«A norma da caducidade automática das convenções foi introduzida pela direita numa reforma laboral em 2003 e depois reforçada pelo PS em 2009, tendo-a agravado ao desvalorizar regras específicas de cada contrato que ainda permitiam a sua continuidade até à substituição por nova convenção. O resultado desta medida, combinada com outras restrições à ação sindical, foi fulgurante: em 2008 ainda foram abrangidos 1704 mil trabalhadores pela atualização dos salários convencionais, em 2011 já só foram 1203 mil e, em 2013, limitaram-se a 187 mil. Em cinco anos, o número reduziu-se de dez para um. Houve depois uma ligeira recuperação, mas sempre num patamar de perda de poder negocial da parte mais fraca.
Para o trabalho, o mundo mudou com esta medida. Maria da Paz Campos Lima, professora do ISCTE, apresentou estes números num estudo de 2016 e explicou essa estratégia patronal a que sucessivos governos deram provimento: “A caducidade das convenções coletivas requerida pelas organizações patronais significa, em geral, uma de duas coisas: ou força as negociações de novas convenções a partir do zero, uma ambição de longa data para alguns setores patronais, na perspetiva de definição de novas normas numa relação de forças que lhes seja mais favorável; ou permite, no quadro do paralelismo de convenções, substitui-las por outras mais favoráveis ao lado patronal, e nalguns casos assinadas por sindicatos minoritários”. Essas são as razões ideológicas e políticas do PS, é assim que entende as relações laborais e não faz disso segredo.
Ora, do que não se pode acusar esta estratégia é de ser incoerente. Por isso, e mais uma vez ao contrário de vários analistas, percebo porque é que o PS sempre recusou alterar esta regra, que afinal é também de sua autoria, e, quando convidado a discutir o tema no contexto de uma negociação para um acordo para esta legislatura, há um ano, fechou imediatamente a porta com estrondo. Comentadores alinhados com o PS saudaram essa determinação, abundando no tema tradicional: não se mexe no que resulta e seria uma “provocação” discutir tal assunto. Sim, têm razão, isto resulta, provocou uma desvalorização estrutural da contratação coletiva e, assim, contribuiu para as perdas de rendimento ao longo da década que correu desde a recessão anterior. Tornou-se uma norma de política estruturante.
Nesse sentido, o facto de o PS aceitar agora discuti-la, in extremis, é revelador de uma dificuldade e de uma oportunidade. Reconhecendo que a norma não deve continuar a ser aplicada em momento de recessão, o governo propõe a sua suspensão por um curto período de dois anos (mas ameaça retirar a proposta se não houver acordo em tudo o resto do orçamento). Só que a solução é esdrúxula, dado que a constatação do aumento da desigualdade dos rendimentos em Portugal sugere corrigir as normas desigualitárias, em vez de garantir a sua recuperação passado um curto período. Deste modo, voltar-se-ia sempre ao ponto de partida: se o PS entende que o princípio deve ser a vantagem patronal na negociação, o que agora estará a fazer é um subterfúgio passageiro; se a longa crise de uma década o reorientou para uma norma que proteja o trabalho, então a lei deve ser mudada, o que seria uma vitória do bom senso.
Admita-se que, como tantas vezes, se trata de uma mera jogada. O governo pretenderia assim acenar à esquerda sem desagradar demasiado ao patronato, dado que, afinal, neste período isto limita-se a adiar a caducidade para cerca de 40 mil trabalhadores. O problema é que, deste modo, se institui uma guilhotina: passada a suspensão, voltará a regra, business as usual. Por isso, duvido que os trabalhadores saúdem uma medida provisória que os incita a aceitar o regresso imediato a uma normalidade punitiva para o salário.»
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