Não era minha intenção voltar aos textos do último
Avante!, mas um
mail de um amigo, recebido às 2:25 desta madrugada, levou-me a fazê-lo porque acabou por substituir algumas horas de sono por outras tantas de reflexão.
Ex-comunista mais do que convicto, ficou «irritado» com o que aqui escrevi nos últimos dias, não por eu ter atacado o partido mas por tê-lo feito com «flores» em vez de «tijolos», ao mostrar-me surpreendida mas não suficientemente indignada. Identifica como provável motivo o facto de eu nunca ter estado «lá dentro» e tem razão, pelo menos parcialmente.
De facto: nunca pertenci ao PCP nem a qualquer outro partido marxista-leninista, o meu primeiro contacto com o marxismo foi nos bancos da faculdade (na Bélgica, evidentemente…) e ele só me atingiu vitalmente já bem digerido pelas experiências da América Latina. Mas mais tarde aproximou-se: fui casada durante quase trinta anos com um ex-funcionário clandestino, ex-preso que depois de uma interrupção de alguns anos voltou a «alistar-se» e, se alguém um dia encontrar rastos da minha conta bancária nos arquivos, confirmo que era dela que saía o pagamento das quotas. Li muito e eu e as paredes desta casa assistimos a centenas (milhares?) de horas de discussões teóricas e práticas, sei quinhentas histórias da vida interna do partido, conheci pessoalmente alguns dos seus míticos dirigentes históricos e, como tantos outros, nunca esquecerei o olhar do Pires Jorge.
Tudo isto contribuiu para que haja em mim um distanciamento que nunca perdi, simultaneamente com uma incapacidade de «ódio». Os meus «amanhãs que cantam» nunca passaram por Outubro, Bíblia para mim só houve a do Saramago, nunca a substituí por outra e há décadas que vivo bem assim. Acredito utopicamente que o capitalismo em que vivemos não é certamente o fim da história e que algo de muito melhor acontecerá um dia, mas que isso resultará positivamente de todo o progresso da humanidade e não privilegiadamente do que se pensou e passou, algures a Leste, num afinal curtíssimo período da História.
Por tudo isto, quando leio no Editorial do
Avante! de ontem que alguns continuam «…a assumir inequivocamente que as raízes essenciais do projecto de sociedade pelo qual lutam em Portugal se situam nos valores, nos princípios e nos
êxitos da Revolução de Outubro» ou «que o futuro da humanidade está (…) nesse socialismo que a Revolução de Outubro
nos mostrou ser possível» (os realces são meus), encolho os ombros porque me parecem pouco mais do que
boutades, como algumas frases anarquistas ou certos slogans do PREC.
Isto nada retira ao reconhecimento da importância que os comunistas tiveram no mundo e em Portugal, nem ao mérito dos que ainda acreditam que por ele devem continuar a lutar. Mas pouco tenho a ver com tudo isso, a não ser no plano do diálogo com alguns, que julgo conseguir manter pelo menos até certo grau. Pelas mesmas razões, se me irrito quando vejo defesas do indefensável, não tenho motivação suficiente para guerras violentas – e assim regresso ao motivo deste texto –, também porque, sinceramente, não creio que a Quinta da Atalaia venha alguma vez a ser transformada num enorme e «aggiornado» Gulag.