No fim dos anos 50, de comboio a caminho de França, atravessei pela primeira vez Espanha. Nunca esquecerei a miséria de Castela, muito maior do que aquela que eu conhecia então em Portugal, com «aldeias» feitas de buracos nas encostas de pedra. O único centro de algum divertimento era a estação de caminhos-de-ferro, onde adultos e multidões de crianças, quase todos descalços, acenavam e estendiam as mãos para as nossas janelas.
Vem tudo isto a propósito de um belíssimo texto publicado hoje nos Caminhos da Memória. Leiam-no e, já agora, sorriam quando ouvirem elogios a um senhor de Boliqueime que subiu a «pulso» - ele é praticamente da mesma idade que o João Tunes.
7 comments:
Comovido estou com a simpatia, mas:
1) Vamos com calma: "Ele", Cavaco, é, de facto e na prática, cinco anos (!) mais velho que eu...
2) Nas décadas de 40 e 50 não era necessário ir-se a Espanha para se ver miséria e da dura (embora lá o tempo da guerra e da pós-guerra tenha sido pior que aqui). O que acontecia com os citadinos era que pouco se praticava o turismo interno, a menos que se tivessem familiares chegados na província, e assim a realidade rural, a da miséria salazarista nos campos, era mal conhecida (e inconveniente) e não integrada nas culturas urbanas. Mas em Trás-os-Montes e nas Beiras, havia muita fome, falta de higiene (era normal as crianças andarem com parasitas e de ranho pendurado ou ressequido, péssimo vestir e muita gente descalça. Neste último aspecto, é curioso que os homens adultos se calçavam (botas grossas ou tamancos), por imperativos dos trabalhos agrícolas que requeriam protecção para os pés mas também por emblema social, enquanto a população descalça era sobretudo constituída por mulheres e crianças. A situação mudou muito na década de 60 com a emigração e as suas remessas.
João Tunes
Quanto ao que dizes:
1 - O meu pedido de desculpas: não fui ver a idade de Cavaco! Mas óptimo, é claro, por teres menos cinco anos.
2 - Quando escrevi o texto, corrigi para [a miséria] «que EU conhecia então»: o meu «mundo português» reduzia-se a Lourenço Marques primeiro e Lisboa depois. Sabia-se muito pouco do que se passava e que descreves no teu comentário, até quando isso acontecia nos arredores de Lisboa -não esquecer a surpresa de quem foi socorrer as vítimas das cheias em 1967.
Tempos em que as ninhadas de 4, 5 ou mais irmãos, sobreviviam pouco mais de metade. (mas a culpa não era de a, b ou f, como diziam os nossos velhos analfabetos).
Ainda cá anda uma pequena percentagem de sobreviventes desses tempos. Lembrando os pés descalços e a bomba "antónia".
É bom lembrar e ler quem lembra!
Pelos fins da década de 50 e inícios da de 60 eu ia de carro ao Porto. De quando em quando. E lembra-me de ver, na estrada, magotes de crianças que vinham ou iam para a escola. E, entre elas, muito poucas tinham sapatos. Por vezes, uma ou duas.
Miséria, atraso... inquestionável. Mas eu, que tenho um cunhado minhoto que andava descalço e, mais ainda, tendo próximo a minha mulher que, "do campo" e de família pobre, também andou descalça, adivinho como que um quadro complementar. Alguma coisa própria da nossa ruralidade, o caciquismo, os influentes, os senhores, por um lado, e, por outro, todos os que sobravam. A projecção de tal relação na hierarquia entre os miúdos, com ou sem sapatos, não seria proporcional. Parece-me que nem chegava a prejudicar amizades. O convívio seria distorcido, mas alguns dos calçados sentiam o incómodo da diferença que os elevava. Outros não, claro. E os jogos, as correrias, as lutas em que ganhariam vantagem os descalços... superiorizando-os, seriam uma compensação. Enfim, andar descalço não era apenas o não haver dinheiro para comprar uns sapatos de uso diário.
Seria mais e os sapatos até se poderiam inscrever nos quadros de vizinhança e de família que então existiam. O sapato, no campo, é um objecto cultural.
O João Tunes poderá dizer se a minha percepção está mais ou menos próxima. De resto, já lembrou sobre a nossa ruralidade coisas bem interessanrtes e muito esquecidas. Ele saberá, eu não. Eu, que sou lisboeta e sempre andei calçado – embora tivesse de aguentar sapatos apertadíssimos, uma vez que os sapatos duravam mais do que o tamanho inicial dos pés, para que serviam, na altura da compra – eu não posso falar seriamente dos calçados e descalços daquele tempo. Nem sequer sobre os de Lisboa, que já não estavam num quadro rural. Que não eram poucos, e que eu julgarei ainda mais miseráveis, porque não estariam naquele caldo cultural da nossa ruralidade.
Meu caro Sousa, julgo que há no seu texto, entre muita coisa certa, uma certa romantização da penúria. Não há mal nisso embora eu não seja adepto da via do socialismo tolstoiano de matriz camponesa que pode levar à exaltação telúrica da "lavoura" que eu acho que, hoje e politicamente, está muito bem entregue a quem dela se apoderou. Muita coisa que se passou há cinco ou seis décadas é hoje inacreditável, o que gera um problema de comunicação sobre o passado para com os mais jovens, nomeadamente quanto aos padrões e acessos ao consumo. O vestir e o calçar é um bom exemplo disso. Hoje, um par de sapatos adquire-se por preços módicos. Mas há umas décadas atrás, vestir e calçar era um problema para alguns e uma quase impossibilidade para muitos (eram frequentes as doações de roupa e calçado usados aos membros da família com menos possses, hoje quem faz isso?). Quem hoje remenda e passaja roupa e mete várias meias solas? E, entre os mais pobres, era normal usarem-se remendos nas roupas e meterem-se solas de pneu usado no calçado para este durar mais. E, nos campos, havia um problema: parte do pagamento escasso das jornas e dos salários dos caseiros era em géneros e parte importante do intercâmbio de bens faziam-se por trocas directas de bens agrícolas. O dinheiro circulava muito pouco, era hiper escasso. Daí que inclusive as famílias que não passavam fome tinham dificuldades, por falta de disponibilidade monetária, em adquirir bens que, nas feiras, eram trocados por dinheiro. Normalmente, o acesso a dinheiro era feito através da venda de um ou dois animais feita uma vez por ano e essa massa monetária (pequena) tinha de durar até às vendas do ano seguinte. Finalmente, o facto de haver muitos descalços (sobretudo descalças e crianças) prendia-se com uma hierarquia do vestir segundo padrões sociais e de pudor. Não era alternativa considerada andar-se nu (sem calças ou sem vestido) e com uns sapatos enfiados. Por pudor, não chegando para tudo, falhava-se onde? No calçado e na roupa interior (era frequente as mulheres, os homens e as crianças não usarem cuecas ou sucedâneos).
João Tunes
Um aparte (talvez despropositado): quando leio os textos do João Tunes mergulhando numa infância pobre e num meio social cheio de restrições económicas, sem querer vem-me ao pensamento outra pessoa com um percurso idêntico que, embora tendo sido meu colega em Santa Maria, só o conheci (e de que me tornei amigo) de há um ano para cá. Trata-se do escritor açoreano (micaelense/mariense) Daniel de Sá, pouco conhecido no Continente, mas bastante no Brasil e nos Estados Unidos. Os seus livros e alguns dos seus escritos no blogue "O Espólio" traduzem muito daquilo que o João Tunes tão bem nos faz chegar.
Bem hajam por nos falarem sem lamechas de um passado recente, de dificuldades, que as novas gerações desconhecem (feliz ou infelizmente: eu ainda não me consegui habituar a ver o imenso parque automóvel que enche estacionamentos autorizados e não autorizados das nossas escolas superiores; quando fui estudante, os estudantes universitários usavam em grande maiotia os transportes públicos ou andavam a pé; quantas vezes eu regressei a pé do Técnico para os Olivais Sul, para aproveitar os trocos para poder ir estudar para um café...).
Meu caro João Tunes, eu julgo que não romantizo a penúria. Tão pouco a “telúrica” terra e a lavoura dos seus agricultores. Gostei que lembrasse as formas de pagamento de então e dos exíguos gastos despendidos por quem tão pouco auferia. Com essa tão pouca coisa, como fazer e encontrar o mercado?
Essa penúria, que coexistia com as formas de autarcia do Norte, desapareceu. E muito mais desapareceu. Hábitos, costumes e valores. Modos de vida e de sentir. Enfim, a nossa ruralidade. No Norte e até muito mais para o Sul. Se eu quisesse dizer isso em fórmula colorida, diria que “essa ruralidade foi enterrada com as botas de Salazar” ou “que acompanhou Salazar dentro do seu caixão”.
Nos meus tempos de política activa, anteriores ao 25 de Abril, alguém pró chefe, a quem eu dizia que nada sabia sobre o que pensava do campesinato, respondeu-me que sim, que sabia e lembrou-me uma boca do género. “Ah! O campesinato, será preciso fazê-lo voltar de comboio”. Uma enorme simplificação, claro, da sua parte, mas, da minha, já uma certa ideia da nossa ruralidade de então.
Na altura e nos nossos campos, tenho como certo, e lembra-o bem o João Tunes, que uma nota, uma moeda eram um bem mais escasso do que um molho de couves. Lembra uma hierarquia do vestir, questão interessante. Eu era capaz de pensar nessa questão mais pela negativa: um lojista, um proprietário... não podia ter filhos que andassem descalços. Uma outra questão, a do pudor, essa, francamente, não me passaria pela cabeça. Remendos vários, fundilhos, roupa muito passajada, passagem da roupa de pais para filhos, tudo isso, e muito mais, havia também em Lisboa. E julgo terem passado, aqui, mas ou menos, à História. Mas haver aí um código do pudor... não me ocorreria.
Contudo, eu não sei se ainda há adelos, quando há 50 anos os havia, em fiadas, por todos os lados, nas feiras e em certas ruas de Lisboa. Não sei se deixou de ser regra vender os fatos velhos. E, no campo, também não sei se ainda se conserva o porco na arca, enquanto que, naquela época, só por falta do porco é que não o guardavam dessa forma. Etc...
Conto uma pequena história, quanto a essa dificuldade de comunicação entre quem foi dos tempos velhos e aqueles que são só os deste. A que o João Tunes se refere. Há um jovem, hoje com pouco mais de 30 anos, a que eu chamo o “meu toxidependente”. Um que foi, durante muito tempo, um drogado sem controlo e sem abrigo. E que andará hoje com metadonas, com RMIs., etc. Aparece-me em casa de quando em quando. Um dia destes encontrei-o, por acaso, na rua e, olhando para ele e parecendo-me que não andava bem, disse-lhe “como é que é isso... tu andas com mau aspecto”. E tive como resposta: “eu!, tenho uns jeans assim, uns ténis assado...”, etc.
Dou aqui um saltinho e evito assim o que realmente possa interrogar e admitir quanto ao nosso futuro. Para mim, completamente em aberto... com exclusão duma sociedade com enxadas nas mãos e muitas leiras para trabalhar.
O socialismo de Tolstoi considero-o mais como um produto “du terroir”. Religiosidade extrema, o problema da terra, gasto de tanto existir, a classe dos burocratas, a atribulado libertação dos servos, as tradições do mir, e aquele produto tolstoiano, por fim. E tudo isso mais aquele Stolypine, “o gravata”, que lá tentou fazer as suas reformas.
Curiosamente, esse “socialismo” tinha qualidades para ser exportado, mas não chegou a minha casa, anunciando já , contudo, o que viria a acontecer uns poucos decénios mais tarde. Que, isso sim, diferentemente, bateu-me à porta e entrou.
Um abraço
Desculpa, Joana, por tão extenso paleio. Acredita que lhe cortei uns bons pedaços.
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