15.4.23

Derrubar o Governo mesmo que isso signifique estuporar a democracia (I

 


1. Este é um artigo que escrevo por alguma coisa parecida com o dever. Preferia não o fazer. Exactamente porque vivemos na ecologia tóxica em que vivemos, é fácil fazê-lo dizer aquilo que ele não diz. Mas vale a pena correr esse risco.

2. Não se indignem com a palavra estuporar. É sólido português e nem sequer é um plebeísmo, só caiu em desuso porque hoje falamos com cada vez menos palavras, ficando com isso cada vez mais pobres. Mas é mesmo o que eu quero dizer com a exacta palavra. Vivemos hoje um momento em que para obter ganhos políticos contra o Governo se cria um ambiente tóxico de radicalização em que vale tudo desde que daí possa vir prejuízo para o actual Governo socialista de António Costa. O efeito principal não será sobre os governos, que vão e vêm, será sobre a democracia. É ela que, pelo caminho, está a ser estuporada pelo “vale tudo” actual e pela incompreensão de que há hoje um efeito de ampliação com mecanismos de desgaste no interior das democracias que são novos. Fazer o que está a ser feito é hoje muito mais perigoso do que no passado.

3. É fácil insinuar que o que me preocupa é a sorte do Governo e que isso é situacionista. Não é verdade. Não me esqueço de que o Governo é um governo medíocre, com raras excepções, porque há excepções. Muito do que hoje facilita a corrosão da democracia deve-se ao Governo e às suas asneiras, que nem sequer percebe o mal que está a fazer e a permitir que se faça. É este segundo aspecto que me interessa, o do “permitir que se faça”, porque hoje o situacionismo é participar e alimentar neste ar tóxico em que estamos envolvidos. O Governo e a sua sobrevivência são o menor problema.

4. Dito isto, também não esqueço um aspecto fundamental da democracia que é a forte legitimação de um governo que tem uma maioria absoluta. Enquanto não houver eleições que mudem o peso relativo político dos partidos e dêem a outros a legitimidade do poder, não são as sondagens que são critério, nem sequer a nuvem de “casos e casinhos”, desde que a justiça funcione para os “casos”, a liberdade de escrutínio para os “casinhos”, e não haja perturbação no funcionamento das instituições, como não há. Os apelos à dissolução da Assembleia e ao derrube do Governo são mais um elemento da radicalização. Não há comparação possível entre as “trapalhadas” de um governo com escassa legitimidade política, ainda por cima herdada, e as de um governo com uma sólida maioria parlamentar, com uma oposição frágil e dividida. Se houvesse dissolução da Assembleia na actual situação, não teria qualquer precedente válido. Deste ponto de vista, o Presidente tem actuado correctamente.

5. O problema é que, com o objectivo de se derrubar o Governo a todo o custo, está a estragar-se a democracia. É um truísmo perigoso achar que a democracia aguenta tudo. Não estamos a falar do dever do escrutínio nem de análise, que é sempre bem-vinda, estamos a falar de campanhas políticas e politizadas usando a comunicação social. A comunicação social teve uma enorme viragem à direita que começou durante o Governo Passos-Portas-troika e se radicalizou com a maioria absoluta do PS. Onde antes a esquerda tinha a hegemonia, hoje o dinamismo político encontra-se à direita que ocupa a parte de leão, por exemplo, do comentário político na televisão, na rádio e nos jornais. O efeito de repetição e a saturação de temas, motivos e, acima de tudo, alvos são hoje definidos à direita, mas esse é apenas o pano de fundo de um processo que tem outra dimensão e, acima de tudo, outros métodos. São esses métodos que estão a estuporar a democracia criando uma elevada toxicidade na acção política.

6. O pretexto parte muitas vezes de “casos” reais, mas que são inseridos num fluxo que não é nem informativo, nem comunicacional, mas politicamente instrumental. O clima é persecutório. Deixou de haver a presunção da inocência, e os desmentidos, mesmo quando revelam mentiras e manipulações grosseiras, ou quando significam a conclusão judicial pelo arquivamento por falta de provas ou a absolvição, raramente são noticiados ou são remetidos para um fundo de página. Há alvos a abater, que uma vez abatidos passam a mira para outros alvos. Há técnicas de saturação que misturam coisas sérias com trivialidades, porque o que conta é criar uma ecologia tóxica, e não a relevância do que se “denuncia”. Tudo é, aliás, tratado do mesmo modo, porque resulta tratá-lo do mesmo modo. O que conta é a repetição, o estilo e o tom.

7. Toda uma panóplia de técnicas de manipulação, duplos critérios, sanha persecutória, sugestões de ilegalidade quando não existem ilegalidades, interpretações ad terrorem, ataques contra as pessoas e seus familiares, mecanismos em círculo vicioso – ou falou de mais e não devia ter falado, ou falou de menos e devia falar mais, ou não falou e devia ter falado, ou falou mas não disse nada, ou está silencioso porque tem culpa – e o arsenal clássico da sugestão da falsidade e da omissão da verdade. E não é só o que se diz, é também o que se cala, omite ou minimiza. E é o tempo da fala – falou hoje mas devia falar ontem, falou ontem mas devia ser hoje, foi com aquele pretexto mas devia ser com outro, etc. –, é um labirinto sem saída. No meio disto tudo há críticas com razão? Certamente que há, mas a duplicidade de critérios, o andar para trás e para a frente, tem uma única constante: o alvo. E a escolha e o modo de tratamento do alvo são puramente políticos.

8. A politização panfletária de quase toda a comunicação social tem efeitos perversos no próprio funcionamento da democracia, gerando um ambiente de permanente excitação, em que predomina o pathos e perde o logos

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