«Mesmo tentando disfarçar ter perdido, nestas eleições, mais 11 câmaras (tinha 34 há pouco mais de uma década, passando, nesse período, de 213 para 93 vereadores) com a reconquista de Sines, Montemor, Mora e Aljustrel, o PCP foi um dos maiores derrotados do último domingo. Porque nem as quatro novas autarquias compensam a perda de Setúbal (passa de primeira para quarta força, com menos de um terço da percentagem) ou de Évora (passa de primeiro para terceiro, com quase metade da percentagem), mais um recuo no Alentejo e o quase desaparecimento das suas já muito frágeis posições no Norte e no Centro.
O maior problema do PCP é quando se olha para o interior da sua derrota, não ficando apenas pelo deve-haver das câmaras. Não tanto no Alentejo, em que a CDU tem 9% no distrito de Portalegre (cai 5pp, é ultrapassado pelo Chega), 20% no distrito de Évora (cai 4pp, mantém-se como segunda força e mantém o número de câmaras, apesar de a troca ser de Évora por Montemor, com o mesmo autarca) e 27% no distrito de Beja (cai 5pp, mantém-se como segunda força e perde uma câmara). Aí, tendo em conta a mudança sociológica a que temos assistido na região, os comunistas caem mais um pouco, mas resistem. Porque, em meios mais pequenos, o Chega esbarra com a sua falta de quadros e implantação. Por isso teve um quarto das câmaras da CDU. Mas elegeu 137 vereadores, mais 44 do que o PCP.
Cada vez menos popular
O relevante nem foi o Alentejo. É nas zonas suburbanas do norte de Lisboa e na Margem Sul.
Em Almada, o PCP perde um terço dos votos, com o Chega e o PSD a morderem-lhe os calcanhares. No Seixal, que segurou sem dificuldades, o Chega passa a ser a alternativa. No Barreiro, a CDU perde 9pp, ficando praticamente empatada com o Chega. Na Moita, perde outros 9pp, ficando atrás do Chega. No Montijo, passa de 19% para 7%, da terceira para a quinta posição, com o Chega a três pontos de vencer. Mesmo Sesimbra e Palmela são ganhas por menos de 200 votos. E Setúbal foi o desastre que se viu.
Nos subúrbios a norte já não há tanto para cair, mas as quedas relativas até são mais significativas, porque também já não há voto útil para ganhar: a CDU desce quase para metade em Odivelas; de 10% para 7% na Amadora; de quase 30% para 11% em Loures; de 22% para 13% em Vila Franca. Em todas elas ficou atrás do Chega. Se formos ver as freguesias mais populares, a tragédia é ainda maior. É aqui que se dá a decadência do PCP. O que conta é a perda do voto popular que o PCP segurava.
Há sinais de uma tendência estranha, se olharmos para a evolução da votação dos comunistas na cidade de Lisboa, onde resistiram. Mantêm uma junta, mas, mais uma vez, é efeito do candidato local – a vitória com 42% em Carnide cai para 14% no voto para a câmara. A CDU passou, na cidade, de 10,5% para 10,9%. Sobe, em percentagem para a câmara, no Lumiar, Alvalade, Areeiro, Penha de França, Arroios, Avenidas Novas ou Campo de Ourique. Desce, em percentagem para a câmara, nos Olivais, em Marvila, Santa Clara, Carnide, Beato, Santa Maria Maior, Misericórdia, Ajuda, Benfica, Campolide. Algumas delas são exatamente onde o Chega mais cresce. Há alguns resultados menos alinhados, mas, para quem conhece a cidade, a dinâmica na mudança do tipo socioeconómico de voto é evidente.
Quem vê no resultado lisboeta da CDU uma resposta popular ao descontentamento decidiu pegar na lupa e ignorar o que aconteceu à volta e até a natureza deste voto. A inconsequência é da natureza social deste voto, o que pode oferecer-nos um mapa do futuro político dos comunistas, bem diferente do seu passado.
A cegueira da ressaca da geringonça
Este resultado do PCP acontece em simultâneo com a mudança sociológica na cidade, que assiste à expulsão das classes populares e das classes médias. Digo-o há uma década e há uma década que se confirma, com freguesias que antes eram populares ou de classe média-baixa a tornarem-se bairros “finos". Nos últimos oito anos, Lisboa perdeu 30 mil eleitores, passando de 493 mil eleitores para 463 mil. São quase 3500 pessoas a menos por cada ano que passa, numa altura em que a população da cidade se encontra estável. A explicação é simples: as classes médias estão a ser expulsas da cidade onde cresceram, ou para onde vieram trabalhar, enquanto bairros como Campo de Ourique, a baixa da cidade, Belém ou as Avenidas Novas se encontram cheios de reformados franceses ou nómadas digitais endinheirados. É por causa dessa transformação que estas eleições correspondiam a uma enorme urgência. Sem travar a sangria de classe média-baixa, a esquerda arriscar-se-ia a nunca mais vencer a capital, crescentemente transformada num condomínio.
O PCP sabia-o e, ainda assim, recusou participar numa coligação com toda a esquerda com a candidata mais à esquerda que o PS poderia arranjar. Era uma luta contra o tempo em que a esquerda, no seu conjunto, valerá cada vez menos na cidade. Que, perante isto, o grande argumento seja “mas o João Ferreira era melhor” é dos raciocínios mais ausentes de reflexão política que se pode ouvir de um marxista. Será um excelente vereador sem pasta, sem poder, sem relevância para o futuro da cidade e do PCP. Parabéns e que guarde a taça na prateleira das vitórias morais.
Para os vinte mil votos que faltaram, os 26 mil da CDU chegavam e sobravam, sendo até previsível alguma mobilização extra com a dinâmica de vitória. E se olharmos para a estrutura de voto do Chega, percebemos que o mesmo fenómeno nunca aconteceria à direita. Nem o eleitorado centrista o aceitaria, nem o voto do Chega vem esmagadoramente da direita.
Mesmo que a coligação tenha tido menos votos do que a soma dos partidos nas autárquicas anteriores, fosse por causa da candidata, por perda de voto do PS para o Chega ou porque a base eleitoral da cidade mudou no contínuo processo de gentrificação (não se podem fazer comparações de resultados ignorando a mudança de universo), não há como negar que o voto comunista chegaria para fazer a diferença, até porque algum terá vindo dos que votaram no Bloco ou no PS há quatro anos. As análises não podem, aliás, ignorar as dinâmicas que a unidade cria e as que a divisão alimenta. Nem o papel empenhado de desgaste que João Ferreira teve na candidatura e na imagem de Alexandra Leitão.
Como escrevi, a recusa do PCP, a quem foi oferecida a vice-presidência e participação ativa no programa, nada teve a ver com a justa crítica às viabilizações de orçamentos de Moedas, que o PCP também garantiu em várias autarquias de que é crítico. O PCP recusou todas as alianças, fosse com quem fosse (a não ser com o PEV, criação sua). Porque a recusa veio de uma decisão nacional. O PCP tirou uma lição da geringonça: as convergências matam.
O erro dos comunistas, típico de quem perdeu massa crítica para a decisão tática mais fina, é não ter a capacidade de compreender os momentos e os lugares em que a regra não funciona, porque nada sobreviverá pela aplicação cega do dogma. Lisboa era, definitivamente, o caso. Como era Albufeira, contra o Chega, e seguramente Loures, contra o candidato chegano do PS. A luta pela sobrevivência não pode matar as condições para essa sobrevivência. E sem esquerda o PCP não sobreviverá. Nem para bater no resto da esquerda.
Recordar 1989
Em 1989, o PCP teve a inteligência de perceber a excecionalidade que a política sempre contempla. Fez uma aliança com o PS e depois com o resto da esquerda, prescindindo da liderança autárquica, apesar de ser mais forte do que o PS na cidade. A péssima gestão de Abecassis (não tão má como a de Moedas) seria uma razão, mas a compreensão da situação nacional também foi determinante: o país atravessava o primeiro longo domínio de uma direita a meio de uma maioria absoluta que mudaria a política portuguesa para sempre. No contexto internacional, os comunistas viviam o pior ano das suas vidas. Aquela brecha era, foi mesmo, muitíssimo importante. Como foi a vitória de Sampaio contra Cavaco, nas presidenciais, também com o apoio dos comunistas. As similitudes são imensas, o PCP é que não é o mesmo.
Apesar de ter mais 1200 votos, o resultado da CDU correspondeu à perda de um vereador, à queda para o quarto lugar e, mais importante, à perda da que pode ter sido a última oportunidade para tirar a direita da liderança da capital com a frente mais ampla e mais à esquerda que Lisboa conheceu. João Ferreira concluiu, depois de garantir a vitória a Moedas, que o PCP é quem melhor resiste à direita, como se a resistência fosse uma prova de esforço, ausente de objetivos políticos concretos.
O que mudou? Os partidos com implantação social são sensíveis aos impulsos das bases. Têm massa crítica para compreender a realidade e, mesmo definindo uma regra, fazer-lhe acertos. O PCP era, ao contrário do que tantas vezes se diz, um partido pragmático. Veja-se a segunda volta das presidenciais de 1986. Esse pragmatismo tinha uma razão: a busca do poder. É isso que dá consistência, não a pureza ideológica. O PCP já não luta pelo poder, luta pela sobrevivência, pela preservação da identidade, pelo património. Um partido não serve para isso. Para isso erguem-se museus. É esta ausência de pragmatismo que o impede de adaptar a regra à situação, o medo à necessidade.
O quadrado que se estreita
Muitos elogiam a afirmação de princípios vazia de objetivos, confundindo cegueira com coragem. O PCP não é menos sectário hoje do que no passado. O sectarismo passou da tentação de impor uma hegemonia, em que fazia cedências se isso estivesse ao serviço desse objetivo, para um isolamento defensivo. Álvaro Cunhal tinha um termo para esta inconsequência com aparência de firmeza ideológica: “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”. Lenine chamava-lhe a “doença infantil do comunismo”. Os seus maiores inimigos aplaudem porque, como se viu, tiram daí dividendos.
Isto não acontece apenas na frente eleitoral. O que o PCP está a fazer na CGTP, afastando os poucos resquícios de pluralismo que existiam na direção, no momento em que os sindicatos, no osso, mais precisam dele, é um crime. Custaacreditar que seja possível um partido que vale 3% nas legislativas comandar a maior central sindical do país e afastar as minorias da direção sem que isso a asfixie. Já não é o partido que tinha 200 mil militantes e mais de um milhão de eleitores a abusar da sua posição dominante nos sindicatos, é um partido com 180 mil votantes, em legislativas, a fazê-lo. O primeiro mata o pluralismo sindical, o segundo mata os sindicatos.
A frase estafada "o PCP não faltará, como nunca faltou, às soluções" fazia sentido nos anos 80 e 90 ou até em 2015. Hoje é um bordão sem conteúdo. Falta cegamente. Nunca faltou tanto. Falta porque já não move a luta por uma hegemonia política que assustava a direita. Move-se pela defesa de um património que a direita acha genuíno, porque belamente derrotado. Não é que o PCP não conte, é que não quer contar.
Enquanto desanca em tudo que se mova à esquerda, acusando todos de traição, o PCP é hiper-reativo a qualquer crítica. Mas devia ouvi-las: está a tornar-se um problema para a esquerda, mesmo que nela só incluam os que estão à esquerda do PS. Esta parte da esquerda terá de se reconstruir, se quer existir, como existe em França. Olhando para o PCP, não me parece que tenha interesse em fazer parte disso. Duvido, aliás, que um Livre que sonha capitalizar os despojos das esquerdas derrotadas e um BE moribundo tenham vontade para tanto.
No caso do PCP, a sobrevivência do partido tornou-se no princípio e no fim da sua ação política. Como se a ela fosse indiferente o contexto que ajuda a criar. Não haverá PCP num deserto à esquerda. Essa estratégia morrerá quando não tiver mais edifícios para vender e autarquias para perder. Quer defender o seu quadrado, não percebendo que, assim, ele será cada vez mais estreito. E isso, mesmo que se recusem a ver, ficou evidente nestas autárquicas.»