«No essencial, o fascismo de agora coincide com o do século passado: na existência de um autocrata, no poder ditatorial, no ultranacionalismo, na exaltação contínua da pátria e dos valores tradicionais, da religião à família, e numa visão desumana do uso da força, quer para manter a ordem interna e esmagar a oposição quer para criar problemas além-fronteiras. O ditador manipula a narrativa do passado do seu povo com palavras gloriosas, de modo idealizado, como se a nação tivesse uma missão histórica e civilizacional, quiçá divina. Vê-se como a personificação do nobre destino nacional. Coloca-se num pedestal acima de todos. Trata os membros do seu círculo mais imediato de modo teatral, com arrogância, cinismo e mão de ferro, para obter subserviência e bajulação. Na cena internacional só respeita as regras que lhe convêm. Procura impor o medo, mas acaba por ser tratado com desconfiança e aversão. Os seus únicos aliados estrangeiros encontram-se nas elites marionetas dos países vassalos, nos movimentos de extrema-direita, noutros que defendem modos de governação totalitária, ou, ainda, nos tolos.
Os ditadores fascistas são um perigo para as democracias bem como para a paz internacional. Na verdade, como Vladimir Putin nos lembra hoje, o fascismo leva à guerra.
Putin está à frente de uma grande nação, que ao longo da história contribuiu de maneira marcante para a civilização e a cultura europeias. Um povo heroico, que foi determinante na derrota do nazismo. Um povo que pertence, de pleno direito, à "casa europeia", a grande parceria estratégica entre a UE e a Rússia, sonhada em 2003, e que tinha como ambição construir um espaço de liberdade e de cooperação de Lisboa a Vladivostok.
Estamos agora muito longe desse sonho. O pesadelo tornado realidade da violação da soberania da Ucrânia, a sua invasão, a linguagem utilizada por Putin, as ameaças verbais contra a nossa parte da Europa e as exigências impossíveis de aceitar, colocam-nos a todos nós, europeus, perante uma confrontação muito séria. Os conflitos, uma vez iniciados, ficam geralmente fora de controlo. Sabe-se quando começam, mas não se sabe quando terminam, nem quais serão os estragos, o nível de sofrimento e as consequências. Já sem falar da política interna que Putin conduz, tem de ficar claro que a externa, em relação à Ucrânia e à vizinhança europeia do seu país, é inaceitável e criminosa. Está completamente fora das normas estabelecidas.
É altura de voltar ao quadro legal internacional, que foi sendo construído desde 1945. Nesse sentido, a declaração feita por António Guterres, sobre os acontecimentos desta semana, é altamente significativa e corajosa. Ficará, no registo do seu mandato, como um momento memorável. Guterres disse: "A decisão da Federação Russa de reconhecer a pretensa "independência" de certas áreas do Donetsk e de Lugansk é uma violação da integridade territorial e da soberania da Ucrânia." Acrescentou que a decisão contradiz os princípios da Carta das Nações Unidas, bem como a Declaração da Assembleia Geral sobre as Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados e a jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça. Voltou a repetir as mesmas palavras, de modo profundamente preocupado, uma vez consumada a invasão.
Nunca, na história da ONU, um secretário-geral havia ousado ser tão claro na condenação de uma ilegalidade em larga escala praticada por um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. U Thant, que esteve à frente da organização entre 1961 e 1971, referiu-se várias vezes aos Estados Unidos e à sua guerra injusta no Vietname, mas não foi tão longe.
Entretanto, a UE deve responder a esta imensa crise com todo o arsenal diplomático, financeiro e económico à sua disposição. E com um reforço da sua arquitetura de defesa. O objetivo é isolar, enfraquecer, punir a ditadura no poder em Moscovo e forçar o regresso à paz. À hora a que escrevo ainda não são conhecidas as medidas que serão adotadas. Devem, no entanto, deixar claro que um regime fascista e bélico na Europa é moral e politicamente inadmissível. Não passará, nem agora nem nunca mais.»
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