Este texto foi escrito para este blogue por Maria Manuela Cruzeiro.
Andamos todos perplexos. Perplexos é pouco. Antes desorientados, angustiados, revoltados. Este Abril que vivemos hoje é o tempo da comissão liquidatária do pouco que restava de um outro tão diferente de há 37 anos…. O caos tomou conta do país que, para cúmulo da ironia (que também pode ser trágica!) o vive em pleno esplendor: esplendor da palavra fácil gratuita, vazia, irresponsável. Ninguém a quem estendam um microfone resiste à compulsão de acrescentar ruído ao ruído já quase ensurdecedor. Os media, parasitas insaciáveis, recolhem sem esforço, hora a hora, minuto a minuto, verdadeiras iguarias para o banquete de fim de festa com que se comemoram a si mesmos.
Agora foi de novo a sua vez…de novo porque já houve outras (talvez demasiadas) em que as suas palavras, acredito que contra-vontade, foram prato forte para isso a que impropriamente continuamos a chamar «comunicação social» mas sobretudo foram música de violino para os ouvidos daqueles que andam há 37 anos a tirar desforra de uma derrota que traz o seu nome. Ao contrário dos primeiros que descartam sem um sobressalto as suas declarações, para correr atrás da última verdade (que afinal era já penúltima e antepenúltima) sobre recessão, austeridade, deficit público, pib, agências de rating, ajuda económica, os outros, os tais jogadores da hora incerta, esses não vão largar, mais a mais agora, que as cartas lhes são mais do que nunca favoráveis.
Otelo, você deu-lhe os trunfos todos! Afirmar que «se soubesse como o país ficava, não tinha feito a revolução» é mais do que alguma vez poderiam sonhar. E não vão perder-se em exercícios de hermenêutica barata que não é essa a sua vocação, como não fizeram quando das suas incendiárias declarações sobre o «Campo Pequeno», o «Fidel de Castro da Europa» ou «os trabalhadores têm sempre razão». Estas palavras colaram-se-lhe à pele, e você tem passado estes anos a tentar esclarecer o contexto, as motivações, os sentimentos que as ditaram. Com pouco ou nenhum sucesso, diga-se a verdade. Por cada aniversário da Revolução elas lhe são atiradas à cara, intactas como cristais de puro ódio e ressentimento. Fazem já parte do jogo viciado da contra-revolução, que em vez de argumentos, usa o golpe baixo, o ataque pessoal, o descrédito dos homens para descrédito da obra. Primeira batota: confundir os homens com a obra. Porque há, todos sabemos, uma verdade que é simultaneamente um grande mistério: como todos os grandes momentos da história, o 25 de Abril foi feito por homens vulgares e cheios de defeitos. Mas que uma força maior uniu, e escolheu para artífices de desígnios que em muito os ultrapassam. Todas os defeitos se lhe podem perdoar, até porque de alguns deles a história se serviu para concretização dos seus enigmáticos planos. No seu caso, leviandade, vedetismo, inconstância, mas nunca, para glosar o prefaciador dos seus dois livros, Eduardo Lourenço, «em absoluto infiel á audácia e generosidade que um dia fez de si a chave da nossa revolução».
Ora aqui é que bate o ponto: as suas declarações tomadas à letra são a confissão de um erro ou a tardia descoberta de um embuste. Ambos trágicos e sem remédio. E isso se é devastador pessoalmente, historicamente é um gigantesco absurdo. Tomadas à letra, repito. Porque eu, e muitos outros seus amigos e admiradores fazemos-lhe a justiça de tentar perceber o contexto, as motivações, os sentimentos: o desencanto, a angústia a raiva e a impotência pelo que fizeram deste país. Mas não compreendemos, nem aceitamos, que na crise mais grave que vivemos após a Revolução, as suas palavras sejam achas para a fogueira inquisitorial em que se joga tudo o que de longe possa ainda lembrar Abril.
Estamos a dias de um novo aniversário. E já que não vai haver sessão solene (acabou-se a hipocrisia) nada melhor que uma boa polémica assim ao estilo do jogo do passa-culpas dos políticos, agora sobre o 25 de Abril (e, claro, as suas responsabilidades na crise actual). As suas palavras, Otelo, são uma óptima deixa. Mas as cartas estão viciadas. E acho que você devia «renunciar». Ou então exigir um novo baralho: limpo e sem truques.
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