«Que me recorde, nunca escrevi sobre denúncias pessoalizadas de assédio que não tivessem chegado à Justiça. Não é pudor, é função. Faço comentário político e nele, o que me interessa, são as questões difíceis e interessantes que movimentos como o #MeToo levantam. Sobre isso fui escrevendo bastante, expondo as minhas esperanças e receios. Esperança num movimento emancipatório que terá efeitos estruturais na mais antiga das relações de opressão. Receios, pelo risco que significa para conquistas fundamentais, como a do direito a um julgamento justo, à defesa e à presunção de inocência. “A vítima tem sempre razão” é um argumento que nunca me conquistou porque não pode conquistar quem acredite no Estado de Direito. O estatuto de vítima não é prévio.
Num volume coletivo da prestigiada editora académica Routledge, “Sexual Misconduct in Academia”, uma portuguesa, uma belga e uma norte-americana, que têm em comum a passagem pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, publicaram um capítulo que, não identificando a instituição ou os alegados assediadores (tratados como “The Star Professor” e “The Apprentice”), tornaram facílimo chegar aos seus nomes.
Podem levantar-se dúvidas quanto ao “anonimato frágil” que permitiu chegar tão facilmente aos visados sem as consequências judiciais de os nomear (estes vão avançar com queixas por difamação), à mistura de casos vividos pelas próprias com a reprodução de “rede de murmúrios”, à pouca clareza da natureza dos vários assédios e abusos ou a tudo isto ser feito a coberto de um artigo académico. Quanto ao último ponto, corresponde a uma cultura que torna as fronteiras entre a ciência e a experiência pessoal difusas, o que mais não é do que honestidade intelectual. Em antropologia, isso faz-se de forma intencional e pensada, aliás. Tudo aqui está numa fronteira que levanta questões éticas e jurídicas complicadas. Seja como for, é impossível ignorar.
A Academia é um espaço especialmente propenso ao abuso de poder. Pela sua organização fortemente hierarquizada, pela importância do domínio intelectual e funcional do “mestre”, pela crescente precariedade dos investigadores e porque a fratura geracional e de poder tende a coincidir com a de género, graças à chegada tardia, mas significativa, das mulheres a um mundo que era dominado por homens.
Há quem tente compreender o fenómeno dizendo que há uma pedagogia a fazer. Que há coisas que, para uma determinada geração, não passavam por assédio e hoje são vistas como tal. Posso ser sensível a isso e até acho que, no meio de tudo, se tem de ir explicando como os limites mudaram (e ainda bem). Mas não sejamos ingénuos. Nem me parece que seja nessa fronteira que as acusações a Boaventura Sousa Santos se fazem, nem me parece que, em geral, o abuso de poder seja assim tão difícil de identificar por pessoas inteligentes e informadas. Não é por acaso que acontece de cima para baixo e nunca de baixo para cima – é a consciência do privilégio que permite ao chefe ou ao “mestre” avanços que o subordinado ou o “aprendiz” nunca se atreveriam a tentar.
Os lugares de que não ouvimos falar são obviamente os piores. Aqueles onde a opressão é ainda mais profunda: as empresas, onde a democracia nem sequer se aproxima da porta e o assédio é muitas vezes bem menos dissimulado, porque a situação de quem o sofre é muito mais precária. E quanto menos qualificadas e mais vulneráveis são as vítimas, mais violento é o abuso. Essas não têm plataforma. Mas que outras a tenham e abram o caminho para uma autêntica revolução de costumes.
Basta passear pelas redes sociais e pelos jornais de direita para perceber que a identidade de um dos visados (Boaventura Sousa Santos) e a inclinação política do centro de investigação tornou este episódio muito interessante mesmo para os que, em todos os outros momentos, mostram desprezo pelo #MeToo. Usam a mesma estratégia que recentemente critiquei aos que instrumentalizaram a proximidade de André Ventura a um padre suspeito de abusos para atingir o líder da extrema-direita: discordam dos métodos e da agenda, mas fazem um intervalo oportunista nas suas convicções.
Até agora, a reação do CES tem sido boa. O seu comunicado distingue-se da reação do principal visado: “Sendo as diversas formas de desigualdade, violência e abuso (moral e sexual) problemas transversais às organizações, o CES não se coloca fora desta discussão importante nem se demite da responsabilidade que tem na promoção efetiva de um ambiente de trabalho científico mais igualitário e livre de todas as formas de assédio.” Para investigar o caso, anunciou a criação de uma comissão independente composta por dois elementos externos com competências reconhecidas no tratamento de processo análogos, um dos quais presidirá, e pela Provedora do CES (também externa).
Ao contrário do que se pensa, há muitas subculturas no CES e, segundo julgo saber, a atual direção até é bastante autónoma da figura historicamente tutelar que ajudou a fundar a instituição. Saberão que os efeitos de uma reação menos do que exemplar não serão os mesmos que se sentiram perante o comportamento vergonhoso da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a quem ninguém, apesar de manifestações de alunas, parece querer cobrar nada.
Porque a cultura é outra, é outra a exigência e serão outras as consequências. Um dos fatores apontados, no artigo, para a ausência de queixas e consequências é que “o centro é o Professor Estrela e se o Professor Estrela cai... a instituição cai com ele.” Uma fonte citada pelo artigo (indispensável) de Fernanda Câncio diz: “O CES é mais do que isto, mais do que o ‘Professor Estrela’ e o seu ‘Aprendiz’”. Se assim é, este é o momento para o provarem.
Comecei por dizer que não me recordo de ter escrito sobre pessoas concretas. Nem pensava romper essa regra. Não tenho dúvidas que parte da pessoalização mediática se deve ao posicionamento político de Sousa Santos. E ao prestígio internacional que tantas vezes, por mera conveniência política, lhe foi negado. Mas isso é inevitável. Também somos julgados pela nossa incoerência. Aliás, esse é um dos elementos centrais do artigo: “o fosso entre a teoria e a prática”.
As posições ideológicas de Boaventura Sousa Santos e de Bruno Sena Martins (conheço e tenho proximidade política com os dois e, com o último, até partilhei um blogue há uns anos) são mesmo o que me leva a escrever sobre o tema. Ou melhor: a utilização, nas respostas que deram ao “Diário de Notícias”, das suas convicções políticas para se defenderem de acusações que não são políticas.
Quanto a Sena Martins, parece-me que usar a cartada da etnia, por ser chamado “aprendiz”, é uma fuga do essencial. Mas a reação que incomoda é mesmo a de Boaventura. Primeiro, “não resiste” a tentar desacreditar uma das autoras. Socorrendo-me da sua linguagem, diria que sabe bem a "linha abissal" que o separa daquela que, como subalterna, chama “insolente”. Exercício que repetiu numa longa carta aos alunos, tentando destruir a reputação da autora. Depois, tenta puxar a esquerda para o seu lado: “O objetivo é lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor. O neoliberalismo está a roubar a alma da solidariedade e da coesão social e criar subjetividades que canalizam os seus ressentimentos para acusações de que sabem não poder haver contraditório eficaz.” E queixa-se de “cancelamento”.
Surgiram, no 40º aniversário do CES, em 2018, vários grafitis: “Fora Boaventura. Todas sabemos.” foi o menos agressivo. Isso até foi determinante para o encontro destas três autoras. Apesar das suspeitas sobre ele parecerem mais generalizadas do que este artigo, Boaventura Sousa Santos é tão inocente como qualquer outro e assim tenho tratado todos os casos (incluindo os dos padres suspeitos de abusos, que apenas têm de ser suspensos por causa da idade das suas potenciais vítimas). Boaventura tem direito à sua defesa e estarei tão atento a ela como às acusações. Não tenho sobre este tipo de casos uma posição diferente da que tenho sobre outros. Não sou um justiceiro. Até porque, em tempos recentes, vi alguns inocentes serem crucificados e, no fim, ninguém lhes foi pedir desculpa.
Mas a defesa de Boaventura é de Boaventura. Só sua. Se usa as causas emancipatórias da esquerda e o neoliberalismo (e até a resistência a uma substituição perversa do anticapitalismo por lutas identitárias) para se defender de uma acusação de abuso, usa todos os que estão nesses combates em sua defesa, tentado fazer de nós seus reféns. E aí, desculpem-me, tenho de dizer: em nosso nome, não! Pelo menos não em meu nome. Até porque não há qualquer indício, por mais leve que seja, de uma motivação política para a acusação que lhe é feita. Se existe, é em sentido inverso: a vontade de construir um pensamento verdadeiramente “pós-abissal”. Como Boaventura defende há tantos anos.»
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