14.10.25

As percepções das autárquicas

 


«Há eleições que revelam o país todo, e há eleições que o revelam em partes. As autárquicas pertencem, quase sempre, à segunda categoria. São uma soma de geografias e de personalidades, de afetos antigos e fidelidades locais. A tentação de lhes extrair um mapa nacional é antiga, mas, como todos os vícios políticos, resiste à evidência.

Veja-se Viseu. Laranja durante décadas, o Cavaquistão caiu agora para o Partido Socialista. Seria um sismo ideológico, não fosse o facto de ter nome próprio: Fernando Ruas. A derrota deve-se menos à erosão nacional do PSD do que à fadiga de um poder local sobranceiro.

Ainda assim, o saldo global é inequívoco: foi uma vitória clara do PSD. Recuperou, doze anos depois, a Associação Nacional de Municípios e conquistou as cinco maiores câmaras do país. Carlos Moedas assegurou o segundo mandato, Pedro Duarte venceu no Porto, Luís Filipe Menezes regressou a Gaia, Marco Almeida derrotou a ministra Ana Mendes Godinho em Sintra, e Carlos Carreiras, em Cascais, perdeu a maioria mas manteve o poder (com a grande surpresa a ser João Maria Jonet que, sozinho, conseguiu ultrapassar o Chega). Se é imprudente tirar conclusões nacionais de resultados locais, permitam-me uma excepção: esta foi também uma vitória pessoal de Luís Montenegro. Apostou o capital político do governo para proteger Moedas e dar lastro a Pedro Duarte, e saiu-lhe bem. Foi, em tudo, uma segunda volta simbólica das legislativas. Montenegro não só sobreviveu ao governo, como acabou de ser reeleito pelo país.

Mas há outra leitura, menos triunfalista. O PSD venceu porque aprendeu a falar a língua do tempo. E o tempo é securitário. Pedro Duarte, no Porto, preferiu as percepções aos dados e tratou a insegurança como um rumor palpável. Moedas, que já tinha o discurso oleado a esse propósito, fez o mesmo em Lisboa. Em Sintra, Marco Almeida contou com o selo de Passos Coelho e levou até ao voto a tese de que as linhas vermelhas já não servem para nada. Foi uma vitória do pragmatismo, mas também do mimetismo: o PSD passará agora a acreditar que a forma mais eficaz de neutralizar o Chega é repetir-lhe o léxico, limando-lhe o excesso.

No Partido Socialista, o dilema é outro. José Luís Carneiro tinha duas candidaturas-símbolo à prova. Alexandra Leitão, em Lisboa, apostou na coligação à esquerda e perdeu, embora por pouco. Ricardo Leão, em Loures, cultivou uma retórica de ordem e autoridade. Chegou aliás a ser atacado pelo ex-secretário geral, António Costa, por ofender “gravemente os valores do PS”. E ganhou. Não se trata apenas de sociologia local. É um sinal de que também nos socialistas o centro de gravidade se desloca. José Luís Carneiro perceberá o que os resultados insinuam: o discurso que rende hoje não é o da pureza ideológica, é o da estabilidade. A vitória de Leão pode tornar-se a gramática da nova esquerda governamental ao invés de uma esquerda que se apresenta como a última reserva moral da moderação.

No fim, as autárquicas deixaram o retrato de um país menos radical do que o medo sugeria, mas mais conservador do que a retórica admite. O Chega não destruiu o bipartidarismo, mas contaminou-o. A extrema-direita não conquistou o poder, mas mudou a gramática de quem o exerce. O mapa político português continua dividido a meio. Mas o vocabulário com que o descrevemos deslocou-se alguns graus à direita.»


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