«No debate, Donald Trump mascarou Joe Biden: “Ele usa sempre a maior máscara que jamais vi!” Trump levou as mãos à cara, gozando com o zorro democrata. Quanto a ele próprio: “Sei quando preciso de máscara e uso-a.” E a sua equipa? “Ainda esta noite fizemos testes e guardamos a distância social.” Enfim, o costume, Trump claro e falso.
Nessa terça-feira, ao embarcar no Air Force One para Cleveland, a cidade do debate, Trump fez-se acompanhar pela mulher e filhos. Ao embarcar e desembarcar, ninguém usava máscara. O diretor da campanha Bill Stepien, sabe-se, nunca a usou dentro do avião. E, ao chegar, ele e Hope Hicks, a mais próxima colaboradora do Presidente na Casa Branca, entraram para uma carrinha, sem máscara — ambos pagariam caro.
Na quarta-feira, Trump fez um comício no aeroporto de Duluth, no Minnesota, com pessoas apinhadas, a maioria sem máscara. Trump, também sem máscara, pegou num molhe de bonés e atirou-os, um a um, para mãos estendidas e abertas. Para apanhar o boné — ou talvez mais. Na quinta-feira, a conselheira Hicks soube que apanhou mais. Na madrugada de sexta, o Twitter de Trump anunciou que ele e a sua mulher, Melania, também tiveram teste positivo à covid-19.
Do debate, disse na SIC o comentador televisivo Miguel Monjardino: “Foi um shit show.” E tendo ousado o palavrão anglófono, democratizou a informação: “Foi uma merda.” Gostei da ousadia da palavra, porém, o debate não foi shit, isto é, coisa sem valor. Pelo contrário, o debate gerou energia, tal como, a partir de excrementos, um processo chamado “digestão anaeróbia” captura o metano e o dióxido de carbono libertados por bactérias. É uma indústria moderna e útil, o aproveitamento dos excrementos. Na política também pode ser bom, se os cidadãos toparem a sinceridade sem vergonha e/ou a mentira descarada de quem debate.
O expelido por Trump, no debate, expôs Trump. Que culpa tem ele de que alguns cidadãos, de além-mar e por cá também, sejam pitosgas? Ensinar-nos sobre quem discute é, aliás, a primeira função de um debate. Trump é um livro aberto. Em discursos, comícios, tweets e entrevistas, Trump nunca engana. Já o vi num palanque a gozar, com gestos incontrolados, um paraplégico; num discurso, sobre um colega de partido, o falecido senador McCain, ouvi-o chamar cobarde a um herói de guerra; e, numa entrevista, dei por ele a meter a perna direita pela esquerda, para dizer o que levou um certificado médico a livrar da guerra do Vietname o filho de milionário que ele era…
Nos debates, se formos atentos à sua impudicícia, Trump diz-nos sempre muito. Viu-se na terça. Ele interrompeu quase todas as intervenções do adversário. Insultou o New York Times, que levou quatro anos a investigar o que qualquer candidato a Presidente faz questão em mostrar — a folha de impostos. Ignorou esta (15 últimos anos sem pagar ao fisco, exceto dois, cada um a 750 dólares) e ignorou as falências sucessivas, impróprias de um homem de negócios tão sagaz. E lançou à cara do adversário o vício de drogas por que passou um filho deste.
Enfim, uma lista de mudslingers (como os americanos chamam às campanhas sujas) que não é novidade em eleições nos EUA. A originalidade de Trump é a sua ação política quase se limitar a essa prática e ele prolongá-la por todo o mandato. Acresce agora o mais grave: o Presidente da América faz pairar dúvidas sobre a legitimidade das eleições, ameaça não aceitar os resultados e manter-se na Casa Branca, mesmo se derrotado. Do nunca visto, com um píncaro no debate: “Proud Boys, cheguem-se para trás e aguardem”, disse Trump. Malta, já vos chamo quando forem necessários...
Os Proud Boys são uma milícia armada pela supremacia branca. Imaginá-la a intimidar no dia da votação vai na esteira do que tem dito Trump. Mas algum senso veio do Partido Republicano e o Presidente teve de ir à Fox dizer que é contra os supremacistas brancos. E que pouco sabe dos Proud Boys. Entretanto, meteu-se o anúncio da covid-19 e Trump não teve ocasião de perguntar a Roger J. Stone, um seu antigo conselheiro, amigo desde a década de 80 e lobbyista de causas sulfurosas, incluindo os Proud Boys.
A investigação oficial sobre a interferência russa nas eleições de 2016 considerou Roger Stone personagem-chave na tramóia de Putin. O FBI levou Stone a testemunhar no Congresso e ele mentiu para proteger alguém. No ano passado, um tribunal condenou-o a sete anos de prisão mas, este julho, Trump comutou-lhe a pena. E Roger J. Stone Jr. está longe de ser o finório com maior influência no narcisista que tomou a Casa Branca.
Ironia extraordinária esta de um vírus transformar Trump no mais frágil dos candidatos em vésperas de presidenciais na América. Espera-se que lhe passe a covid-19, por duas razões. A primeira, porque a América merece ser ela, e não um vírus, a derrotar a bactéria que na história moderna mais pôs em perigo o país. A segunda, porque Donald Trump não pode desaparecer sem sabermos mais dele. Por exemplo, sobre o seu pai espiritual e mentor, o advogado Roy Cohn.
Cohn foi um dos homens fulcrais nos Estados Unidos na segunda metade do século passado. Aos 24 anos era a cabeça pensante do McCarthyism que à pala de combater o comunismo (em plena Guerra Fria) perseguiu intelectuais, artistas e funcionários, numa paranóia liberticida que também caçou homossexuais — apesar de Roy Cohn ser gay (no armário). Nas décadas de 60 e 70, tornou-se o advogado mais temido de Nova Iorque, difamando os adversários, tecendo uma rede entre a câmara, a arquidiocese e a máfia, importando-lhe menos a lei do que corromper juízes do Bronx e de Brooklyn. Um credo: sempre atacar, nunca pedir desculpa.
Em 1973, Donald J. Trump procurou Cohn, dez anos mais velho, mas já uma lenda com um quarto de século. Donald e o pai, milionários na construção civil, tinham um problema com o governo que queria multá-los por não alugarem casas a negros. O advogado pequenino, olhos azuis e um esgar de desprezo nos lábios tinha a solução: pôr o Governo em tribunal. Batem-te? Bate dez vezes mais forte. Ganha a todo o custo e nunca admitas ter errado. Apanhemos a máquina do tempo num regresso ao futuro: “Eu?! Dizer que a covid-16 era só simples gripe? Nunca disse…”
Foi o começo de uma feia amizade. Expulso da barra dos tribunais de Nova Iorque por falsificar a assinatura de um cliente bilionário, Roy Marcus Cohn morreu de sida, em 1986, dizendo que era cancro no fígado. Deixou a herança a um amante. Casas de luxo e o Rolls Royce de chapa de matrícula com as suas iniciais “RMC” e a da limusina Cadillac: “DJT”, as iniciais de Trump. O herdeiro ficou desiludido, o fisco abocanhou quase tudo por causa dos impostos em dívida. Sobrou um par de botões de punho incrustados de diamantes que Trump lhe oferecera. Nem isso ganhou o herdeiro: os diamantes eram falsos.
O cínico mestre Roy Cohn havia de gostar desse desfecho: o seu aprendiz iria longe. Talvez até à Casa Branca.»
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