Quando Moçambique se despede de Malangatana, um texto de Diana Andringa, incluído no Catálogo da Exposição «Novos Sonhos a Preto e Branco», aberta ao público até 23 de Janeiro, na Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea, em Almada.
Conheci o Malangatana muitos anos antes de o conhecer.
“Era uma vez um pintor que havia em Moçambique e cujos quadros fotografavam coisas que sabíamos que eram África, mesmo que nunca tivéssemos estado em África...”
E mais uma coisa: “Esse pintor, sabes? Esse pintor é negro.”
Bem que desconfiara, eu, ao olhar os quadros. Mas duvidando: Moçambique não era, então, uma terra que desse a negros a possibilidade de se tornarem pintores.
Era mais comum serem exactamente aquilo que ele foi: babá de meninos, apanhador de bolas, aprendiz de curandeiro... Aprendiz de curandeiro? É isso que explica aquelas formas estranhas entre as pessoas comuns que povoam os quadros?
Não conhecia Malangatana, não conhecia Moçambique, mas aqueles quadros eram-me familiares. Aquelas caras que me olhavam, aqueles olhos onde perpassava medo, susto, dor, mas também – mas sobretudo? – dignidade. E espanto: um espanto de recusar que o Mundo pudesse ser assim, como de facto era.
Espanto igual o meu: e onde, nesse Mundo, nesse Moçambique onde negro, se acaso cidadão – ou seja, não indígena, “assimilado” – o era sempre de segunda classe, fora Malangatana buscar essa capacidade de pintar?
No Catálogo de uma exposição organizada em 1961 – tinha Malangatana uns 25 anos – pelo Núcleo de Arte de Lourenço Marques, Pancho Guedes, depois de referir que os quadros apresentados eram “resultado de pouco mais de um ano e meio de trabalho de ex-criado de bar”, escrevia:
“Malangatana é um pintor natural, completo, nele a composição, a harmonia de cores, não é jogo intelectual: acontece-lhe, tão naturalmente como as histórias e as visões.
Ele sabe sem saber. (...)
Ele é visitado por espíritos; certos quadros são alucinações, fragmentos de um inferno que já foi de Bosh.
Malangatana tem um conhecimento profundo das razões subterrâneas dos homens, o que aliado à sua extraordinária visão formal, produz pintura de uma totalidade tão rara que apesar de ele ser um principiante já é um dos primeiros pintores de África.”