Vale sempre a pena ler as reportagens que Fernanda Câncio tem publicado no Diário de Notícias:
26.3.16
Asa, o cão de Belém
Vai uma aposta? Asa estará escondido debaixo da mesa durante a reunião do Conselho de Estado, comandado discretamente por Marcelo para morder as canelas a Draghi, Carlos Costa, ou qualquer dos conselheiros, conforme as conveniências. Ou, como já sugeriu alguém e porque se trata de um pastor alemão, talvez chegue a ter direito a cadeirão próprio.
. Dica (254)
Cavaco e o cavaquismo (II). (Manuel Loff)
«Apesar de termos tido (que aguentar) dois Cavaquismos, aquele que contará para a história é o primeiro: uma década (1985-95) de um projeto de restauração histórica, que criou novo a partir do velho, que conseguiu impor-nos um futuro que rompeu com o passado revolucionário recente mas repondo/adaptando alguns dos processos interrompidos por este. A única direita triunfante da nossa história democrática foi o primeiro Cavaquismo; o segundo (2006-16), em compensação, foi o de um ex-chefe de Governo que, transitado para uma Presidência de muito menos poder, apostou-o todo na proteção das opções liberais e austeritárias de um novo projeto das direitas para Portugal, que, contudo, (ainda) não vingou. (…)
Para percebermos o que quis (e o que ainda quer) a direita para Portugal no contexto da derrota da ditadura e da impossibilidade prática de regressar a um modelo sociopolítico autoritário, é no primeiro Cavaquismo que nos temos de concentrar. Ao lado dele, Sá Carneiro, a AD, Barroso, Santana e Passos, foram pouca coisa - sobretudo, é certo, porque todos eles foram derrotados pelas urnas e pela contestação.»
. Da burka ao colete de explosivos
Excertos do artigo de José Pacheco Pereira, no Público de hoje. Devo dizer que é, até ao momento e de tudo o que li, o texto com que mais me identifico, da primeira à última linha. Está na íntegra AQUI para quem não consegue ter acesso ao jornal online.
«No debate sobre o terrorismo que se está a travar, antes com a Al-Qaeda, agora com o Daesh, o facto de alguns dos terroristas que combatem na Síria ou no Iraque serem europeus, e os actos de terrorismo apocalíptico em que o objectivo é matar o maior número de "infiéis" no menor tempo possível serem de responsabilidade de jovens muçulmanos nascidos na França ou na Bélgica, obriga a olhar para Marselha, Paris, Bruxelas e Londres e saber o que é que aí está a acontecer. Obriga-nos também a perceber com ainda maior clareza que o relativismo "multicultural" pode ser muito bem avontadado, mas representa uma cedência de valores civilizacionais inaceitável por quem acredita que um mundo com direitos humanos é melhor do que a aceitação de qualquer selvajaria em nome dos "costumes" ou da religião.
Ora, se o terrorismo em si não pode ter qualquer explicação que menorize o acto criminoso por qualquer determinação causal como o desemprego, a exclusão, ou qualquer outro factor socioeconómico, já importa saber por que razão é que nas comunidades onde se "criaram" estes terroristas eles são o seu produto, assim como nelas se movem à vontade, mesmo depois de se saber o que fizeram, como na velha metáfora guerrilheira, como "peixe na água". Então há todo um conjunto de factores que se tornam explicativos, explicativos não são justificativos, e entre eles avultam todos os que tornaram estas comunidades muçulmanas europeias, em particular em França, Bélgica e Reino Unido, esse espaço em que os terroristas se movem como "peixe na água". Porque apesar das sucessivas declarações apaziguadoras de que a maioria das pessoas que vivem em bairros como Molenbeek em Bruxelas são gente pacífica — e são — e que condena com toda a veemência os actos de terrorismo — aí já não é bem assim, há nuances —, a verdade é que essas comunidades, que deveriam estar na vanguarda da luta contra o terrorismo que lhe é tão próximo, estão longe de o estar. E aí contam as fronteiras que a alteridade cultural ajudou a erguer, dobrada da crescente adesão dos jovens a um islão fundamentalista, e que reforçam o gueto por dentro. Por fora, sabemos quais são os factores que reforçam esse mesmo gueto, a falta de mobilidade vertical que a estagnação económica da Europa dos últimos anos acentuou e a dificuldade que as sociedades europeias têm de criar o élan ascendente que o melting pot americano tem conseguido para a maioria dos seus emigrantes, muitos dos quais chegam sem nada. Na confluência das duas atitudes de gueto resulta que nos microcosmos, como os bairros pobres de Marselha, Londres, Paris e Bruxelas, se há islão moderado, não se ouve, nem parece existir, e o que acontece é uma crescente raiva, manifesta em particular nos jovens contra uma sociedade, que os leva a acentuar ainda mais o isolamento cultural e social. E as raparigas que usam ostensivamente pelo menos uma qualquer forma de "vestuário" islâmico recusam-se a cumprimentar os homens e a ser vistas nos hospitais por médicos e não podem esperar ter muitos dos empregos a que poderiam aceder.
Mas atenção, também aqui os homens se comportam de forma diferente. Quando se diz que os atentados de Paris são contra o "nosso modo de vida", cafés, restaurantes, uma sala de diversão, só em parte é verdade, porque muitos desses jovens radicalizados por uma corrente do islão fundamentalista vivem muito bem nesse "modo de vida": bebem, frequentam prostitutas, vestem-se à ocidental. Até um dia.
Depois há aquele factor que também o nosso "politicamente correcto" tem dificuldade em confrontar: o terrorismo da Al-Qaeda e do Daesh comporta uma componente religiosa, ou melhor, político-religiosa, que temos muita dificuldade em perceber em sociedades já com séculos de laicização. A resposta que se dá vai das alarvidades de Trump às proclamações sucessivas de que o islão "nada tem que ver" com o terrorismo, que é uma perversão do islão. Na verdade, tem. Não podemos separar o lado "bom" do "mau" de uma religião. Há uma corrente no islão, aliás já antiga, que justifica a exterminação dos "infiéis", como no passado aconteceu também no cristianismo. Aliás, deveríamos voltar à nossa história cristã para perceber alguma coisa sobre este fundamentalismo, visto que já o tivemos com bastante força no cristianismo, e está longe de desaparecer de todo. Por isso, se ignoramos que estes jovens que se suicidam, e também matam, têm também motivações do foro religioso, não percebemos que a religião, entendida de uma forma que nós consideramos para nosso conforto como "pervertida", está presente nos actos dos terroristas.
Acabar com o Daesh é possível por meios militares, mas nos últimos vinte anos emergiu uma realidade política e religiosa de natureza muito violenta que existe muito para além do terreno sírio e iraquiano, e está nas nossas cidades. (…)
Dito isto, estamos metidos num grande sarilho.»
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25.3.16
Draghi no Conselho de Estado
Não sei se haverá perguntas a Draghi, assumo que sim, e dava uns cobres para assistir ao diálogo com Francisco Louçã.
. 24.03.1976 – Argentina
Jorge Vileda explica porque «desapareceram» milhares de pessoas:
Eduardo Galeano, Los Hijos de los Dias.
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Dica (253)
«Na verdade, espantoso é que alguém em Molenbeek ainda tenha paciência para jornalistas. Ao lado do nº79, o prédio onde Abdeslam estava escondido, a farmácia é um corrupio de equipas de reportagem. Por exemplo estes dois eslovacos que não arranham nada de francês e aqui andam, desolados, a tirar fotos e sem conseguir fazer uma única entrevista. Uma senhora de 63 anos que nem o primeiro nome aceita dizer sai, de roupão, disparada da porta de um prédio da rua perpendicular à Des Quatre Vents para os verberar: "Para que estão a tirar fotos ao prédio e à rua? A pessoas que não fizeram nada? Que mal fizemos nós? Vivo aqui há 42 anos, não temos nada a ver com essa merda, com esses merdas. Não fazemos merda e não queremos que façam merda. Queremos viver tranquilamente, vivemos muito bem com os belgas, comemos com os belgas, adoramos os belgas." E não é belga? Pára, surpreendida. "Sim, sou belga também, claro."»
. Samba glacial
«Não há palavras para descrever a situação no Brasil. Os brasileiros deviam começar a dar nomes de corruptos às prisões. Não pode ser só a ruas e avenidas. Os portugueses estão chocados com o que se passa no país irmão. Nunca vimos nada assim.
Felizmente que, isto da corrupção, é uma coisa muito brasileira e cá não temos nada disso. Nem tivemos um PM preso, nem ministros acusados, ou um gestor condecorado pelo PR que, 15 dias depois, se sabe ter ajudado a rebentar a maior empresa do país. Aquilo é degradante. (…)
Vejo as manifestações no Brasil e penso que é natural que o povo brasileiro esteja revoltado, porque depois de tantos sacrifícios já é o quarto banco que são chamados a salvar! Não pode ser. Lemos as notícias do "impeachment" e dou por mim a pensar, de zero a Carlos Costa, qual o grau de dificuldade em obter a renúncia de Dilma?
Foi a divulgação de escutas telefónicas, entre Lula e membros do PT, incluindo Dilma, que provocou o encher das ruas. O juiz Carlos Alexandre deve estar psicologicamente destruído, tanta escuta divulgada e nem meia dúzia de pessoas foram para a rua gritar. É impressionante como os corruptos continuam a ser apanhados ao telefone. Se eu fosse brasileiro, e corrupto, só comunicava por aviões com uma faixa na praia - "O cargo é teu, deposita 1M." Ficavam todos na praia a olhar uns para os outros e metade ia à água para disfarçar.
Não podemos esquecer que o Brasil, há poucas décadas, era uma ditadura. Uma democracia ainda frágil, em que os juízes divulgam escutas, porque querem fazer política, e onde, facilmente, há quem peça aos militares que intervenham depois de anos de ditadura militar (e dizem que a saudade é portuguesa) ou surge alguém que propõe que, se calhar, mais valia o Brasil suspender seis meses a democracia. Muito perigoso.»
João Quadros
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24.3.16
Avós de Maio
No dia que marca o 40º aniversário do início da ditadura na Argentina, saúde-se a actividade das Avós de Maio que, até ao fim de 2015, conseguiram recuperar a identidade de 119 netos.
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Talvez os barões da EU acordem
… e percebam que fizeram um acordo absolutamente vergonhoso.
«Cada vez mais organizações de ajuda a refugiados e migrantes que chegam à Grécia estão a juntar-se a um boicote aos centros de detenção, numa resposta ao acordo promovido pela União Europeia (UE), que dizem pôr em causa os direitos humanos.
Estas organizações rejeitam o pacto assinado entre a UE e a Turquia para acelerar o registo e os pedidos de asilo, ao abrigo do qual centenas de pessoas foram detidas desde domingo passado. Refugiados e migrantes cujos pedidos sejam recusados são enviados de volta para a Turquia.
Várias agências de defesa dos direitos humanos consideram que ao colaborarem com os centros de detenção na Grécia estão, na prática, a ser cúmplices de uma prática “injusta e desumana”.
Duas organizações anunciaram esta quarta-feira que vão juntar-se à Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e aos Médicos Sem Fronteiras – que contribuem de forma decisiva para os esforços humanitários –, na decisão de deixar de prestar grande parte da assistência.»
. Corrupição: manual dji instruções
Ricardo Araújo Pereira na Visão de hoje:
«No Brasil, a regra é estar tudo às avessas. O carnaval é redundante. O Brasil devia ser o país da Quaresma.(...)
Os brasileiros sabem que quem governou, governa e governará é suspeito de ter cometido ilegalidades. Na política brasileira, currículo diz-se “cadastro”.»
Na íntegra AQUI.
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Homs, Síria
Nem se percebe por que é que os europeus dos países, que não querem refugiados, não aproveitam esta cidade para vistos gold, vida calma, certamente barata, etc., etc.
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A Guerra e a Paz em Bruxelas
«A Europa, ainda mais depois dos atentados de Bruxelas, defronta-se com a sua imagem reflectida pelo espelho. E ela não é bonita.
Faz agora de mártir (porque sente a dor profunda de ataques que apenas desejam matar), mas defronta-se com um inimigo para quem o martírio público é uma expressão da fé religiosa. É uma guerra que a Europa já conheceu e conhece, mas de que evita sempre falar. Até porque hoje a única ideologia da Europa é o euro. (…)
Afinal as atrocidades a que vamos assistindo na Europa nestes últimos anos é a réplica dos terramotos militares em Bagdad, Cabul ou Aleppo. Números gerais: milhões de mortos e de refugiados. Só no último mês os atentados na Síria, Turquia, Somália, Costa do Marfim ou Iraque fizeram centenas de mortos. Ou seja, o valor da vida nunca foi tão miserável. E é esse o centro do problema.
Os ataques de Bruxelas são feitos numa altura em que a Bélgica parecia viver em clima marcial. Por isso ainda são mais surpreendentes. São de uma simbologia perturbadora: acertam no coração da União Europeia, entidade que, na sua fragilidade, mostra o que é este Velho Continente. Ao longo dos anos, paralelamente à criação de uma instituição federal que determina a sorte das nações e dos povos que integram a UE cresceu o epicentro do terrorismo "jihadista" na Europa. Ali tudo o que se conhece foi planeado. O que mostra a fragilidade da segurança num país que alberga a sede das instituições que fazem políticas económicas que atiram milhões de europeus para o desemprego. (…)
Com o medo na Europa, a vítima principal será Schengen. As intervenções militares ocidentais, apresentadas como "humanitárias", para desalojar ditadores e colocar "democratas" como líderes, foi um desastre. Se David Cameron e Nicolas Sarkozy não tivessem ajudado a destruir o estado líbio, o Estado Islâmico não teria encontrado aí um território de referência para as suas actividades. A destruição da Síria aumentou essa dinâmica. Erros brutais que agora se pagam caro. Mas feito o mal, os líderes europeus deveriam agora procurar uma política séria e estratégica para derrotar este terrorismo sem alma ou coração, que só tenta vencer pelo medo. Para isso a Europa tem de responder em diferentes vertentes e não fazendo acordos de circunstância (como fez com a Turquia para acalmar os votantes alemães).
É uma guerra diferente a que estamos a viver. Sem regras. E é neste momento que poderemos ver se temos líderes a sério ou apenas burocratas dispensáveis. E é neste momento que apetece voltar a ouvir "Les Flamandes" de Jacques Brel.»
Fernando Sobral
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23.3.16
O disparate não paga imposto
… e, desde ontem, o Facebook encheu-se de dislates das mais variadas cores e paladares – neste caso, por causa de uma fotografia, que usei ontem num outro post. Assino por baixo este texto que a Ana Cristina Leonardo publicou na referida rede social:
«Houve a fotografia do bebé morto na praia. Choraram baba e ranho. Fizeram Photoshop.
Arrepanharam os cabelos. Depois houve a fotografia de um puto vivo – mal nutrido, sujo e ferido num braço, mas vivo - a segurar um cartaz a dizer Sorry. Um puto que, ao contrário do bebé, não morreu afogado no Mediterrâneo e está na Grécia à espera não sabe bem de quê. Foi uma escandaleira. Um bradar aos céus. Todos. Uns porque o puto estava a ser manipulado para que tivéssemos pena dele que nós bem topamos essa merda a léguas. Outros, porque era uma manobra da extrema-direita a achincalhar a criança, e por tabela os refugiados, que não tinha nada que pedir desculpa porque não tinha culpa nenhuma. Todos olharam para a criança como analfabeta, manipulada, usada. Que ela em dez anos tenha, infelizmente, vivido mais do que quase todos nós em cinquenta ou mais, não ocorreu a ninguém. A criança poder estar simplesmente a dizer: Lamento! (e não: Desculpem!) e a dizê-lo com sinceridade, que a criança até possa saber algum inglês (e porque não? foi criada nas cavernas?) também não foi considerado. A encenação! A indignação pela encenação! Não se indignaram nunca com a criancinha dos cravos do 25 de Abril. Olham para a fotografia e o que vêem? Um terrorista em potência. Todos. Uns afirmando-o; outros negando-o.
Arrepanharam os cabelos. Depois houve a fotografia de um puto vivo – mal nutrido, sujo e ferido num braço, mas vivo - a segurar um cartaz a dizer Sorry. Um puto que, ao contrário do bebé, não morreu afogado no Mediterrâneo e está na Grécia à espera não sabe bem de quê. Foi uma escandaleira. Um bradar aos céus. Todos. Uns porque o puto estava a ser manipulado para que tivéssemos pena dele que nós bem topamos essa merda a léguas. Outros, porque era uma manobra da extrema-direita a achincalhar a criança, e por tabela os refugiados, que não tinha nada que pedir desculpa porque não tinha culpa nenhuma. Todos olharam para a criança como analfabeta, manipulada, usada. Que ela em dez anos tenha, infelizmente, vivido mais do que quase todos nós em cinquenta ou mais, não ocorreu a ninguém. A criança poder estar simplesmente a dizer: Lamento! (e não: Desculpem!) e a dizê-lo com sinceridade, que a criança até possa saber algum inglês (e porque não? foi criada nas cavernas?) também não foi considerado. A encenação! A indignação pela encenação! Não se indignaram nunca com a criancinha dos cravos do 25 de Abril. Olham para a fotografia e o que vêem? Um terrorista em potência. Todos. Uns afirmando-o; outros negando-o.
Dito isto, três coisas: 1. estais muito doentes da cabeça; 2: ide aprender inglês; 3. remeto-me ao silêncio porque às tantas é demasiado ruído. E por último: mesmo em estado de guerra, diabolizar crianças é muito feio, caraças.»
.Dica (252)
O horror é uma estratégia política. (Francisco Louçã)
«Esta estratégia de terror reforça o pior que a União Europeia tem, que é o seu fechamento. Os governantes sentem-se mais fortes em momento de pânico, sentem-se mais poderosos em regras de excepção, apreciam mais a coordenação se ela tem a pompa da emergência. Veremos muito disso nos próximos dias. Mas podemos estar certos de uma conclusão: quanto mais Hollande, e Merkel, e Rajoy, e Renzi jurarem pela força, menos farão para proteger as populações, para liquidar as bases dos terroristas, para integrar os refugiados, para abrir as soluções sociais que respeitem a democracia como respiração de todos quantos vivem e chegam à Europa.Mas podemos estar certos de uma conclusão: quanto mais Hollande, e Merkel, e Rajoy, e Renzi jurarem pela força, menos farão para proteger as populações, para liquidar as bases dos terroristas, para integrar os refugiados, para abrir as soluções sociais que respeitem a democracia como respiração de todos quantos vivem e chegam à Europa.»
. Conrad e Bruxelas
«Há muito tempo, antes desta nova era do terrorismo, Joseph Conrad assistiu a outra. Vivia-se na grande idade da globalização, antes da Primeira Guerra Mundial.
Em "O Agente Secreto", Conrad via o presente e previa o futuro: em Londres um homem andava com uma bomba colada ao corpo e tinha um alvo, o Observatório de Greenwich, o meridiano global. Não havia lugar mais simbólico para um ataque. O homem, conhecido como "O Professor", explicava que a simplicidade era a grande vantagem que possuía sobre os seus oponentes. O que vimos agora em Bruxelas, como antes noutros locais, é a sofisticação de um caso real: o atentado terrorista feito por Émile Henry em 1894 contra o Café Terminus em França. São ataques simples carregados de simbolismo: contra alvos indiscriminados e perto do coração da União Europeia.
O terrorismo do Estado Islâmico sabe o que quer: alvos simbólicos e publicidade total. Em Bruxelas garantem isso. E mostram, mais uma vez, a debilidade da Europa, que se vai arrastando desde erros estratégicos na forma como viu a questão da Primavera Árabe e a queda dos ditadores nas fronteiras do Mediterrâneo, na forma como continua a não fazer investimentos estruturantes na Argélia, em Marrocos ou na Tunísia, na hipocrisia com que encara a guerra civil síria ou o colapso do poder na Líbia, na vergonhosa falta de política sobre os refugiados ou na sua própria fraqueza em termos de segurança. Isto para já não falar da forma irresponsável como deixou criar, nas cidades de Bruxelas e Paris (sobretudo), territórios livres onde se formam e recrutam terroristas que não têm amor à vida ou a valores de diálogo ou compreensão.
O fim lógico do radicalismo é o terrorismo. O que aconteceu era previsível. A Europa deixou chocar o ovo da serpente do terrorismo global, onde nada nem ninguém está a salvo. Não pode argumentar espanto. A forma negligente como tem actuado nas margens do Mediterrâneo colocou a Europa à beira de um abismo. Conrad avisou há um século. Mas os líderes europeus não conhecem a História.»
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22.3.16
«O futuro é uma ideia sangrenta» (Magritte)
(Foto: hoje, num campo de refugiados na Grécia)
(...)
Pedro Santos Guerreiro, Expresso diário, 22.03.2016 (Excertos).
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Dica (251)
Comprimido de cianeto coberto de açúcar. (Mariana Mortágua)
«A UE não quer a "proteção" dos refugiados. Quer proteger-se e aos equilíbrios podres que a mantêm. Vergonhosamente, não há quem proteja os refugiados da guerra, da Turquia e mesmo desta União Europeia.»
. O grande jogo da Turquia
«Depois do acordo com a Europa por causa dos migrantes e do novo atentado em Istambul, a Turquia volta a estar no centro da política europeia e do Médio Oriente.
Há alguns séculos o Império Otomano teve, nas suas mãos, o destino do Ocidente. Agora é a Turquia que tem parte da frágil solução para o problema dos refugiados e migrantes que a Europa se tem esforçado por dilatar a resolução. O acordo entre Ancara e Bruxelas tem tudo para recentrar o conflito no Médio Oriente, potenciar novas alianças e colocar a Europa numa posição de fragilidade face à Turquia como seria inimaginável desde que esta tenta entrar na União Europeia. Como pano de fundo temos ainda a guerra na Síria, a questão do estado curdo e a redefinição das grandes alianças na região. Demasiadas pedras para um tabuleiro de xadrez muito complicado. Com uma Europa incapaz de gerar consensos perante uma crise destas (que se junta à orçamental e à derivada da austeridade), onde a sua própria força militar é posta em causa, a Turquia mostra a sua força num delicado momento interno de confronto entre os aliados do Presidente Erdogan e os "secularistas". Se a Turquia se compromete, em troca de um orçamento de seis mil milhões de euros, a "controlar" o fluxo de migrantes, por outro lado a Europa abre parte das portas para uma futura entrada de Ancara na UE. Mas, por outro lado, como têm provado sucessivos atentados em Istambul e Ancara, a Turquia está cada vez mais contaminada pela guerra na região. Quer os curdos do PKK quer o Estado Islâmico são cada vez mais faces díspares de um conflito sem fronteiras. Por isso Erdogan tem vindo a aumentar o seu raio de acção diplomático.»
Fernando Sobral
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21.3.16
A UE a vender a alma
Leitura recomendada: este texto de Wolfgang Münchau:
«O acordo com a Turquia é o mais sórdido que eu já vi na política europeia moderna. No dia em que os líderes da UE assinaram o acordo, Recep Tayyip Erdogan, o presidente turco, revelou tudo: "A democracia, a liberdade e o Estado de direito... Para nós, essas palavras já não têm absolutamente nenhum valor." Naquele momento, o Conselho Europeu deveria ter terminado a conversa com Ahmet Davutoglu, o primeiro-ministro turco, e tê-lo mandado para casa. Mas, em vez disso, fez um acordo com ele - dinheiro e muito mais em troca de ajuda com a crise de refugiados.»
. Dica (250)
Bernie Slanders: How The Democratic Party Establishment Suffocates Progressive Change. (Thomas Palley)
«The Democratic Party establishment has recently found itself discomforted by Senator Bernie Sanders’ campaign to return the party to its modern roots of New Deal social democracy. The establishment’s response has included a complex coupling of elite media and elite economics opinion aimed at promoting an image of Sanders as an unelectable extremist with unrealistic economic policies.»
. O culto da personalidade
«O culto da personalidade é um dos primeiros sintomas dos regimes quando estes se estão a desagregar. Em Roma houve mesmo uma série de imperadores que se julgaram deuses.
Em Portugal há políticos mais modestos: líderes da oposição ainda julgam ser primeiro-ministro. E como sonham que regressarão ao poder a curto prazo criam, à sua volta, um feroz culto da personalidade que lhes permite ser reeleitos, em Congresso, por 95% dos votos ou algo parecido. Os aduladores aplaudem a fria e míope oposição de Pedro Passos Coelho a este Governo que leva a um radicalismo bacoco como se viu na votação contrária a medidas que o PSD defenderia no OE se fosse Governo. Mas isso talvez seja um efeito secundário da "destruição criativa" desenvolvida pelo Governo de Passos Coelho e que conseguiu destruir a espinha dorsal da economia portuguesa sem criar nada no seu lugar. Um dos legados mais notáveis da passagem de Passos Coelho pelo poder foi a desintegração das veias entre o capital financeiro nacional e empresas que funcionavam como pontas-de-lança de Portugal aqui e no estrangeiro.
Ficámos completamente nas mãos de capitais estrangeiros. Ou seja, quando o interesse nacional representado pelo Estado deseja intervir estrategicamente, não há armas. Isso não parece preocupar muitos pajens que por aí se passeiam, para quem o liberalismo total é praticado nos EUA, na Grã-Bretanha ou na Alemanha. Puro equívoco. Mas as carências intelectuais e a inexistência de uma estratégia nacional levaram a este triste fado. Não deixam de ser exemplares as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa em Madrid: "é importante uma presença (financeira) significativa espanhola em Portugal, o que é diferente de haver um exclusivo". Quando se pensa no que sucedeu no Banif ou aparenta poder suceder no BPI ou no Novo Banco, as palavras de Marcelo merecem reflexão. Nada contra o capital estrangeiro. Mas tem de haver equilíbrios e não exclusivos, como parecem desejar alguns. Este é um momento de decisões estratégicas. E não de cultos da personalidade.»
Fernando Sobral
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20.3.16
Só contaram para você…
Parvos somos, mas nem tanto assim! E afirmações como esta até metem medo: lembram Cavaco Silva em vésperas do fim do BES.
É verdade que António Costa não «garantiu» nada e afirmou que «os portugueses têm de saber, a Europa tem de saber e os nossos empresários têm de saber que temos um sistema financeiro sólido onde todos podemos confiar para as nossas poupanças e para suportar o investimento na economia portuguesa». Mas os portugueses sabem que NÃO têm «um sistema financeiro sólido», a banca está toda semifalida (e o «semi» já é eufemismo). Tivesse Costa dito que é necessário que PASSEM a ter e a conversa seria outra.
Eu prefiro que me digam que a situação é grave, que nunca o foi como é neste momento. Ainda hoje estive com uma pessoa que já foi despedida nos primeiros 500 do Novo Banco. Tão kafkiana é a realidade que está felicíssima por ter ido na primeira leva, já que tudo será bem pior para os que lá ficam.
. Dica (249)
«On Monday, the President had vowed to extend the legal definition of “terrorists” to include MPs, activists and journalists.»
. Pobre Brasil rico
«O Brasil está à beira de uma guerra civil. Sobretudo porque desta vez um golpe militar não ficará sem resposta popular, num contexto em que as elites exprimem com frontalidade o ódio aos pobres e a sua oposição a qualquer política social.
O argumento maior da campanha contra Dilma, Lula e o PT é a corrupção. Mas trata-se de uma desculpa. A corrupção no Brasil é transversal, cultural, afetando todo o campo político sem exceção. Numa lógica matemática. Quem está no poder aproveita, quem está na oposição é contra. Como alguém disse, com uma ligeira diferença: a direita rouba e fica com tudo; a esquerda rouba mas distribui alguma coisa.
Sucede que muito provavelmente a corrupção no Brasil não é superior à que sucede em tantos outros países e, em boa verdade, a que vai pelo mundo. Convenhamos. A corrupção não é um desvio do sistema, mas um mecanismo essencial da dinâmica capitalista. Pode ser mais primitiva ou mais sofisticada mas está presente em muitos atos das empresas e dos governos. A vasta maioria dos negócios não se faz sem alguma forma do que podemos perfeitamente chamar corrupção. (…)
De qualquer modo o que se passa no Brasil tem pouco a ver com corrupção. Trata-se de política. Pura, dura e suja. A direita não aceita as sucessivas derrotas eleitorais e quer regressar ao poder o mais depressa possível. A bem ou a mal. Nem que seja preciso recorrer a um golpe militar já que o judicial está em curso. (…)
Contudo dois outros aspetos da crise brasileira são particularmente chocantes. O comportamento das elites económicas e a cegueira de alguma gente intelectual e que se diz de esquerda.
Choca assistir à indigência cívica, democrática e moral de muitos ricos que, no essencial, protestam pelo facto do PT de Lula e Dilma terem tirado milhões de brasileiros da miséria. (…) Choca também o racismo em manifestações praticamente só de brancos num país de maioria não-branca. (…)
Mas não deixa também de ser chocante ver tanta gente, supostamente civilizada, culta e que até se pensa de esquerda, juntar-se à turba fascista, confundindo povo com uma elite sórdida. Definitivamente estão a semear ventos. Esperemos que não sejam colhidos pela tempestade se ela aí vier.»
Leonel Moura
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