já conhecemos o resultado quando a vida das pessoas é jogada na precariedade e no desemprego. Se queremos mudar essa sina, então é tempo de alterar as regras.» 

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28.9.20

Prós & Contras

 


Termina hoje. Nem tudo é mau em 2020.
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28.09.1974 – Silenciosa ficou a dita «maioria»

 


Ler o post de 2019 AQUI.
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Trump ou Xi Jinping

 


Qual é o pior ou o melhor para os portugueses: Trump ou Xi Jinping? As opiniões dividem-se e a discussão vai aquecendo.
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Machistas histéricos

 


«Às vezes Portugal parece um país decente, a anos-luz do que era há 50 anos. Mas a semana que passou foi particularmente notória em exemplares cavernícolas, como o do já conhecido professor de Direito que gritou, no seu julgamento por violência doméstica, “morte a todos os feminismos”. 

É possível alguém dizer o que o professor Aguilar diz nos seus mestrados e continuar a dar aulas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa? Até hoje, sim. O homem compara o feminismo ao nazismo e diz que a violência doméstica é um atentado à família. E escreve no programa de Direito Processual Penal III: “Dizem os psis que as empresas devem contratar mais mulheres, designadamente para cargos dirigentes, porquanto as mulheres são, na linguagem pós-moderna, mais emocionalmente inteligentes do que os homens, a saber, são ‘pessoas emocionalmente muito inteligentes’, i.e., precisamente aquilo que na Antiguidade, na Idade Média e ainda no Antigo Regime mas já na Idade Moderna, se chamava a pessoas desonestas, de ‘espertas’, em suma, de ‘canalhas’.” 

O professor citado é um exemplar raro de machista histérico. Mas infelizmente Portugal ainda está cheio de machistas-não-tão-histéricos-assim, como o inevitável Sousa Tavares que, na crónica deste sábado do Expresso, se insurge contra a possibilidade de um imposto extraordinário, esperando que só tenha acolhimento “naquele clube de histérico-feministas-bloquistas da Universidade Nova”, universidade onde trabalha a nossa colunista Susana Peralta que respondeu à letra, nas redes sociais, ao machismo só-razoavelmente-histérico de Sousa Tavares. Por acaso, nesse dia, o caderno principal do Expresso, onde escreve o cronista, era dirigido pela feminista Leonor Beleza. 

Esporadicamente pensamos que este mundo acabou. Pode passar-nos pela cabeça que as pessoas, nomeadamente as que escrevem para os jornais, dão aulas em faculdades e são juízes nos tribunais, sabem o significado da palavra “feminista”, um movimento que remonta ao princípio do século XX – e o século XXI já vai com 20 anos. Mas não. 

Na reserva protegida do machismo lusitano ainda não se conseguiu perceber o significado da palavra “feminista”. Um exemplo disso foi o julgamento do citado professor de Direito por violência doméstica. A juíza Joana Ferrer, depois do arguido várias vezes irromper contra o feminismo e as feministas, disse: “Excelentíssimo senhor professor doutor, o senhor insiste em chamar-me feminista, mas eu não sou.” 

O machismo histérico tem uma vantagem – é possível agir em conformidade com a Constituição da República. Esperemos que a Faculdade de Direito o faça.» 

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RAP e Marisa

 

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27.9.20

27.09.1975 – Últimos fuzilamentos do franquismo e reacções em Portugal




Em 27 de Setembro de 1975 foram fuzilados cinco antifascistas espanhóis: José Luis Sánchez Bravo, José Humberto Baena Alonso, Ramón García Sanz, Juan Paredes Manot e Ángel Otaegui. As pressões para que o acto não fosse consumado não resultaram, Franco não cedeu.

Portugal, em pleno PREC, não esperou pela execução e iniciou na véspera, 26 de Setembro, assaltos aos consulados de Espanha em Lisboa e no Porto, ataque a sedes de empresas espanholas e incêndio e destruição da embaixada de Espanha em Lisboa. 


(Vídeo e mais informação aqui)
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Marisa Matias e a precariedade

 

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Então, porque não descem o salário mínimo?

 


«É evidente que quanto mais baixos forem os salários mais empregos haverá. Mas então desafio Rui Rio a levar o seu argumento ao absurdo e a propor uma descida do salário mínimo para 500 euros líquidos, o limiar de risco de pobreza. Pois então não haveria mais novos empregos? Claro que sim, o chão de fábrica ficaria repleto de gente. Gente meio-morta ante a legitimação da miséria. 

Rui Rio — e muitos economistas — pode discordar da subida do salário mínimo, até porque os seus argumentos não são estúpidos. O que não pode é acusar quem defende o contrário de demagogia. Demagogia teve o Governo com a redução do horário de trabalho da função pública, mas não a tem com a (sublinhe-se) pequena subida do SMN que prepara. E que assim não suspende nem ameaça a tendência dos últimos anos, que teve impacto na vida de centenas de milhares de pessoas e reduziu a desigualdade, que ainda assim prevalece brutal no nosso país. 

Com a subida do SMN, de 30% desde 2014, o número de trabalhadores a recebê-lo foi aumentando, para mais de 22% do total. Hoje haverá cerca de 750 mil pessoas a ganhar 635 euros (565 líquidos 14 meses por ano), com grande peso na restauração e alojamento, comércio, indústria transformadora e construção – setores muito sovados pela pandemia. Com a crise, que já ninguém esconde que será longa, os rendimentos já estão a cair e os quase 170 mil postos de trabalho que já foram varridos serão ainda engrossados por mais falências e empresas que já não querem ou não podem beneficiar do lay-off ou de linhas de crédito. Os salários médios descerão através do desemprego. 

Um economista fala assim: o problema dos salários baixos está na baixa produtividade, que resulta das baixas qualificações e pouca acumulação de capital. Um assalariado mínimo ouve assim: trabalho que me farto, estou na mesma há anos e não saio da cepa torta porque há sempre uma crise. 

Pois, a produtividade. Mas produtividade não é apenas “trabalhar mais para produzir mais” como se fosse preciso chicote: em Portugal ela é muito prejudicada por falta de investimento, que faz empresas trabalhar com maquinaria e tecnologia antiga ou de segunda. Foram as exportações que nos tiraram da crise anterior e foi o turismo que alimentou milhares de bocas, mas criando trabalhos precários ou mal pagos. O salário mínimo é um nivelador mínimo pela dignidade da vida dos trabalhadores. Abdicar de combater as desigualdades por causa de uma crise que por natureza já as aprofunda é aceitar que os mais desfavorecidos ficarão entregues a si próprios. É como dizer que não vamos legislar mais sobre a desigualdade salarial entre homens e mulheres (elas ganham menos 17% do que eles) porque agora, enfim, não dá jeito. 

Quando se sai do estirador analítico para essa coisa chamada vida real, topa-se com um país com salários baixos e impostos altos, com uma desigualdade gritante e níveis persistentes de miséria, em que ou se sai daqui para fora ou se fica preso em elevadores num prédio com demasiados fogos no rés do chão, poucos pisos no meio e algumas penthouses a arranhar o céu. E se o Estado está tão preocupado com as empresas, baixe as contribuições para os salários mais baixos. Não pode, não é? Pois, mas pode o trabalhador, ou como dizia um banqueiro há uns anos, o país “ai aguenta, aguenta”. 

635 euros. Menos do que até aqui, mas aumente-se o salário mínimo.» 

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