17.7.24

Donald Trump ainda não ganhou

 


«Estamos ainda a "digerir" a tentativa falhada de assassinato de Donald Trump, durante um comício em Butler, Pensilvânia, que explodiu como uma bomba numa campanha presidencial já de si altamente perturbadora e radicalizada.

Não vale a pena repetir o que toda a gente de bom senso e de valores democráticos já disse – a violência não é admissível nem tolerável em democracia. Nos dias imediatos ao atentado, ouvimos toda a classe política americana dizê-lo veementemente e manifestar a sua preocupação pela saúde do candidato republicano.

A campanha ficou em suspenso. As redes sociais encheram-se de teorias da conspiração e de acusações mais ou menos ignóbeis contra o Presidente Biden. Os MAGA mais fanáticos apontaram o dedo aos democratas. Os que seguem religiosamente o culto de Trump viram a mão de Deus a desviar a bala. A imagem do seu rosto com um fio de sangue, o seu corpo protegido pelos seguranças, o punho erguido contra a bandeira americana, tornou-se icónica. Imagino que nem a inteligência artificial conseguiria conceber um melhor cartaz para a sua campanha eleitoral.

Há um "antes" e um "depois" do atentado. Sabemos o que era o "antes". Só podemos especular sobre o que será o "depois". E o "antes" resume-se numa frase: Donald Trump foi vítima do seu próprio discurso político que, desde 2015, quando decidiu candidatar-se às primárias republicanas, arrastou sempre consigo o incitamento ao ódio e à violência contra os seus "inimigos" políticos e um desprezo pelos outro seres humanos que raia a patologia. Obama era o "Barry do Soweto". "Metam-na na prisão" foi o grito de guerra mais ouvido durante a campanha de 2016 contra Hillary Clinton.

Incentivou continuamente os seus apoiantes mais fanáticos a actos de violência. Recusou-se a aceitar os resultados das eleições de 2020, atiçando uma massa de desordeiros contra o Capitólio aos gritos de "enforquem Mike Pence" e "matem Nancy Pelosi". Todos ainda nos lembramos, absolutamente incrédulos e horrorizados, das imagens que nos chegavam em directo de Washington, naquele dia 6 de Janeiro de 2021. Morreram quatro pessoas, entre as quais dois polícias da segurança do Congresso. Para Trump, os insurrectos foram "patriotas inacreditáveis", que prometeu perdoar quando voltasse à Casa Branca.

Gozou com o ataque ao marido de Pelosi na sua casa de S. Francisco – na verdade, era dirigido a ela –, levado a cabo por um fanático que o feriu com enorme gravidade. Alguns – quase todos – os elementos que trabalharam com ele na Casa Branca ou na Administração descrevem os anómalos pedidos e ordens que recebiam do então Presidente.

Incita constantemente ao ódio aos imigrantes, que acusa de violadores, ladrões e criminosos. Disse, já mais recentemente, que haveria um "banho de sangue" na América caso perdesse as eleições de Novembro próximo. E o problema é que a sua previsão tem hoje uma alta probabilidade de se realizar. Nem sequer conseguimos antecipar o que teria acontecido se os tiros tivessem sido fatais.

Estou apenas a falar do seu carácter e do seu constante incitamento à violência. Não preciso de me referir ao seu discurso errático, mentiroso, alucinado, antidemocrático e narcísico, que roça a psicopatia e que todos conhecemos. Ou à sua ignorância visceral, que o levou a dizer numa conferência de imprensa, durante a pandemia e para embaraço de quem estava com ele, que o álcool-gel era para beber. Ou das declarações que fez sobre o aquecimento global, sobretudo quando estava muito frio em Nova Iorque. Ou à forma como goza com quem sofre de deficiência física ou mental, e como despreza os veteranos, que qualifica de "perdedores e aproveitadores." Já nem falo da forma como trata as mulheres, para a qual me faltam as palavras.

É um ser humano desprezível. E, no entanto, há milhões e milhões de americanos que o olham como um "salvador", prontos a apoiá-lo em qualquer circunstância, que ignoram as condenações dos tribunais que fazem dele um criminoso, que acreditam nele quando diz que é "o maior Presidente da História da América". Que ainda vêem nele, e na sua vida de luxo, um "cavaleiro de armadura brilhante" que luta contra as elites corruptas de Washington.

Radicalização irreversível

Trump saiu do comício de Butler como uma vítima e, simultaneamente, um herói. O que fará com este atentado só o vamos saber quando discursar na Convenção republicana que o vai entronar como o candidato oficial às presidenciais de 5 de Novembro. Uma transformação? Algum grau de moderação? É difícil contrariar a sua própria natureza. A radicalização da sua base de apoio não é reversível.

Ontem, escolheu J.D. Vance, jovem senador do Ohio, para seu "vice", o que nos dá uma ideia clara de que nada ou quase nada vai mudar no seu discurso e nas suas intenções políticas. Vance foi o primeiro dos candidatos a "número dois" da lista a culpar directamente Joe Biden. Nas primárias de 2016, ainda se afirmava como um "never Trump" e interrogava-se sobre se ele não seria um "Hitler americano". Agora consegue ser mais trumpista do que o original, com a fúria própria dos convertidos. É um fanático cristão nacionalista, um dos principais opositores ao apoio à Ucrânia no Congresso e partilha com Trump a ideia de que a NATO é "obsoleta".

Caro leitor, cara leitora, o que aconteceu à democracia americana, que já foi exemplo e inspiração para gente do mundo inteiro? O que leva quase metade dos americanos a reverem-se num político sem escrúpulos, que fomenta a violência, que ignora a lei, que goza com os valores essenciais da democracia, que é desprovido de um grama de empatia? Que promete ser "um ditador" no primeiro dia na Casa Branca?

A discussão sobre as razões da ascensão e da força crescente dos populismos e dos nacionalismos domina hoje o debate em todas as democracias ocidentais. Há o fenómeno das redes sociais que apaga os factos sobre os quais o debate democrático deve assentar, que alimenta tribos, que assenta em emoções e sentimentos primários, que se torna, tantas vezes, na principal fonte de "informação" dos cidadãos e que os populistas sabem utilizar na perfeição. Há o ressentimento acumulado contra as elites, de quem se sente invisível ou esquecido. Há a expressão livre de ideias e sentimentos que, antes, as pessoas se sentiam envergonhadas ou constrangidas de revelar em público e que vêm hoje defendidas pelos políticos extremistas e populistas, que reclamam falar em nome do povo. E faltam-nos ainda instrumentos de análise para lidar com esta nova realidade social em sociedades muito mais fragmentadas.

Ian Bremmer, presidente do Eurasia Group, um think tank, dizia, no programa GPS de Fareed Zakaria, que a economia americana é hoje a inveja do mundo, que o desemprego quase não existe, que a América continua a liderar na ciência e na tecnologia, ainda sem rival à altura, apesar da China, concluindo que nada disto parece contar devido ao falhanço da política.

Joe Biden foi um dos Presidentes mais transformadores de que há memória recente. Restaurou a imagem dos Estados Unidos no mundo, retomou e consolidou as suas alianças permanentes na Europa e no Indo-Pacífico, devolvendo a confiança aos aliados. Foi decisivo na liderança do apoio à Ucrânia e no renascimento da NATO. E, no entanto, antes do atentado falhado contra o anterior Presidente, a única coisa que interessava às televisões e à imprensa, incluindo a de referência, era a sua fragilidade ou as suas trocas de palavras. Fez um discurso notável na abertura da cimeira da NATO, em Washington. Não conseguiu romper a barreira de dúvidas sobre a sua condição física e mental, que nasceram da sua performance negativa no debate televisivo com Trump, na CNN. O Partido Democrata dividiu-se sobre a manutenção da sua recandidatura.

Este era também o "antes" da fatídica tarde de sexta-feira quando um jovem de 20, inscrito no Partido Republicano, disparou oito tiros da sua arma semiautomática AR-15 contra Donald Trump.

Os democratas no Congresso tentaram impedir o acesso quase sem restrições a armas desta natureza. Os republicanos opuseram-se. Alguns representantes MAGA deixaram-se fotografar com pequenas miniaturas da AR-15 na lapela. Trump prometeu eliminar as regras restritivas que ainda restam para o acesso a qualquer arma. Acabou por ser vítima da facilidade com que são adquiridas e chegam às mãos de um jovem de 20 anos que ainda não tem idade para consumir bebidas alcoólicas.

Em 1994, Bill Clinton conseguiu fazer aprovar no Congresso a proibição das armas de assalto em todo o país. Os crimes cometidos com armas de fogo caíram 43%. A lei tinha de ser renovada em 2004. Os republicanos de George W. Bush não o quiseram fazer. Nos Estados Unidos, há mais armas nas mãos de civis do que habitantes. Os democratas já anunciaram que vão levar de novo a lei que restringe as armas automáticas ao Congresso. Vai ser interessante ver como reagem os republicanos.

Mas vamos ao "depois". A primeira reacção quase unânime de analistas e comentadores foi concluir que Trump já tinha ganho as eleições. A força da imagem icónica que fixou o momento contra a fragilidade do adversário. A mobilização. A derradeira vitimização a culminar uma campanha de constante vitimização. O cenário perfeito da convenção, em Milwaukee, no Wisconsin, à sua espera. Uma nova imagem do herói popular renascido, prometendo "unir a América e o mundo".

Conclusão precipitada?

Talvez seja uma conclusão precipitada, ainda que as suas hipóteses tenham aumentado. Faltam quase quatro meses para as eleições. Muita coisa pode ainda acontecer. É pouco credível que, para além do seu eleitorado fiel, o número ainda mais elevado de eleitores que o rejeitam diminua.

"Um político normal poderia obviamente esperar conquistar maior simpatia dos eleitores depois de sobreviver a uma tentativa de assassinato", escreve Gideon Rachman no Financial Times. "Mas Trump é uma figura altamente polarizadora. Milhões de votantes ‘Never Trump’ não vão transformar-se em ‘Yes Trumpers’ por mais chocados que estejam por uma vil tentativa de assassinato."

O colunista do diário britânico acrescenta que "o medo que alguns democratas demonstram em privado, pensando que a eleição acabou, é demasiado fatalista." Têm obviamente uma vantagem que resulta do facto de Joe Biden ser um político decente, que soube exactamente qual devia ser o seu papel num momento tão grave como este. A decência e a genuinidade do seu comportamento foram visíveis e exemplares. As suas palavras foram exactamente aquelas que era preciso dizer. Suspendeu a campanha eleitoral. Confortou a família do bombeiro que morreu para impedir que as balas atingissem a mulher e as filhas. Donald Trump foi jogar golfe. O guião da sua campanha está reescrito, com mais ou menos acertos.

Os democratas teriam uma oportunidade de ouro para refazer o seu. Não na substância da campanha e na denúncia dos perigos que a eleição de Trump representa para a democracia americana e para o mundo, mas na possibilidade de resolver o dilema em que estavam envolvidos antes de um atirador solitário, cujas motivações ainda se desconhecem, disparar contra o candidato republicano.

Joe Biden tem uma missão que só ele pode cumprir: tentar unir o país, acalmar os ânimos, "fazer descer a temperatura", contrariar a radicalização, tranquilizar os americanos.

Os democratas ainda podem contrapor com sucesso um candidato ou, melhor ainda, uma candidata capaz de simbolizar os valores do humanismo, da decência, da compaixão, mas também a determinação na defesa da democracia e da concórdia no país. Uma espécie de antídoto anti-Trump suficientemente mobilizador para mostrar que existe outra América.

Kamala Harris podia desempenhar esse papel. Ou Gretchen Whitmer, a governadora do Michigan, ela própria alvo de uma tentativa de sequestro violento por parte dos apoiantes locais de Donald Trump. Corajosa e moderada, com o inconveniente de não ser, como Harris ou Biden, uma figura nacional e internacional de grande reconhecimento.

Estamos a falar da eleição do homem ou da mulher com mais poder no mundo. Nesse sentido, antes do atentado contra Trump, Biden era, muito provavelmente, a melhor escolha para os democratas, que se dividiram e entraram em pânico depois de um debate do qual o Presidente ainda teria possibilidade de se redimir. Mas a comunicação é assim, nos nossos dias. Agarra-se ao imediato, ao escandaloso, ao superficial, escondendo demasiadas vezes o essencial. A imagem de fragilidade pode ser fatal para quem se candidata a mais quatro anos. Não afecta a imagem de um Presidente que quer sarar as feridas da radicalização e da violência pela persuasão, pela moderação, pela experiência.

Creio que o risco maior que os democratas correm, e com eles a América e o mundo, é o da desistência. É baixar os braços. É admitir que Trump já ganhou. E Trump ainda não ganhou.»

Teresa de Sousa
Newsletter do Público, 16.07.2024

0 comments: