1.10.20

Trump, o touro enraivecido


 

«Ao contrário do que os media logo opinaram, em uníssono e usando o mesmo adjetivo, caótico, o debate entre Trump e Biden autorizou pelo menos duas conclusões. A primeira é simples, os jornalistas estão e estarão mal equipados para lidar um touro como Trump. Falta-lhes o aguilhão, a vara para tanger bois. A segunda é ainda mais simples, os debates de Trump nunca são ou serão sobre políticas e sim sobre propaganda, diversão e insulto. Um debate é uma troca de ideias, de propostas e de argumentos e Trump é escasso em todos estes bens. O arsenal palavroso dele é um amálgama de ofensas, provocações e afirmações de potestade, quase todas falsas. Assim, o respeito está ausente e o caos garantido, e caos é o pântano onde floresce esta planta carnívora. 

A campanha de Trump tinha preparado um panfleto onde proclamava que Trump tinha debatido o suficiente com Biden e acabava por ali. O problema? O panfleto foi solto antes do debate, ou seja, nada tinha a ver com o resultado da ação. Em Trump, nada tem a ver com o resultado da ação e sim com a perceção do que ele deseja ser o resultado da ação, repetido à exaustão e ventilado na plataforma de eleição dos trolls, o Twitter. O debate não foi um debate mais foi aquilo que Trump conhece, usa e abusa, a televisão do formato reality show. Neste caso, abusou. Em quantos votos isso o pode prejudicar? Provavelmente, poucos. O Trump com quatro anos de palco e de Casa Branca em cima não é o mesmo da campanha de 2016, e os eleitores dele também não são os mesmos. Os idólatras estão mais entrincheirados. 

Trump está a lutar pela sobrevivência, pessoal e a do grupo económico com a marca, e usará todos os truques do gangsterismo para escapar ileso em caso de uma vitória de Joe Biden. Ilegalidades, intimidação, usurpação de poder, incitamento à violência, negação das evidências, manipulação distribuída pelas plataformas, do Twitter à imprescindível Fox News, e um rol de mentiras e factos negados, nada ficará de fora do arsenal Trump, e este arsenal não é político nem integra políticas. Querer retirar da torrente de lama uma pedra preciosa é exercício inútil. É como argumentar contra Bashar al-Assad, o presidente da Síria, quando ele negava o uso de armas químicas. Assad decidira lutar pela sobrevivência usando as armas proibidas e, num terreno menos sangrento, Trump luta pela sobrevivência usando as armas proibidas pelo civismo da polis. Quando ele mencionou os Proud Boys, um grupo de supremacistas brancos de extrema-direita, não foi, ao contrário do que disseram alguns jornalistas, para os absolver por não os condenar. Foi para os incitar à violência armada, avisando-os para se prepararem. A subtileza é importante. Os Proud Boys celebraram. 

Se a eleição correr mal a Trump, não hesitará em atiçar as milícias da igreja de fiéis, e em desafiar a “lei e ordem”. Porque não só acha que pode ditar a lei e a ordem, como sabe que caso Biden ganhe, o grupo Trump estará condenado a anos no banco dos réus, e Trump e filhos gastarão os lucros inflacionados que nunca tiveram, mais uma cortina de fumo e marketing, em advogados e peritos legalistas. E nem vamos falar do crime de traição à pátria, que os serviços secretos guardam com prudência, decerto em camadas de encriptação. Ou negociará um perdão com os democratas, o que começa a ser uma possibilidade remota dada a acrimónia. Mas, se a guerra civil for uma ameaça, os democratas não hesitarão em aplacar o touro enraivecido. 

Em última análise, Trump negociaria um retorno ao seu meio de origem, a televisão, e certamente a Fox News e o sr. Murdoch o contratariam para continuar a disparar flechas envenenadas para cima de uma Administração democrata. Mesmo ganhando a Casa Branca, sem o Senado ser retirado ao Partido Republicano, a democracia americana continua em risco de vida. 

Assim o tem repetido Thomas Friedman, o colunista do “The New York Times” e um dos raros jornalistas equipados para lidar o touro. No “debate”, entre aspas, Chris Wallace foi massacrado pela boçalidade de Trump, e acabou, como sempre acontece aos jornalistas neste tipo de debates, a ser o bode expiatório da noite. Retirar o microfone ao Presidente, como alguns sugeriram? Seria um atentado à liberdade de expressão, esse elástico que estica até ao infinito, e um gesto que daria a Trump a oportunidade para se armar em vítima. 

E, claro, a obsessão jornalística com a imparcialidade e a neutralidade, fez com que logo a seguir ao debate os títulos online tentassem fazer equivaler o touro desembestado a um político normal. Os primeiros títulos tentavam também responsabilizar Biden pelo desastre e colaram-lhe a frase do “palhaço”. Biden chamou palhaço a Trump, uma ofensa onde os únicos ofendidos seriam os palhaços. A equivalência moral dos dois candidatos é uma falsa premissa que conduz a falsas conclusões. Às primeiras sondagens sobre quem ganhou e quem perdeu, igualmente inúteis para virarem o eleitorado como as eleições de 2016 demonstraram, os títulos online começaram a mudar. Sobretudo no “Financial Times”, que parecia acusar Biden de ter contribuído para um debate “mal-educado” ou “sem maneiras”. O título foi logo substituído pelo adjetivo “caótico”. O que o adjetivo não diz, e omite, é que o caos tem um único criador, e não dois. Trump é o caos, e não é um caos criativo. A propaganda não é política, mas é uma arma política eficaz, perguntem aos totalitaristas e autocratas, perguntem à história de todas as ditaduras. 

Ao cabo de quatro anos de desordem, Trump continua a ser um magnete mediático. Quatro anos em que a CNN se transformou numa plataforma de Trump por oposição, quatro anos de Trump bashing em vez de informação clara e factual, e de igualdade de tratamento e tempo de antena aos dois partidos, de alargamento do ecrã a Biden em vez da sua ocupação a tempo inteiro por Trump e comentadores de Trump. Quatro anos em que os eleitores Trump sentiram que o seu homem era vítima de tratamento diferenciado e negativo, quatro anos em que nem um facto ou factoide do grupo Trump e da família foi investigado. Biden foi deslizando na invisibilidade, bem como os democratas. É um elogio à sua resistência que tenha conseguido chegar inteiro ao debate. A televisão não o queria. E, pior ainda, também não o detestava, como detestava Hillary Clinton. Se Biden conseguiu a nomeação, isso atesta uma capacidade política. E se for eleito, é Kamala Harris que será eleita para um segundo mandato. Ou não. E a democracia expirará em direto.» 

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