13.6.25

Não viveremos no medo que nos querem impor

 


«O dia 10 de junho não foi apenas o dia de Portugal. Não foi apenas o dia em que saboreámos as palavras desassombradas de Lídia Jorge e o alerta claro do Presidente da República. Foi também o dia em que um dos autores deste texto foi barbaramente agredido por um neonazi. Foi o dia em que o nosso concidadão David Munir foi insultado por ser líder da comunidade islâmica. Foi o dia em que um grupo impune da extrema-direita marchou afirmando o seu “orgulho heterossexual” que mais não é do que o orgulho em odiar os outros. Foi o dia em que Lídia Jorge foi chamada de todos os nomes nojentos nas redes sociais. Foi o dia em que a violência no desporto voltou a fazer notícia. Foi o dia em que o outro autor deste texto denunciou a influência da extrema-direita nos valores dos mais novos e foi insultado por o fazer. Foi o dia em que o líder do Chega se mostrou indignado porque a primeira figura do Estado afirmou a dignidade de todos os cidadãos. Foi o dia em que, nas redes sociais, várias figuras do mesmo partido e os seus seguidores celebraram não o dia de Portugal, mas sim o dia “da raça”, pondo a nu a sua profunda ignorância e o seu saudosismo salazarista.

O dia 10 de junho foi um dia de tomada de consciência de uma vertigem assustadora. Foi o dia em que nos lembramos que Alcindo Monteiro foi assassinado há exatamente 30 anos, apenas por ser negro, apenas por ser jovem, apenas por ser. Foi o dia em que vimos que o ódio cresce em escolas, à porta de teatros, na rua, no espaço virtual, que o mal se propaga por todo o lado. Foi o dia em que muitos acordaram para a rapidez do que nos está a acontecer sentindo que é difícil parar, mas que não desistiremos de travar esta onda.

O dia 10 de junho foi um dia de perguntas. Porque odeiam tanto? Porquê um ator? Porque é que ninguém os trava? Porque é que não regulamos o ódio nas redes sociais? Porque é que continuamos a relativizar e a ocultar? Porque é que o Presidente da Câmara de Lisboa fala, como se fossem iguais, extremismos à direita e outros crimes? Porque é que o relatório RASI omite os crimes de ódio, numa tentativa de os retirar do debate público? Porque é que uns continuam a construir perceções erradas sobre a imigração, quando estes crimes hediondos são praticados por cidadãos nascidos e criados em Portugal?

O dia 10 de junho chocou pelo ataque a um artista à porta de um teatro. Conversávamos sobre as razões deste ódio à arte. Mas foi sempre assim. Os regimes autoritários sempre temeram e perseguiram os que usam a palavra como fermento e abrigo da liberdade. Porque a palavra tem sempre mais força do que a brutalidade do soco. Porque a palavra traz a complexidade que perturba quem faz da mentira e da violência o seu único argumentário. Os artistas são alvo, porque mostram que o mundo pode ser diferente, porque nos fazem sonhar, porque nos fazem parar no tempo suspenso em que apreciamos a sua obra. A cultura assusta quem não quer a democracia, porque é incompatível com aquele imediatismo típico da rede social ou da fúria.

A cultura, as artes, e em particular o teatro, constituem talvez o mais profundo traço distintivo entre o ser humano e o animal. O teatro, em especial, é o espaço onde nos debruçamos sobre a fragilidade e o esplendor da condição humana — onde se revelam, com lúcida compaixão, os nossos ridículos, as nossas grandezas e as nossas contradições. É na cena que se ensaia o pensamento livre, despido de doutrinas prontas ou moralismos impositivos.

O teatro não é uma cartilha ideológica, nem uma lengalenga papagueada: é tudo e é todos. Vive da palavra, do corpo e do silêncio. Vive do conflito e da escuta. E esse tudo, esse plural vivo, vem já de muito longe: Gil Vicente, nos seus altares profanos e populares, e Camões, nos seus autos renascentistas, já compreendiam que o palco é um espelho cruel e terno da sociedade. Desde então, o teatro foi sempre o lugar da interpelação, da inquietação, da heresia necessária.

Não admira, pois, que tantos mecenas e patrocinadores mantenham uma relação distante com o teatro. Podem até pontualmente apoiar outras artes — onde a palavra pode não ferir — mas raramente o teatro, porque nele a palavra é viva e pode incomodar. Incomodava nos tempos da censura oficial — quando os censores, entre a ignorância e o zelo, proibiam o que conseguiam entender — e continua a incomodar hoje, não pela interdição explícita, mas pelo silêncio cultivado, pelo desabituar da escuta crítica, pelo abandono da formação cidadã através da arte.

Porque pensar é perigoso. Pensar leva a uma opinião, e uma opinião arranca-nos do conforto acrítico de um rebanho domesticado. É sempre mais cómodo que apenas um pense, e os restantes executem, sigam, obedeçam. O teatro, ao convidar ao pensamento, quebra esse conforto anestesiado da obediência acrítica e obriga à consciência. Por isso incomoda. Por isso é necessário.

Se os portugueses conhecessem melhor a sua história — quem somos, de onde viemos, os fios que nos ligam ao território e às feridas do tempo — se cada um ousasse procurar os seus antecedentes, talvez muita coisa se resolvesse. Talvez a pertença deixasse de ser confundida com pureza, talvez a identidade deixasse de ser um grito de exclusão. O combate prioritário, o verdadeiro campo de batalha da nossa era, é contra a ignorância em bandeiras hasteadas. Essa ignorância vestida de opinião, de certeza e de orgulho. Essa ignorância que fala alto, marcha com pose e censura com emojis. Essa ignorância que mata, exclui, zomba e vota.

Querem-nos calados. Querem os teatros fechados. Querem programar-nos como estão a formatar os mais novos. Querem-nos com medo. Querem voltar a um Portugal amordaçado e com desconfiança do poder da palavra. Querem-nos presos. Querem-nos, sobretudo, com medo.

Somos ambos professores. Um de linguística, ciência da palavra, outro de teatro, arte do corpo – juntos ensinamos como o pensamento ganha forma e voz no mundo. Acreditamos que, em cada escola, em cada bairro, em cada lugar, nos compete desmontar a mentira e o ódio. Acreditamos que, pela educação, a esperança não morre. Acreditamos que a cidadania é componente essencial de uma escola que serve para educar e não apenas para instruir. Acreditamos que tem mais mérito o aluno que olha para o outro como igual, porque tem o conhecimento, a ciência e a cultura para rejeitar a repressão e a discriminação, do que o brilhante individualista que corre sozinho pela melhor nota.

Sentimos que Portugal precisa de se mobilizar muito fortemente para contrariar o crescimento desta violência. Cabe-nos a todos esta tarefa, na palavra, na criação, na denúncia, na rejeição, na paciente desconstrução dos múltiplos combustíveis deste ódio. O silêncio é cúmplice. Não podemos ficar calados quando à nossa frente se desprezar ou espezinhar. Cabe-nos a todos, em cada função, em cada fábrica, escola ou espaço artístico. Em cada bairro, em cada café. Políticos e não políticos, crentes e não crentes, jornalistas, trabalhadores e reformados, novos e velhos, homens e mulheres. Todos somos convocados à luta pela sã celebração da diversidade como bem maior.

Querem-nos com medo. Mas nós não temos. Não vamos viver no recato amedrontado que nos querem impor. Continuamos a sair à rua, a fazer arte, a ensinar, a celebrar a democracia e a diversidade. A rua é dos democratas, o espaço público é o da alegria e da liberdade.

É urgente agir. É urgente a coragem. É urgente não silenciar.

É urgente não ter medo de afirmar que este ódio tem autores morais. Aumenta com o crescimento da extrema-direita, que legitima tantos que até há pouco tempo não ousavam afirmar o seu racismo, a sua xenofobia, a sua homofobia, a sua misoginia. Cada deputado do Chega, cada novo partido da extrema-direita é um contributo ativo para a degradação civilizacional que testemunhamos.

Não temos medo. Porque sabemos que a realidade é complexa, mas que a arte, a educação, a ciência e a cultura nos dão a força para não desistir.»


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