20.7.24

Gentes de vários mundos (12)

 


Mandalay, Birmânia, 2009.

Menina com ar altivo e confiante, engalanada para uma festa na segunda cidade do seu país.

A chegada à Lua, ainda

 


Via Hugo van der Ding no Facebook.

20.07.1969 – A Lua!

 




Deus apoia, nas eleições americanas, um narcisista patológico

 


«Há momentos na história em que se entra numa era negra quase sem se dar por ela. No caso actual, damos de tal maneira por ela que o céu já está todo negro. Parece um filme de terror, é um filme de terror. Com a escuridão vem toda uma série de prodígios maléficos, o principal é ver o Diabo à solta travestido de Deus.

Trump e toda a convenção republicana apresentam-se como os ungidos de Deus, que, pelos vistos, entrou nas eleições americanas para apoiar um narcisista patológico. Que Deus o tenha salvo da bala, muito bem, é sua obrigação, mas uma outra coisa é Deus ser agora da equipa MAGA. É por isso que suspeito que, cumprida a obrigação de Deus, entrou em cena o Diabo disfarçado de Deus, de boné MAGA na cabeça, e sentou-se na primeira fila para lançar o mundo no caos e na escuridão. Vem na Bíblia em Coríntios, 2, 12:14, “o próprio Satanás disfarça-se de anjo da Luz”.

Se Trump ganhar as eleições, o mundo vai conhecer uma crise que pode ser daquelas que marcam o fim de uma era. Estou a ser catastrofista? Podem ter a certeza de que sim, estou. E, para mim, pouco valem os argumentos desculpatórios, como o de que a democracia é assim, o povo pode querer votar no Diabo, que se ele for eleito não há volta a dar, é a democracia. Não, não é. Não basta sequer apresentar o precedente de Hitler, porque a democracia não se limita ao voto popular, é o voto popular mais o primado da lei e dos procedimentos democráticos legais. As democracias não se esgotam no voto, podendo os eleitos fazer o que quiserem, sem lei nem limites ao seu poder. Isso não é democracia, mas demagogia.

Trump poderá ter a legitimidade para governar, mas não tem legitimidade para fazer o que quiser, para se substituir à lei e à Constituição, actuar como um ditador pessoal, que está acima da lei, e ser “ditador por um dia”, vingar-se dos seus adversários e entender a sua imunidade como podendo matar alguém em plena 5.ª Avenida, como uma vez afirmou. Mas, quando se apresenta um homem como sendo a mão terrestre de Deus, a pressão sobre a democracia é global, porque a vontade do ungido é que é a lei. O que vale a democracia quando é a mão de Deus que está a actuar?

Trump tem os seus fiéis, OK. Mas a força de Trump não vem só daí, ela estende-se por toda uma mancha de minimizadores, que fazem a expressão wishful thinking ganhar um pleno sentido. Nestes dias, ouvi todas as versões de explicações e justificações do tipo que, afinal, há um exagero na avaliação de Trump, ele não vai fazer nada daquilo que diz que vai fazer, a OTAN e a Europa podem estar descansadas, a Ucrânia poderá, no limite, continuar a defender-se, e as instituições americanas são suficientemente fortes para o travar.

Será que se esquecem de um homem que não aceita os resultados eleitorais quando perde, tentou de forma ilegal mudá-los, que impulsionou uma tentativa de golpe de Estado a 6 de Janeiro de 2021, que ameaça com uma guerra civil, que se gaba de ter consigo os americanos que têm armas, que violou e viola todas as leis, comete fraudes como quem respira e acha que tem imunidade para fazer tudo o que quer, pela forma como moldou o Supremo Tribunal e os juízes que escolheu, politizando a justiça sem paralelo no passado, e que mostra claros sinais de desequilíbrio narcisista apresentando-se sempre como o “melhor”, “maior”, o “mais amado”, o “único capaz”, mentindo sobre tudo, dos números do crime e da imigração à sua performance no golfe. Será capaz de querer ser outro, ou de ser outro?

Tudo será grave mal ele ganhe as eleições, começará a vingança interna no minuto seguinte e, na hora seguinte, entregará a Ucrânia a Putin. Há os que dizem que Trump é “transaccional”, ou seja, se os aliados dos EUA pagarem os custos relativos à sua defesa, não haverá mudanças significativas na política americana face à OTAN e à Rússia. Duvido muito. O célebre plano para acabar a guerra na Ucrânia, e de passagem por Gaza, passa por dar a Putin e Netanyahu o que eles querem sem restrições, quando muito um qualquer acto de vassalagem ao génio da política internacional, Trump.

Há um homem que conhece bem Trump: Putin. Sob todos os aspectos. E há outro que conhece a vaidade de Trump, e isso basta: Kim Jong-un. Ambos sabem como manipulá-lo, embora no caso de Putin possa haver mais do que isso. Ambos querem o mundo a seus pés, a Ucrânia derrotada, a Europa subjugada, toda a terra e mar à volta da Coreia do Norte sob a chantagem nuclear da monarquia cruel iniciada por Kim Il-sung. Ambos sabem que o seu melhor instrumento é um homem, Trump, que acha ele próprio que manda em tudo e que comprou o espelho da Rainha Má a Elon Musk, que fez um espelho muito especial, que lhe responde que é sempre o melhor em tudo. Nestas coisas o Diabo é mesmo bom.»


19.7.24

Gentes de vários mundos (11)

 


Bazar Verde, Almaty, Cazaquistão, 2016.

Uma vendedeira de fruta, zelosa na apresentação dos seus produtos.

O homicídio de Lisboa

 


Deus é o Luís Paixão Martins de Trump

 


«Segundo Donald Trump, “foi Deus que impediu que o impensável acontecesse”, no atentado de que foi alvo. Ou seja, foi o Criador que evitou que a bala do atirador trespassasse Trump, o que seria impensável, fazendo com que fosse antes atingir um antigo bombeiro, cuja morte é bastante mais pensável. Deus, nos intervalos de governar o universo, acompanha as eleições americanas, provavelmente através da Fox News, e não deixou que o candidato americano fosse abatido a tiro. Em 1914, Deus não interferiu no homicídio do arquiduque, em Sarajevo, e em 1963 não objectou a que Kennedy fosse assassinado, em Dallas.

Mas, desta vez, o Senhor resolveu salvar a vida de um candidato presidencial. No entanto, Deus fez muito mais do que isso: montou a maior operação de marketing político da História. Luís Paixão Martins, que coordenou várias campanhas vencedoras, nunca concebeu um plano tão bom como este — e dizem-me que Paixão Martins é bastante mais caro do que Deus. Ao permitir que a bala raspasse na orelha de Trump, o Senhor forneceu-lhe o máximo de martírio com o mínimo de dano. Trump pode dizer que levou um tiro, que sobreviveu a uma tentativa de homicídio, que derramou sangue. O preço a pagar por isso foi: uma feridinha na orelha. Eu já tive lesões mais graves a jogar à bola. Mas Deus quis fazer de Trump uma vítima sem lhe infligir sofrimento. Tem sido um procedimento habitual do Senhor. Toda a história da vida de Donald Trump tem sido exactamente assim: obter o maior benefício despendendo o menor esforço. Trump começou com uns milhões de dólares oferecidos pelo pai, e quase não paga impostos sobre os rendimentos que tem. Os escândalos em que se envolve não o beliscam, e nem sequer as condenações em tribunal o afectam. Em princípio, Deus tem tido um papel crucial em todas essas peripécias. É como se o Senhor estivesse a protegê-lo por ter um plano para ele. Fico mais descansado. Talvez isso signifique que a eleição de Donald Trump seja, no entender de Deus, a maneira mais eficaz de evitar uma guerra nuclear. Ou então faz tudo parte de uma estratégia para cumprir o que vem escrito no Livro do Apocalipse. Seja como for, Deus parece saber o que está a fazer. Haja alguém.»


Um pouco mais de azul (13)

 




18.7.24

Gentes de vários mundos (10)

 


Perto da Barragem das Três Gargantas, Rio Yangtze, China, 2004.
A fazer pela vida junto dos turistas… Ainda tenho um daqueles dragões em papel.

Quando a barragem ainda nem estava pronta e não sonhávamos que viria a ser gerida por quem manda na EDP.

França

 


Vota-se hoje para a presidência da Assembleia Nacional. Ninguém obteve a maioria na primeira volta, mas o mais votado foi o comunista André Chassaigne pela Frente Popular.

Segue-se a segunda volta e, se for necessário que haja uma terceira, só é necessária maioria relativa.


Nelson Mandela

 


Seriam 106 e o que pensaria hoje do estado do mundo.

Orçamento: negociação ou humilhação do PS?

 


«Era fácil adivinhar que o debate sobre o estado da nação se iria transformar no debate sobre o estado da negociação (do Orçamento para 2025). Confirmou-se.

A avaliar pelo que se passou na manhã desta quarta-feira na Assembleia da República, o estado da negociação do Governo com o PS não passou do grau zero e as perspectivas de um acordo entre os dois partidos para que os socialistas se possam abster parecem ser apenas possíveis (a avaliar pelo discurso de animal feroz de Luís Montenegro) se o PS estender uma passadeira vermelha ao primeiro-ministro, curvar-se aos desejos da AD e ungir com os óleos sagrados o Programa do Governo.

Na semana em que Pedro Nuno Santos mastiga a gravata (faz marcha-atrás no seu antigo discurso de “não é não” à viabilização de um orçamento AD) e propõe-se a abrir negociações com o Governo, Montenegro responde com algumas pedras na mão como se tivesse um poder absoluto que manifestamente não tem.

Poderá dizer-se que as palavras agressivas de Montenegro, quase reveladoras de quem não quer negociar nada, neste estranho “estado da nação”, não passaram de jogos florais, de bracinhos de ferro com vista a marcar posições para uma negociação que começará a ser discutida a sério lá mais para o Outono.

Talvez Luís Montenegro só queira mostrar que é forte e talvez os pedidos de “deixem-me governar” ou “trabalhar” que tem distribuído pelo país – e esta quarta-feira mais uma vez – são meros ímpetos da emulação cavaquista a que não é capaz de resistir, tendo em conta o sucesso que obteve o seu antecessor nos anos 1985-1995.

A acusação de “deslealdade” (??) não foi um bom começo de conversa para quem sabe que precisa que o maior partido da oposição viabilize – pela abstenção – o Orçamento. É possível que Luís Montenegro não queira mesmo negociar nada de substancial com o PS de forma a permitir a Pedro Nuno Santos não perder ainda mais a face.

Mesmo Pedro Duarte, o ministro dos Assuntos Parlamentares, que falou num tom muito mais conciliador do que o primeiro-ministro, voltou a repetir aquelas frases que já se transformaram numa espécie de “hinos” deste Governo: “O que está hoje em cima da mesa é a responsabilidade de cada um de nós” ou “nenhuma aspiração pessoal ou partidária deve ser maior que a ambição que temos para o país”. De um lado, a “ambição” do Governo, do outro as “aspirações partidárias” da oposição.

Cavaco Silva bem dizia que não era “político” e quase 40 anos depois percebe-se que o discurso continua a pegar no país da democracia tão jovem. Nada melhor para um político ou para um governo do que fingir não ser “político” e afirmar-se contra as “aspirações partidárias”. Esta tem sido a narrativa deste Governo e em discurso que está a ganhar – a avaliar pela popularidade do primeiro-ministro nas sondagens – não se mexe.

É provável que o objectivo do Governo seja só o de humilhar o PS, tentando obrigá-lo a uma viabilização com os contornos da “abstenção violenta” de António José Seguro em 2011, para evitar ir a eleições (um cenário inaceitável).

Agora, é a lei da vida: entre a espada e a parede, é sempre melhor escolher a espada. Por muito que, por estes dias, o cenário seja favorável à direita, uma abstenção do PS ao Orçamento sem contrapartidas decentes será uma festa para a AD e insustentável para o PS a médio prazo.

O PS terá que voltar à casa de partida e votar contra, tal como Pedro Nuno Santos tinha dito desde o primeiro dia. A avaliar pelo discurso de André Ventura, o Orçamento será aprovado com os favores do Chega. Foi assim nos Açores e na Madeira e o Chega tem muito a perder com uma crise política.»


17.7.24

Gentes de vários mundos (9)

 


Lalibela, Etiópia, 2013.
Oração numa das onze igrejas escavadas na rocha no século XII.

Não há palavras que possam dar uma ideia do que são esses onze templos, escavados na rocha e em muitos casos ligadas por túneis. O Templo de S. Jorge foi o último a ser construído e é o mais espectacular, com a forma em cruz, enterrado e com quinze metros de altura. (Ver fotografia mais abaixo.)
As escavações começaram em pleno século XII e todo o conjunto foi construído em apenas vinte e quatro anos! Terão estado implicados nas obras 40.000 homens, com recurso a instrumentos mais do que rudimentares, e conta a lenda que trabalhavam enquanto havia Sol e que os anjos faziam o turno da noite...



João Semedo

 


Seis anos sem ele.

Governar “para a ganância”

 



17/18.07.1936 – A Guerra Civil Espanhola

 


Na noite de 17 para 18 de Julho de 1936, teve início a terrível Guerra Civil Espanhola que iria durar quase três anos.

**** Muita informação em arquivos da RTP

**** Um conjunto de textos em El País.

**** Dois vídeos:






**** Canções emblemáticas:




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Donald Trump ainda não ganhou

 


«Estamos ainda a "digerir" a tentativa falhada de assassinato de Donald Trump, durante um comício em Butler, Pensilvânia, que explodiu como uma bomba numa campanha presidencial já de si altamente perturbadora e radicalizada.

Não vale a pena repetir o que toda a gente de bom senso e de valores democráticos já disse – a violência não é admissível nem tolerável em democracia. Nos dias imediatos ao atentado, ouvimos toda a classe política americana dizê-lo veementemente e manifestar a sua preocupação pela saúde do candidato republicano.

A campanha ficou em suspenso. As redes sociais encheram-se de teorias da conspiração e de acusações mais ou menos ignóbeis contra o Presidente Biden. Os MAGA mais fanáticos apontaram o dedo aos democratas. Os que seguem religiosamente o culto de Trump viram a mão de Deus a desviar a bala. A imagem do seu rosto com um fio de sangue, o seu corpo protegido pelos seguranças, o punho erguido contra a bandeira americana, tornou-se icónica. Imagino que nem a inteligência artificial conseguiria conceber um melhor cartaz para a sua campanha eleitoral.

Há um "antes" e um "depois" do atentado. Sabemos o que era o "antes". Só podemos especular sobre o que será o "depois". E o "antes" resume-se numa frase: Donald Trump foi vítima do seu próprio discurso político que, desde 2015, quando decidiu candidatar-se às primárias republicanas, arrastou sempre consigo o incitamento ao ódio e à violência contra os seus "inimigos" políticos e um desprezo pelos outro seres humanos que raia a patologia. Obama era o "Barry do Soweto". "Metam-na na prisão" foi o grito de guerra mais ouvido durante a campanha de 2016 contra Hillary Clinton.

Incentivou continuamente os seus apoiantes mais fanáticos a actos de violência. Recusou-se a aceitar os resultados das eleições de 2020, atiçando uma massa de desordeiros contra o Capitólio aos gritos de "enforquem Mike Pence" e "matem Nancy Pelosi". Todos ainda nos lembramos, absolutamente incrédulos e horrorizados, das imagens que nos chegavam em directo de Washington, naquele dia 6 de Janeiro de 2021. Morreram quatro pessoas, entre as quais dois polícias da segurança do Congresso. Para Trump, os insurrectos foram "patriotas inacreditáveis", que prometeu perdoar quando voltasse à Casa Branca.

Gozou com o ataque ao marido de Pelosi na sua casa de S. Francisco – na verdade, era dirigido a ela –, levado a cabo por um fanático que o feriu com enorme gravidade. Alguns – quase todos – os elementos que trabalharam com ele na Casa Branca ou na Administração descrevem os anómalos pedidos e ordens que recebiam do então Presidente.

Incita constantemente ao ódio aos imigrantes, que acusa de violadores, ladrões e criminosos. Disse, já mais recentemente, que haveria um "banho de sangue" na América caso perdesse as eleições de Novembro próximo. E o problema é que a sua previsão tem hoje uma alta probabilidade de se realizar. Nem sequer conseguimos antecipar o que teria acontecido se os tiros tivessem sido fatais.

Estou apenas a falar do seu carácter e do seu constante incitamento à violência. Não preciso de me referir ao seu discurso errático, mentiroso, alucinado, antidemocrático e narcísico, que roça a psicopatia e que todos conhecemos. Ou à sua ignorância visceral, que o levou a dizer numa conferência de imprensa, durante a pandemia e para embaraço de quem estava com ele, que o álcool-gel era para beber. Ou das declarações que fez sobre o aquecimento global, sobretudo quando estava muito frio em Nova Iorque. Ou à forma como goza com quem sofre de deficiência física ou mental, e como despreza os veteranos, que qualifica de "perdedores e aproveitadores." Já nem falo da forma como trata as mulheres, para a qual me faltam as palavras.

É um ser humano desprezível. E, no entanto, há milhões e milhões de americanos que o olham como um "salvador", prontos a apoiá-lo em qualquer circunstância, que ignoram as condenações dos tribunais que fazem dele um criminoso, que acreditam nele quando diz que é "o maior Presidente da História da América". Que ainda vêem nele, e na sua vida de luxo, um "cavaleiro de armadura brilhante" que luta contra as elites corruptas de Washington.

Radicalização irreversível

Trump saiu do comício de Butler como uma vítima e, simultaneamente, um herói. O que fará com este atentado só o vamos saber quando discursar na Convenção republicana que o vai entronar como o candidato oficial às presidenciais de 5 de Novembro. Uma transformação? Algum grau de moderação? É difícil contrariar a sua própria natureza. A radicalização da sua base de apoio não é reversível.

Ontem, escolheu J.D. Vance, jovem senador do Ohio, para seu "vice", o que nos dá uma ideia clara de que nada ou quase nada vai mudar no seu discurso e nas suas intenções políticas. Vance foi o primeiro dos candidatos a "número dois" da lista a culpar directamente Joe Biden. Nas primárias de 2016, ainda se afirmava como um "never Trump" e interrogava-se sobre se ele não seria um "Hitler americano". Agora consegue ser mais trumpista do que o original, com a fúria própria dos convertidos. É um fanático cristão nacionalista, um dos principais opositores ao apoio à Ucrânia no Congresso e partilha com Trump a ideia de que a NATO é "obsoleta".

Caro leitor, cara leitora, o que aconteceu à democracia americana, que já foi exemplo e inspiração para gente do mundo inteiro? O que leva quase metade dos americanos a reverem-se num político sem escrúpulos, que fomenta a violência, que ignora a lei, que goza com os valores essenciais da democracia, que é desprovido de um grama de empatia? Que promete ser "um ditador" no primeiro dia na Casa Branca?

A discussão sobre as razões da ascensão e da força crescente dos populismos e dos nacionalismos domina hoje o debate em todas as democracias ocidentais. Há o fenómeno das redes sociais que apaga os factos sobre os quais o debate democrático deve assentar, que alimenta tribos, que assenta em emoções e sentimentos primários, que se torna, tantas vezes, na principal fonte de "informação" dos cidadãos e que os populistas sabem utilizar na perfeição. Há o ressentimento acumulado contra as elites, de quem se sente invisível ou esquecido. Há a expressão livre de ideias e sentimentos que, antes, as pessoas se sentiam envergonhadas ou constrangidas de revelar em público e que vêm hoje defendidas pelos políticos extremistas e populistas, que reclamam falar em nome do povo. E faltam-nos ainda instrumentos de análise para lidar com esta nova realidade social em sociedades muito mais fragmentadas.

Ian Bremmer, presidente do Eurasia Group, um think tank, dizia, no programa GPS de Fareed Zakaria, que a economia americana é hoje a inveja do mundo, que o desemprego quase não existe, que a América continua a liderar na ciência e na tecnologia, ainda sem rival à altura, apesar da China, concluindo que nada disto parece contar devido ao falhanço da política.

Joe Biden foi um dos Presidentes mais transformadores de que há memória recente. Restaurou a imagem dos Estados Unidos no mundo, retomou e consolidou as suas alianças permanentes na Europa e no Indo-Pacífico, devolvendo a confiança aos aliados. Foi decisivo na liderança do apoio à Ucrânia e no renascimento da NATO. E, no entanto, antes do atentado falhado contra o anterior Presidente, a única coisa que interessava às televisões e à imprensa, incluindo a de referência, era a sua fragilidade ou as suas trocas de palavras. Fez um discurso notável na abertura da cimeira da NATO, em Washington. Não conseguiu romper a barreira de dúvidas sobre a sua condição física e mental, que nasceram da sua performance negativa no debate televisivo com Trump, na CNN. O Partido Democrata dividiu-se sobre a manutenção da sua recandidatura.

Este era também o "antes" da fatídica tarde de sexta-feira quando um jovem de 20, inscrito no Partido Republicano, disparou oito tiros da sua arma semiautomática AR-15 contra Donald Trump.

Os democratas no Congresso tentaram impedir o acesso quase sem restrições a armas desta natureza. Os republicanos opuseram-se. Alguns representantes MAGA deixaram-se fotografar com pequenas miniaturas da AR-15 na lapela. Trump prometeu eliminar as regras restritivas que ainda restam para o acesso a qualquer arma. Acabou por ser vítima da facilidade com que são adquiridas e chegam às mãos de um jovem de 20 anos que ainda não tem idade para consumir bebidas alcoólicas.

Em 1994, Bill Clinton conseguiu fazer aprovar no Congresso a proibição das armas de assalto em todo o país. Os crimes cometidos com armas de fogo caíram 43%. A lei tinha de ser renovada em 2004. Os republicanos de George W. Bush não o quiseram fazer. Nos Estados Unidos, há mais armas nas mãos de civis do que habitantes. Os democratas já anunciaram que vão levar de novo a lei que restringe as armas automáticas ao Congresso. Vai ser interessante ver como reagem os republicanos.

Mas vamos ao "depois". A primeira reacção quase unânime de analistas e comentadores foi concluir que Trump já tinha ganho as eleições. A força da imagem icónica que fixou o momento contra a fragilidade do adversário. A mobilização. A derradeira vitimização a culminar uma campanha de constante vitimização. O cenário perfeito da convenção, em Milwaukee, no Wisconsin, à sua espera. Uma nova imagem do herói popular renascido, prometendo "unir a América e o mundo".

Conclusão precipitada?

Talvez seja uma conclusão precipitada, ainda que as suas hipóteses tenham aumentado. Faltam quase quatro meses para as eleições. Muita coisa pode ainda acontecer. É pouco credível que, para além do seu eleitorado fiel, o número ainda mais elevado de eleitores que o rejeitam diminua.

"Um político normal poderia obviamente esperar conquistar maior simpatia dos eleitores depois de sobreviver a uma tentativa de assassinato", escreve Gideon Rachman no Financial Times. "Mas Trump é uma figura altamente polarizadora. Milhões de votantes ‘Never Trump’ não vão transformar-se em ‘Yes Trumpers’ por mais chocados que estejam por uma vil tentativa de assassinato."

O colunista do diário britânico acrescenta que "o medo que alguns democratas demonstram em privado, pensando que a eleição acabou, é demasiado fatalista." Têm obviamente uma vantagem que resulta do facto de Joe Biden ser um político decente, que soube exactamente qual devia ser o seu papel num momento tão grave como este. A decência e a genuinidade do seu comportamento foram visíveis e exemplares. As suas palavras foram exactamente aquelas que era preciso dizer. Suspendeu a campanha eleitoral. Confortou a família do bombeiro que morreu para impedir que as balas atingissem a mulher e as filhas. Donald Trump foi jogar golfe. O guião da sua campanha está reescrito, com mais ou menos acertos.

Os democratas teriam uma oportunidade de ouro para refazer o seu. Não na substância da campanha e na denúncia dos perigos que a eleição de Trump representa para a democracia americana e para o mundo, mas na possibilidade de resolver o dilema em que estavam envolvidos antes de um atirador solitário, cujas motivações ainda se desconhecem, disparar contra o candidato republicano.

Joe Biden tem uma missão que só ele pode cumprir: tentar unir o país, acalmar os ânimos, "fazer descer a temperatura", contrariar a radicalização, tranquilizar os americanos.

Os democratas ainda podem contrapor com sucesso um candidato ou, melhor ainda, uma candidata capaz de simbolizar os valores do humanismo, da decência, da compaixão, mas também a determinação na defesa da democracia e da concórdia no país. Uma espécie de antídoto anti-Trump suficientemente mobilizador para mostrar que existe outra América.

Kamala Harris podia desempenhar esse papel. Ou Gretchen Whitmer, a governadora do Michigan, ela própria alvo de uma tentativa de sequestro violento por parte dos apoiantes locais de Donald Trump. Corajosa e moderada, com o inconveniente de não ser, como Harris ou Biden, uma figura nacional e internacional de grande reconhecimento.

Estamos a falar da eleição do homem ou da mulher com mais poder no mundo. Nesse sentido, antes do atentado contra Trump, Biden era, muito provavelmente, a melhor escolha para os democratas, que se dividiram e entraram em pânico depois de um debate do qual o Presidente ainda teria possibilidade de se redimir. Mas a comunicação é assim, nos nossos dias. Agarra-se ao imediato, ao escandaloso, ao superficial, escondendo demasiadas vezes o essencial. A imagem de fragilidade pode ser fatal para quem se candidata a mais quatro anos. Não afecta a imagem de um Presidente que quer sarar as feridas da radicalização e da violência pela persuasão, pela moderação, pela experiência.

Creio que o risco maior que os democratas correm, e com eles a América e o mundo, é o da desistência. É baixar os braços. É admitir que Trump já ganhou. E Trump ainda não ganhou.»

Teresa de Sousa
Newsletter do Público, 16.07.2024

16.7.24

Gentes de vários mundos (8)

 


La Boca, Buenos Aires, 2011.

Almoço ao ar livre com vista para tango.

Edgar Morin, 103 anos

 


No meio do caminho

 


Como se os direitos humanos não fossem defensáveis

 


«A decisão do novo primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, de suspender o plano do seu antecessor, de envio de requerentes de asilo para o Ruanda, não é uma questão de somenos. É a linha que separa humanidade da desumanidade, cada vez mais ténue, cada vez mais tolerada.

Rishi Sunak queria deportar para aquele país africano os candidatos a asilo, porque estava convencido de que isso iria inibir a entrada ilegal no país através do canal da Mancha, apesar das decisões em contrário do sistema judicial nacional e internacional.

O ex-primeiro-ministro chegou a colocar com firmeza a hipótese de o Reino Unido abandonar o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para ultrapassar as contrariedades judiciais, já que as de consciência nunca existiram.

Na semana passada, mais quatro pessoas morreram na tentativa de chegar ao Reino Unido vindas de França. O Ruanda não dissuade o desespero. Como é que a palavra deportação, de conotações históricas tão trágicas, pode agora ser invocada com esta naturalidade por uma democracia?

Como é possível sacrificar os direitos humanos em nome desse princípio de deportação em massa? Donald Trump, em caso de eleição, irá fazê-lo com todo o prazer e sadismo. Mais ainda, depois de ter sobrevivido a este atentado.

A guarda costeira grega tem sido acusada de contribuir para o afogamento de migrantes, ignorando a lei internacional que obriga ao seu resgate. Uma reportagem da BBC relatou casos de requerentes de asilo que foram atirados ao mar ou colocados em insufláveis sem motor, que se esvaziaram, e que morreram na sequência disso, e situações de pessoas que desembarcaram no país e foram perseguidas, detidas e levadas de novo para o mar.

Esta prática grega é conhecida e reiterada e conta com negligência da Frontex, a agência europeia da guarda de fronteiras externas da União Europeia. As instituições europeias nunca tiverem muita vontade de investigar estas acusações. No caso da agência europeia, Fabrice Leggeri, o seu ex-director executivo, teve de se demitir, em 2022, por graves acusações de desrespeito pelos direitos humanos.

Leggeri, que, ironicamente, dizia que a Frontex não deveria ser uma “superorganização não governamental”, foi recompensado pela União Nacional. Marine Le Pen escolheu-o como número três da lista que apresentou ao Parlamento Europeu a 9 de Maio.

A extrema-direita sabe reconhecer os seus. Esta crise humanitária que levou o jovem português Miguel Duarte a sentar-se no banco dos réus de um tribunal italiano, sob acusação de crime de auxílio à imigração ilegal, por ter participado em operações de resgate e de salvamento no Mediterrâneo, do qual foi ilibado, não é uma questão humanitária para todos. Há humanos mais humanos do que outros.

Assistimos a isto, e a muito mais, com a passividade de quem não tem de se preocupar com o que acontece a alguém distante, desconhecido e diferente.

A juventude do partido de Giorgia Meloni estica o braço e faz a continência nazi, candidatos da União Nacional publicam fotos em redes sociais com chapéus nazis, mas o ministro dos Assuntos da diáspora israelita, Amichai Chikli, afirmou, antes da segunda volta das eleições francesas, que “Marine Le Pen seria excelente para Israel”, Viktor Orbán acha que a Alemanha “já não cheira ao mesmo por causa de imigrantes”, etc. Este discurso odioso nem gera a devida condenação, nem indignação.

Tudo é possível. A Rússia não tem escrúpulos em bombardear um hospital pediátrico com doentes oncológicos, Israel bombardeia escolas e hospitais, e continua a usar a fome como uma arma no seu plano de eliminar um povo a quem não é reconhecido qualquer direito.

Emmanuel Macron disse em Washington o que todo sabemos, mas que nem todos conseguem dizer: a política de dois pesos e de duas medidas face à Rússia e a Israel é “profundamente prejudicial para todos nós”. Ou, como diz Pedro Sánchez, “se estamos a dizer ao nosso povo que estamos a apoiar a Ucrânia porque estamos a defender a lei internacional, isso é o mesmo que temos de fazer em relação a Gaza”.

Há uma organização chamada Nações Unidas que continua a fazer o papel para o qual foi criada. Que continua a chamar a atenção para a autodestruição do planeta, seja pela via do aquecimento global, seja pela via da centena de conflitos que se mantêm vivos, embora só ouçamos falar de dois, e, mais importante do que tudo, sem estar a soldo de nenhuma potência.

Pelo contrário, não há memória de um secretário-geral ter sido tão vilipendiado, simplesmente por ser isento e por respeitar a vida humana, seja ela qual for. O mundo seria mais insuportável sem a ONU e sem António Guterres. Até parece que defender direitos humanos já não é defensável.»


15.7.24

Gentes de vários mundos (7)

 


Roça S. João dos Angolares, S. Tomé, 2019.

Um almoço inesperadamente «gourmet» no restaurante do simpático Chefe Silva que faz questão de ir conversar com todos os comensais.

Mais de um terço dos presidentes americanos foram alvo de tentativas de assassínio

 

«A América tem uma longa tradição de violência política. Esta é presentemente mais forte na extrema-direita, mas surge também em franjas de extrema-esquerda. Um inquérito do Chicago Project on Security and Threats, da Universidade de Chicago, indica que que 10 por cento dos americanos seriam favoráveis à violência para impedir que Trump chegue à presidência; mas sete por cento dizem-se favoráveis à violência para reinstalar Trump na Casa Branca.

Mais de um terço dos presidentes americanos foram alvo de tentativas de assassínio. Quatro deles morreram, de Abraham Lincoln a John Kennedy. Alguns candidatos presidenciais foram assassinados em campanha, como Bob Kennedy em 1968. A última tentativa de assassínio foi contra Ronald Reagan, em 1981.


O punho de Trump após o tiro é o fim da campanha democrata

 


«O debate entre Donald Trump e Joe Biden foi tão penoso para o actual Presidente dos Estados Unidos que o homem mais poderoso do mundo teve de passar os últimos dias a garantir que estava de boa saúde.

Com as sondagens em alguns estados importantes mais favoráveis a Donald Trump, o facto de Joe Biden ter de vir dizer todos os dias que “está bem” não é exactamente um trunfo de campanha. Trocar o nome de Zelensky pelo de Putin seria só mais uma das imensas gaffes dos 50 anos de carreira política de Joe Biden, não se desse o caso de acontecer agora, aos 81 anos, quando as suas capacidades cognitivas são postas em causa por uma grande parte dos democratas. Nancy Pellosi foi talvez a mais violenta, ao dizer que era legítimo perguntar se o que se tinha passado no debate “era só um episódio ou uma condição”.

Desde 27 de Junho que a campanha no interior do Partido Democrata contra Joe Biden estava a ser de uma intensidade assombrosa. Na verdade, Donald Trump só teve de estar quieto enquanto os democratas entravam em modo suicídio.

A mais perfeita tradução dessa campanha anti-Biden vinda das hostes democratas (ou, melhor dizendo, em defesa da desistência de Biden) foi a capa da revista The Economist da semana passada, em que o título “No way to run a country” [não é forma de dirigir um país] era ilustrado com o selo do Presidente dos Estados Unidos em cima de um andarilho. Dificilmente se pode encontrar uma capa tão cruel nos anais de uma revista “de referência”.

Este sábado, Bernie Sanders — o senador que se chegou a candidatar a Presidente nas primárias do Partido Democrata para as presidenciais de 2016 e de 2020 — veio dar um murro na mesa contra a campanha anti-Biden vinda de dentro dos democratas.

“Basta! Biden pode não ser o candidato ideal, mas será o candidato e deve ser o candidato. E com uma campanha eficaz, que fale às famílias trabalhadoras, não só vencerá Trump como o vencerá largamente.” A frase de Sanders, bastante realista (simplesmente não há tempo nenhum para arranjar alternativa a Biden e Kamala Harris, quase pré-indicada como sucessora há quatro anos, acabou por não o ser), teve efeitos nulos. Horas depois, o tiro sobre Donald Trump.

A tentativa de assassínio do antigo Presidente Trump arruma — como se não bastasse a fragilidade evidente de Biden — um dos maiores argumentos da campanha democrata, a de que Trump é uma ameaça à segurança. Trump pouco mais novo é que Biden (menos três anos apenas), mas toda a coreografia do ex-Presidente depois do acontecimento na Pensilvânia ficará na História como uma prova de força. O punho erguido e a cara ensanguentada de Trump são os símbolos das próximas eleições de Novembro. Dificilmente qualquer discurso democrata poderá fazer alguma coisa contra o facto de Trump ter sido vítima de uma tentativa de assassínio.

Numa América disposta a tolerar a violência, era o pior que podia acontecer. A invasão do Capitólio desaparece perante um Trump ferido.

O editorial deste domingo do New York Times dava números: num inquérito feito no mês passado por uma instituição de Chicago sobre segurança e ameaças, 10% dos inquiridos achavam que o uso da força se justificava para evitar que Trump fosse eleito Presidente. E, dos inquiridos, também 7% achavam, em sentido contrário, que era legítimo o uso da força para conseguir que Trump voltasse à Casa Branca.

O momento é de uma gravidade imensa. O discurso democrata morreu na Pensilvânia, com Biden ou sem Biden, e Trump pode muito bem voltar a ganhar a Presidência dos Estados Unidos. Agora, pode dizer-se que já não está tudo em aberto.»


14.7.24

Gentes de vários mundos (6)

 


Perto do Lago Inle, Birmânia, 2009.
 
Uma cidadã do mundo.

14.07.1918 – Ingmar Bergman

 


Ingmar Bergman chegaria hoje aos 106. Foi durante alguns anos o meu cineasta de eleição e criou-me um fascínio tal pelos seus filmes, pelo ambiente em que se passavam e pelo seu país, que me fez gastar os primeiros tostões que consegui poupar: fui a um balcão da TAP, comprei um bilhete e pus-me a caminho de Estocolmo sem nada planeado.

Para não o esquecermos, três pequenos vídeos entre muitos outros possíveis:






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Léo Ferré morreu em 14.07.1993

 


«Avec le temps, avec le temps, va, tout s'en va»



14 juillet

 


Ils auront toujours Paris.



A desdemocratização da democracia

 


«Olhando para a decadência do macronismo e nunca pondo todos os ovos no mesmo cesto, a elite económica francesa estava preparada para o Governo autoritário de Bardella e Le Pen. Apesar da retórica popular, a União Nacional (RN) opôs-se ao aumento dos salários médios e mínimo, optando por propor a redução das contribuições para a Segurança Social, e defendeu menos regras ambientais. Como nos anos 30, a chegada dos fascistas ao poder teria o amparo do dinheiro. Foi o povo francês, e só ele, que a travou. E, para isso, a capacidade de a Nova Frente Popular (NFP) e de a França Insubmissa conquistarem o voto dos trabalhadores, dos subúrbios das grandes cidades e dos jovens foi crucial. Não foi apenas a extrema-direita que foi derrotada. Foi o “nem-nem”, que repetia as equiparações do costume.

Chegaremos ao dia em que Léon Blum, construtor da Frente Popular original, será considerado um extremista e o marechal Pétain não mais do que um conservador. Como recordou Rui Tavares na entrevista que lhe fiz esta semana, foi isso que aconteceu nos anos 30. Quando, em 1936, Blum defendeu as férias pagas, os patrões disseram que seria “a ruína de França”. E, já com o Governo colaboracionista de Pétain no poder (com apoio destes patrões), o antigo primeiro-ministro (judeu numa Europa antissemita) foi julgado como traidor, porque os seus desvarios socializantes teriam enfraquecido o país. Direitos que hoje consideramos naturais já foram radicais. E voltaram a ser. E é por isso mesmo que a esquerda não os deve abandonar. Deve ser, aliás, mais ousada. Tanto como a NFP foi no seu programa.

Sim, a França está numa situação difícil. A NFP ficou em primeiro e não tem maioria. Apesar de Macron achar que “ninguém ganhou”, a coligação presidencial também não a tinha e isso não a impediu de governar. Se os socialistas abandonassem a aliança vitoriosa, como lhes é pedido pelo Presidente, e recebessem o beijo da morte de Macron, voltariam ao lugar que os aproximou da extinção. Quem acredita que o PS deve ocupar o lugar de Macron para aplicar o seu programa neoliberal não percebeu o que aconteceu em França e na Europa. Ou percebeu, mas tenta vencer sempre, seja com extrema-direita, liberais ou socialistas. Se a NFP abraçar quem a fez crescer pela sua impopularidade, entregará a vitória a Le Pen em 2027.

O problema é a incompatibilidade programática com o Presidente. É com base nessa incompatibilidade que se faz a equiparação dos extremos. Quem a faz não vê apenas a democracia política como o chão comum em que os democratas se podem entender. Considera o liberalismo económico tão constitutivo da democracia, como o liberalismo político. Para não dizer que é mais. A equiparação da “esquerda radical” (em versão já alargada a muitos socialistas) à extrema-direita tenta desdemocratizar qualquer alternativa ao neo¬liberalismo. Ao retirar a economia da disputa no campo democrático, esvazia-se a própria democracia, dando argumentos aos seus inimigos. Uma das dificuldades apontadas à NFP é o conflito das suas propostas com as exigências comunitárias. Por causa das contas públicas? Macron levou a França a 5,5% de défice e a dívida pública a 111%. O limite não são números, é um programa político nunca sufragado e cristalizado pela UE.

Não é só a França que desmente a ideia de que para vencer a extrema-direita é preciso o sistema virar à direita. Keir Starmer recentrou os trabalhistas e não conquistou um voto aos conservadores. Os conservadores é que perderam para a extrema-direita, que teve quatro milhões de votos e 14%, que, graças ao sistema eleitoral, se resumiram a cinco deputados. O “desastroso” Jeremy Corbyn, eleito agora como independente contra o candidato trabalhista, teve em 2017, depois de apresentar o seu programa “radical”, mais três milhões de votos do que Starmer, no que foi a maior votação trabalhista de 1997 até hoje. Até no ocaso de Corbyn, em 2019, o Labour teve mais meio milhão do que agora. O único crescimento à esquerda foi dos Verdes. A deslocação dos dois grandes partidos para a direita não corresponde, olhando para os votos, a uma exigência eleitoral. E não impediu o mesmo que, apesar de todos os suspiros de alívio, aconteceu em França: o crescimento da extrema-direita.

Em França, a NFP conquista, segundo uma sondagem para a primeira volta, metade dos votos até os 24 anos (os macronistas nem aos 10% chegam) e 38% entre os 25 e os 35. No Reino Unido, os trabalhistas têm 40% dos votos até aos 24 e os Verdes 15%, enquanto os conservadores se ficam pelos 14%, os liberais pelos 10% e a extrema-direita pelos 8%. Andamos há meses a teorizar sobre o voto jovem na IL e no Chega e a explicação é simples: os jovens votam contra quem está, desde que se lembram, no poder. Porque, pelo menos na Europa, só varia o tempero. E os eleitores sentem-se bloqueados. Não pela política, mas pela sua ausência. Se não podem escolher o seu destino, é natural que escolham o protesto inconsequente. A TINA neoliberal é aliada da extrema-direita porque diz ao povo que no chão da democracia nada de essencial pode ser decidido.»