26.2.22

Eduardo Galeano e a guerra

 

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Marquês de Pombal, Lisboa

 

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Quando o fascismo nos entra em casa

 


«No essencial, o fascismo de agora coincide com o do século passado: na existência de um autocrata, no poder ditatorial, no ultranacionalismo, na exaltação contínua da pátria e dos valores tradicionais, da religião à família, e numa visão desumana do uso da força, quer para manter a ordem interna e esmagar a oposição quer para criar problemas além-fronteiras. O ditador manipula a narrativa do passado do seu povo com palavras gloriosas, de modo idealizado, como se a nação tivesse uma missão histórica e civilizacional, quiçá divina. Vê-se como a personificação do nobre destino nacional. Coloca-se num pedestal acima de todos. Trata os membros do seu círculo mais imediato de modo teatral, com arrogância, cinismo e mão de ferro, para obter subserviência e bajulação. Na cena internacional só respeita as regras que lhe convêm. Procura impor o medo, mas acaba por ser tratado com desconfiança e aversão. Os seus únicos aliados estrangeiros encontram-se nas elites marionetas dos países vassalos, nos movimentos de extrema-direita, noutros que defendem modos de governação totalitária, ou, ainda, nos tolos.

Os ditadores fascistas são um perigo para as democracias bem como para a paz internacional. Na verdade, como Vladimir Putin nos lembra hoje, o fascismo leva à guerra.

Putin está à frente de uma grande nação, que ao longo da história contribuiu de maneira marcante para a civilização e a cultura europeias. Um povo heroico, que foi determinante na derrota do nazismo. Um povo que pertence, de pleno direito, à "casa europeia", a grande parceria estratégica entre a UE e a Rússia, sonhada em 2003, e que tinha como ambição construir um espaço de liberdade e de cooperação de Lisboa a Vladivostok.

Estamos agora muito longe desse sonho. O pesadelo tornado realidade da violação da soberania da Ucrânia, a sua invasão, a linguagem utilizada por Putin, as ameaças verbais contra a nossa parte da Europa e as exigências impossíveis de aceitar, colocam-nos a todos nós, europeus, perante uma confrontação muito séria. Os conflitos, uma vez iniciados, ficam geralmente fora de controlo. Sabe-se quando começam, mas não se sabe quando terminam, nem quais serão os estragos, o nível de sofrimento e as consequências. Já sem falar da política interna que Putin conduz, tem de ficar claro que a externa, em relação à Ucrânia e à vizinhança europeia do seu país, é inaceitável e criminosa. Está completamente fora das normas estabelecidas.

É altura de voltar ao quadro legal internacional, que foi sendo construído desde 1945. Nesse sentido, a declaração feita por António Guterres, sobre os acontecimentos desta semana, é altamente significativa e corajosa. Ficará, no registo do seu mandato, como um momento memorável. Guterres disse: "A decisão da Federação Russa de reconhecer a pretensa "independência" de certas áreas do Donetsk e de Lugansk é uma violação da integridade territorial e da soberania da Ucrânia." Acrescentou que a decisão contradiz os princípios da Carta das Nações Unidas, bem como a Declaração da Assembleia Geral sobre as Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados e a jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça. Voltou a repetir as mesmas palavras, de modo profundamente preocupado, uma vez consumada a invasão.

Nunca, na história da ONU, um secretário-geral havia ousado ser tão claro na condenação de uma ilegalidade em larga escala praticada por um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. U Thant, que esteve à frente da organização entre 1961 e 1971, referiu-se várias vezes aos Estados Unidos e à sua guerra injusta no Vietname, mas não foi tão longe.

Entretanto, a UE deve responder a esta imensa crise com todo o arsenal diplomático, financeiro e económico à sua disposição. E com um reforço da sua arquitetura de defesa. O objetivo é isolar, enfraquecer, punir a ditadura no poder em Moscovo e forçar o regresso à paz. À hora a que escrevo ainda não são conhecidas as medidas que serão adotadas. Devem, no entanto, deixar claro que um regime fascista e bélico na Europa é moral e politicamente inadmissível. Não passará, nem agora nem nunca mais.»

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Kiev, ontem

 

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25.2.22

Travar o negócio que suporta Putin

 


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Putin, ainda

 

«Vale a pena revisitar o discurso que Putin fez na segunda-feira e o longo artigo que escreveu em junho do ano passado, onde defendeu que “os russos e os ucranianos são um só povo”. Repetindo alguns argumentos estalinistas contra as cedências de Lenine às nacionalidades e baralhando períodos históricos, escreveu que, “sob o pretexto de combater o chamado chauvinismo da grande potência russa, a ucranização foi imposta àqueles que não se viam como ucranianos”. Para concluir que “a Rússia foi roubada”. Os crimes e as campanhas de fome do estalinismo ou a proibição de referências culturais e do ensino de ucraniano nas escolas não estão no artigo do historiador autodidata. É a narrativa histórica de Putin, que corresponde a verdades feitas na cultura popular russa, que dá forma a este expansionismo. O nacionalismo que exalta a “glória” do passado e esquece os seus crimes prepara os crimes do futuro para continuar a sua “glória”. É assim que Putin vinga a derrota russa do fim do século passado, criando um contínuo entre Ivan IV, Catarina II, Estaline e ele próprio.

Não será por adesão ideológica a Putin, mas porque o seu quadro teórico não serve para este tempo, que o PCP tem uma posição anacrónica neste conflito. Do lado de cá estão os EUA, e os comunistas querem vingar, três décadas depois, a sua derrota. Mas, na verdade, não é mais anacrónico do que ver neste conflito a reedição de um confronto entre modelos políticos. Compreende-se. Ninguém pensa com os paradigmas do futuro. (…)

De uma forma ou de outra, Putin terá de pagar por este crime ignóbil, respondendo perante o mundo, os ucranianos e os russos. Horas depois de a guerra ter começado, é impossível saber como isso acontecerá. Como reagirão os russos, os ucranianos e a comunidade internacional a este ataque.»

Daniel Oliveira
Expresso, 25.02.2022
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Daqui a um mês Portugal terá mais tempo de democracia que de ditadura

 



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A agressão russa e a "fake law"

 


«Muitos não acreditaram, quase até ao fim (neles me incluo), que a Rússia pudesse lançar um ataque em larga escala contra a Ucrânia, pela especial irracionalidade da decisão, pelas consequências dramáticas que esta decisão vai importar para aquele país, para o seu povo e para a paz internacional.

Das declarações sucessivas de Vladimir Putin resulta que, afinal, a invasão da Ucrânia não existe. Trata-se, isso sim (como aliás reafirmou o representante russo no Conselho de Segurança), de uma "ação militar especial", para enfrentar a ameaça que a Ucrânia representa para a segurança russa (!), desnazificar o regime ucraniano (!) e, finalmente, ajudar, a título de legítima defesa coletiva, as "repúblicas" populares de Donetsk e Lugansk, reconhecidas há dias.

Tínhamos as "fake news", e continuamos a tê-las; mas há que acrescentar-lhes a "fake law". É impressionante como a manipulação do Direito, como poucas vezes no passado, é realizada para promover as mais graves violações desse Direito - e, reconheça-se, o líder russo tem-se mostrado exímio nesse exercício.

Desde 2014, e apenas para me referir à Ucrânia, violentou o direito de autodeterminação dos povos (abusando-o para anexar a Crimeia), a proteção dos direitos humanos (alegando, a roçar o absurdo, genocídio contra a população russa ou russófona do leste ucraniano) e a legitimação para o uso da força (com base no pedido de "auxílio" feito pelas duas entidades secessionistas de Donetsk e Lugansk), declarando estar a agir ao abrigo da Carta das Nações Unidas.

Poderá ser contestado este diagnóstico com o facto (comprovável) de que nunca um agressor assumiu sê-lo, e não poucas vezes até se justificou das formas mais contraditórias. Mas, aqui, a própria construção da realidade junta "fake news" e "fake law". De facto, a própria sequência dos factos é irreal, e isso é indubitável: gravações feitas vários dias antes, declarações de um Chefe de Estado que é possível provar terem sido feitas antes, com absoluta premeditação, ou a gaffe de um alto responsável que, aterrorizado perante o chefe, diz defender a incorporação do Donbass na Rússia e desnuda a verdade.

O que não é "fake", muito infelizmente, é a realidade que temos perante nós. E, nessa realidade, não consigo deixar de pensar, sobretudo, nos milhões que fogem perante o agressor, na população civil que está hoje obrigada a deixar o seu lar e a iniciar um caminho que sabemos onde e como começa, mas não como poderá terminar em segurança.»

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23.2.22

23.02.1987 - 35 anos sem o Zeca

 



Já tudo foi escrito, já tudo foi recordado, nada será esquecido. Mas é sempre uma data para voltar a ouvir algumas das suas canções, entre tantas possíveis, e o extraordinário concerto, no Coliseu de Lisboa, em 1983. Quem lá esteve nunca o esquecerá. E eu estive.











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Menos uma fatia do nosso passado

 


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Para onde vai Putin?

 


«Tenho dificuldade em antever a ocupação de um território maior do que a Península Ibérica que faz fronteira com vários países da NATO e onde habitam 44 milhões de pessoas (mais de dois terços fortemente hostis). Por isso, uma das possibilidades que pus na segunda-feira foi a de Putin reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk, onde existem tropas russas desde 2014. E, “a pedido do novo poder reconhecido, entrar no território”. Algo semelhante ao que já fez com a Ossétia do Sul e a Abecásia, na Geórgia, em 2008. A guerra iminente só não é iminente porque dura há oito anos e nela já morreram mais de 13 mil pessoas e centenas de milhares foram deslocadas.

No jogo preferido deste momento, que é caçar os que vacilam, deixo esclarecido o que penso sobre o assunto para passar para coisas mais interessantes: o reconhecimento da independência das duas províncias de Donbass, parcialmente ocupadas por separatistas com apoio militar russo, não cumpre qualquer regra do direito internacional. Uso a expressão de Vladimir Putin, aquando do reconhecimento ocidental da independência do Kosovo: “ilegal e imoral.”

A entrada oficial de militares russos como “forças de paz” (a guerra é arte da hipérbole e do eufemismo, em simultâneo) é uma invasão de território ucraniano – não falo dos acordos de Minsk porque eles são letra morta, de parte a parte, desde o momento em que foram assinados. É um ato de agressão militar típico de uma potência imperialista. No caso, um regime plutocrático e nacionalista de contornos fascizantes (este vídeo é um excelente retrato da tenebrosa figura).

Só um automatismo absurdo pode levar algumas pessoas de esquerda a pôr-se ao lado do maior financiador da extrema-direita europeia. Ou isso, ou o apoio à oposição comunista que, é bom recordar, propôs à Duma o reconhecimento da independência de Donetsk e de Luhansk. Recordar outros momentos da História em que outras potências tiveram comportamentos semelhantes será apenas recordar que o imperialismo é sempre uma forma de agressão. Não desvia do aqui e agora. Não o justifica. Não reduz a sua importância. Não há imperialismos bons, uma mão não lava a outra.

Nada disto diminui a complexidade deste momento. Como Putin é um líder que gosta de deixar tudo em aberto, não é fácil decifrar as suas motivações. Se elas são ou foram pressionar o Ocidente para travar o crescimento da NATO para as suas fronteiras, este passo, ao contrário da pressão que fez até ontem, joga a seu desfavor. Pode conquistar o Donbass para a Rússia mas afasta ainda mais a Ucrânia de uma posição neutral. E dá força ao nacionalismo ucraniano, aprofundando cada vez mais a clivagem com a Rússia. A “finlandização” da Ucrânia ficou ainda mais difícil.

Por outro lado, este gesto acaba por ser favorável aos Estados Unidos, únicos que estão a ganhar alguma coisa com isto. A suspensão da construção do NorthStream2, se fosse consequente (não punha todas as fichas nisso), não seria apenas um problema para a Europa, que precisa do gás russo. Seria um problema para a Rússia, que precisa de clientes – a China não chega. Para os EUA, a maior interdependência entre a Rússia e a Alemanha era indesejada, porque lhe retira importância estratégica. Mas, acima de tudo, Putin pôs a Europa, sem braço militar, mais dependente da NATO e dos EUA, que hoje só têm isso para lhe oferecer. Não se vislumbra o que a Rússia terá conseguido com isto, para além de ganhos internos que podem ser de curto prazo.

Podemos, claro, acompanhar Boris Johnson e concluir que Putin está a funcionar num “quadro mental de irracionalidade”. Afinal de contas, estamos perante um especialista. Só que não é esse o histórico de Putin. Ele sabe que uma guerra total na Ucrânia em cenário de duras sanções pode ter para o seu regime um efeito semelhante ao que a guerra do Afeganistão teve para o poder soviético, mas em pior. Também sabe que a ocupação da Ucrânia é uma impossibilidade prática.

Há quem vá mais longe e acredite que Putin quer mesmo restaurar o império soviético. É verdade que a sustentação ideológica do regime de Putin é, sempre foi, a “Grande Rússia”, revendo o desmantelamento imposto no fim de uma “guerra fria” sem armistício. Escreveu-o com todas as letras, a propósito da Ucrânia, num longo artigo com o sintomático título “Sobre a unidade histórica dos russos e ucranianos”, em que se dizia que a Ucrânia moderna ocupa terras russas, que se trata de “um só povo” e que “a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia”. Reiterou-o no seu discurso de segunda-feira. Mas é sempre importante distinguir a ideologia para consumo interno da prática. Putin é um nacionalista violento, mas um realista e um calculista. Gosta de manter todas as portas abertas e nunca entrar em becos sem saída.

Até ver, no jogo do gato e do rato, a única mudança relevante foi o reconhecimento da independência de Donetsk e de Luhansk. Mesmo o envio de militares, que até agora não aconteceu em larga escala (é provável que venha a acontecer), é fazer às claras o que a Rússia já fazia sem o reconhecer. Faz toda a diferença saber se Putin vai para lá das fronteiras reais entre o território controlado pelos separatistas russos e a Ucrânia ou se tenta ocupar toda a região que agora reconheceu como independente. Isso determinará um ponto mais ou menos perigoso.

Dizer isto não é dizer que as coisas não vão descambar. É dizer que se as coisas descambarem a Rússia é, depois da Ucrânia, quem tem mais a perder. Putin sabe-o. Por isso, mais importante do que descortinar o que ele quer, é perceber até onde está disposto a ir para o conseguir.

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22.2.22

Helena Matos cada vez mais refinada

 

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Boa tarde, boa capicua!

 


E esta até é um Ambigrama: também pode ser lida de pernas para o ar.

𝐒𝐞𝐦𝐩𝐫𝐞 𝐭𝐢𝐯𝐞 𝐚 𝐦𝐚𝐧𝐢𝐚 𝐝𝐚𝐬 𝐜𝐚𝐩𝐢𝐜𝐮𝐚𝐬, 𝐚𝐨 𝐩𝐨𝐧𝐭𝐨 𝐝𝐞 𝐢𝐬𝐬𝐨 𝐭𝐞𝐫 𝐜𝐨𝐧𝐝𝐢𝐜𝐢𝐨𝐧𝐚𝐝𝐨 𝐚 𝐞𝐬𝐜𝐨𝐥𝐡𝐚 𝐝𝐨 𝐧𝐨𝐦𝐞 𝐝𝐨 𝐦𝐞𝐮 𝐟𝐢𝐥𝐡𝐨. 𝐂𝐨𝐦𝐨 𝐨𝐬 𝐚𝐩𝐞𝐥𝐢𝐝𝐨𝐬 𝐬𝐞𝐫𝐢𝐚𝐦 𝐋𝐋𝐑, 𝐨 𝐧𝐨𝐦𝐞 𝐩𝐫ó𝐩𝐫𝐢𝐨 𝐭𝐞𝐫𝐢𝐚 𝐝𝐞 𝐜𝐨𝐦𝐞ç𝐚𝐫 𝐨𝐛𝐫𝐢𝐠𝐚𝐭𝐨𝐫𝐢𝐚𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐩𝐨𝐫 𝐑. 𝐅𝐨𝐫𝐚𝐦 𝐥𝐨𝐧𝐠𝐚𝐬 𝐚𝐬 𝐝𝐢𝐬𝐜𝐮𝐬𝐬õ𝐞𝐬, 𝐦𝐚𝐬 𝐥á 𝐬𝐞 𝐜𝐨𝐧𝐬𝐞𝐠𝐮𝐢𝐮 𝐮𝐦 𝐚𝐜𝐨𝐫𝐝𝐨. 𝐄 𝐞𝐥𝐞 é 𝐑𝐋𝐋𝐑, 𝐞𝐯𝐢𝐝𝐞𝐧𝐭𝐞𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞.~
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E quando cair a máscara...

 


«Nos últimos dois anos, a máscara não nos tapou apenas a boca e o nariz. De alguma forma, serviu como um escudo protetor da infeção, mas, também, como símbolo de outros escudos e defesas que criamos. Foi como se, além da boca e do nariz, tivéssemos estendido a máscara aos olhos e, até, ao pensamento. Uma espécie de filtro, que nos "protegia" de tudo à volta. Durante dois anos, comportámo-nos como as sociedades de um país em guerra - vivemos o dia-a-dia, com adaptações constantes a regras, novidades, mutações, restrições e confinamentos. A pandemia foi o tema, sempre o tema, com toda uma sociedade a girar em torno dela. Nada do que fizemos, dissemos ou até pensámos, não foi condicionado pela covid-19.

Quando, daqui a umas semanas, tirarmos a máscara, não é apenas o nariz e a boca que vamos destapar. De alguma maneira, abriremos também os olhos para tudo o que se passa à nossa volta, e voltaremos a ter a liberdade de pensar sobre o nosso dia-a-dia sem um filtro involuntário no pensamento. À realidade da pandemia vamos somar as outras realidades que fazem parte do quotidiano - a política, com uma posse de governo adiada e um orçamento atirado para junho; a social, com um país desigual, injusto, desequilibrado e pobre; a económica, com um rasto de destruição de pequenas e médias empresas, inflação a subir, juros a subir, preços a subir e o salário quase na mesma; e uma outra, se quisermos, emocional: será que voltam os abraços, os beijos, os afetos sociais ou, pelo contrário, durante muito tempo vamos continuar a ter receio de dar um abraço fraterno, um aperto de mão caloroso ou um beijo?

O que vamos encontrar quando tirarmos a máscara, da cara e do pensamento, é um país que mudou, hábitos que se perderam, outros que se ganharam. Uma mudança social que merece e precisa de reflexão. Como o fenómeno do teletrabalho, muito útil para uns, mas penoso para milhares de outros que não conseguem trabalhar isolados, confundindo o espaço de trabalho e o da intimidade, transformando a mesa de refeições em secretária e a casa em escritório.

Esbatemos as fronteiras entre o refúgio que deve ser a casa e a exposição desse espaço a reuniões via digital. Deixámos de receber e visitar amigos e família, pedimos mais comida para entregar em casa, saímos menos. Conheço algumas pessoas que, hoje, já não sabem estar "em sociedade". Faz-lhes confusão o ruído, estar com muita gente, ouvir falar alto ou suportar música que não seja regulada por si. Ficámos mais fechados, mais egoístas, mais isolados e menos sociáveis. Desabituámo-nos de algumas rotinas familiares que faziam parte só porque sim, e estamos hoje mais longe uns dos outros. A vantagem da tecnologia, de nos pôr em contacto uns com os outros, fez que, ao mesmo tempo, ficássemos também mais dependentes dela para tudo e mais um par de botas. E, hoje, a impaciência pela espera de um site que não abre ou de um mail que não chega tornou-se ainda mais exacerbada.

Acabados de sair de eleições - já parece que foi há uma eternidade e ainda não passou um mês -, adormecidos por uma maioria absoluta que governará como entender com o mandato passado pela legitimidade das urnas, com dinheiro da bazuca a rodos e com pressa para ser gasto, com um presidente que continuará igual a si mesmo, os desafios são imensos e convém não nos deixarmos embalar.

Recuperar a economia, transformar Portugal num país moderno - na administração pública e no Estado -, rever o SNS e a forma como está organizado e é gerido, perceber que é preciso inverter as alterações climáticas, apostar no conhecimento, na ciência e na tecnologia, permitir que surjam mais e melhores empresas, subir os salários, descer os impostos, não desperdiçar recursos, combater a corrupção, ter uma justiça justa, porque rápida e em tempo útil, tratar da saúde mental, recuperar listas de espera, criar condições para que, todos, vivamos melhor e mais tempo, perceber que país queremos ser e qual o caminho a seguir.

Há tanto para fazer quando tirarmos a máscara.

Seremos capazes? Ou vai ser mais uma década perdida?»

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21.2.22

Assim não Vale!

 


Estão a roubar-nos património histórico.
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Concurso para a contratação de assessores parlamentares?

 

«Tanto a Iniciativa Liberal como o Livre decidiram abrir concurso para a contratação de assessores parlamentares. A ideia comporta um problema que já foi apontado por várias pessoas: trata-se de um cargo de confiança/afinidade política, de modo que não se presta à realização de concursos baseados em critérios de selecção de natureza meritocrática. Certamente que o Livre não contratará para assessor parlamentar um militante do Chega, mesmo que esta pessoa seja a que reúne melhor cv técnico-profissional entre todas as que se apresentarem a concurso. O combate aos "jobs for the boys" deve ser dirigido, por exemplo, às contratações feitas pelo Estado para a administração pública - e não, de forma demagógica, às assessorias parlamentares.

De resto, se tanto a Iniciativa Liberal como o Livre dispensam a natureza política das assessorias a que têm direito, e antes entendem estas assessorias como algo de natureza essencialmente técnico-administrativa, então a solução deve ser esta: solicitarem esse apoio aos serviços do parlamento, em cujos quadros há gente com valor e competência profissional. Aliás, a única razão por que faz sentido que um assessor parlamentar possa ser despedido ao fim de quatro anos é o facto de a função desse assessor ter uma natureza política, sendo que a política em democracias representativas se subordina ao tempo dos ciclos eleitorais. Só por isso se admite que as regras do direito laboral que visam impedir situações de precariedade abusiva tenham aqui a sua excepção.»

Zé Neves no Facebook
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Há coisas que não vêm nos livros

 


«O anti-intelectualismo que tem grassado nos últimos anos é muito perigoso. Tem sido conduzido sobretudo por forças populistas e/ou da extrema-direita, com expressão na forma como a cultura, a ciência ou a educação vão sendo cada vez mais negligenciadas. É essencial a aposta no saber, no conhecimento, na formação do sentido crítico dos cidadãos. E aí, os livros, as artes, as escolas são decisivos.

Mas ter espírito crítico implica também perceber que os livros não são tudo. Mais: ler não pode ser sinónimo de desconsiderar as tradições orais, ou desprezar as formas culturais populares, informais, não institucionalizadas, que são tantas vezes decisivas numa melhor percepção do que nos rodeia. Esta semana ficou a saber-se através de um inquérito às práticas de consumo cultural dos portugueses (que contém vazios e conclusões que merecem complexificação) que 61% não leram nenhum livro em 2020. Um número que merece reflexão aprofundada.

Mas o que também merece questionamento é o comportamento de todos aqueles (das redes sociais, a órgãos de comunicação) que de imediato se digladiaram a ver quem é que lê mais, arvorando-se em portadores de grandes valores, como se ler fosse um distintivo civilizacional para usar ufanamente na lapela, desdenhando com arrogância de todos os outros.

Nem oito, nem 80. A leitura pode ser uma aventura sem fim, mas também não ser grande coisa. Ler, interpretar, ter uma atitude reflexiva e a humildade de querer conhecer mais nem sempre convergem. Temos muita informação, mas parece que cada vez sabemos menos, e acumulamos conhecimento técnico, como valor de uso competitivo no mercado, mas raramente o sabemos converter num tipo de saber que dialogue com a vida no sentido amplo. E é isso que tantas vezes faz falta.

Há pessoas iletradas com quem se aprende mais do que com qualquer livro. No meu caso, foi importante o tio Custódio, já falecido, pastor de ovelhas e de vacas. Com ele, em miúdo, aprendi qualquer coisa que nenhuma educação nos predispõe, através da sua forma desprendida de se procurar a si e aos outros. Qualquer coisa que está lá sem motivo aparente. Uma realidade que é, apenas: a permanência, o estar, o dar, o partilhar ou a mera contemplação do horizonte, que acaba por ser quase sempre uma forma de nos escutarmos a nós, ou para lá do limite de nós, o que ainda acaba por conter os contornos do que somos. Sentávamo-nos no cume de um monte. A planura a perder de vista. A cadela a arfar. E ele sacava do pão e partilhava-o, enquanto nos entretínhamos a analisar cores, deslocações, silhuetas, o movimento migratório das aves, luz e sombra. Parecia existir nele, naqueles momentos, uma sinergia entre perspectiva, pensar, trocas de experiências e saber.

Não parecia haver uma utilidade imediata, mas pensar para ele não era abstrair e não fazer. Era cogitar em conjunto para criar práticas que dialogassem com a vida com o propósito de cuidarmos melhor uns dos outros. Tão simples quanto isso. Se fosse hoje, à retórica do pragmatismo e da tecnicidade, ele oporia o gosto de compreender. Poder-se-á pensar que, tantos anos depois, me é fácil idealizar e poetizar a situação. Não creio. Hoje, aos olhos de muitos, o meu tio Custódio seria alguém sem grandes horizontes. Não conheceu muitos no sentido prático, é verdade. Não era viajado. Mas ter mundo não é ter milhas acumuladas, ter vivido longe, saber línguas, consumir à fartazana, conhecer as pessoas certas ou gozar com quem achamos que não tem mundo. Ter mundo, entendi com ele, é conseguir pôr-se no lugar de um outro. A partir daí, começa a possibilidade de entendimento do mundo. E isso não o aprendeu em nenhum livro.»

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20.2.22

Marcelo - Agora, sim, estamos a voltar à normalidade!

 

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Caros emigrantes, precisamos de falar

 


Formular um pedido de desculpas perfeito não é fácil. Primeiro, porque é necessário admitir o erro, admitir a culpa. Segundo, porque é preciso expressar o arrependimento com sinceridade. Terceiro, porque é essencial explicar o que aconteceu de errado. Por fim, fazê-lo olhos nos olhos, o que, neste caso, é praticamente impossível. Só com estas condições um pedido de desculpas não soará a falso, segundo conclui um estudo da Universidade de Ohio.

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José Medeiros Ferreira chegaria hoje aos 80

 


Era tão bom que ainda o tivéssemos por cá!

Deixo aqui um texto que escreveu no seu blogue em 2011. Repito: em 2011:
«Ao PCP, ao BE, a muitos socialistas, sindicalistas, independentes e à esquerda órfã, a que continua não representada, não basta continuar a gritar que vem lá o Lobo. Devem juntar-se e, a partir das propostas já avançadas e outras que surjam, criar plataformas de compromisso. Essa base, articulada com a contestação a nível europeu, pode até apresentar ao PS um conjunto de condições mínimas para uma maioria de esquerda parlamentar. O actual PS nunca a aceitará? Provável. Mas nada dura sempre, o Largo do Rato não poderia continuar a vitimizar-se, o ónus da recusa seria seu e a semente ficaria lançada.»
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Falta-nos futuro

 


«Não há propriamente surpresa nos números, mas o primeiro retrato em larga escala das práticas culturais dos portugueses permite-nos uma análise profunda aos consumos e às clivagens por idade, escolaridade ou nível de rendimentos económicos.

Promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, o estudo mostra que o cinema é o meio que cativa mais público, seguido de festivais e festas locais. Dança ou teatro atraem poucos jovens, e a falta de valorização do livro é transversal: nos 12 meses anteriores ao inquérito, 61% dos portugueses não leram um único livro. Entre os restantes que o fizeram, a maioria leu muito pouco.

Claro que há inúmeros fatores, desde o contexto familiar às condicionantes financeiras, que ajudam a explicar estes números. Mas é inevitável, tanto como trabalhar nas causas e nas ações para a mudança, refletir sobre as consequências. A falta de leitura e de imersão cultural tem implicações no pensamento crítico e na capacidade de intervenção. No limite, na forma como concebemos o mundo e o nosso papel nele, na ação cívica e política.

Lemos e escrevemos em pinceladas, nas redes sociais. E esse imediatismo influencia a forma como estruturamos quase tudo, incluindo o sistema político. Faz falta interromper o ciclo imediato das redes e pensar a longo prazo. Os partidos e os titulares de cargos públicos não gostam de futuro, porque vivem do presente, dos efeitos das suas opções na popularidade e das decisões imediatas dos eleitores. Cabe à sociedade civil, nas suas mil e uma configurações, suscitar e exigir a visão de longo prazo.

É fácil a tentação de nos prendermos à alegada paralisia de um país em duodécimos até junho, com um governo adiado. Quando esse percalço, afinal breve, conta muito pouco para o país. Aliás, o atual Governo está pouco limitado na sua ação até à tomada de posse da Assembleia da República e os dados económicos mostram que a crise política não é, só por si, um risco. Este é o tempo de pensar em profundidade nos caminhos que deve seguir um governo com a estabilidade que tanto pediu. Um governo que nos dê o futuro que tem faltado.»

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