«Foi interessante observar a tentativa de desdramatização da vitória dos Fratelli d'Italia. Na noite eleitoral, em canais de notícias e telejornais portugueses, os oráculos anunciavam a vitória do “centro-direita”. Entre aqueles quatro partidos coligados, alguém sabe dizer qual está ao centro? Como pode uma herdeira do fascismo italiano liderar uma coligação de “centro-direita”?
Nos comentários, perguntava-se se Georgia Meloni, amiga Viktor Orbán, apoiada por Steve Bannon, ex-militante e herdeira do Movimento Social Italiano, que tem “Deus, Pátria, Família” como lema político, seria, agora, uma moderada. Desde que não seja abertamente eurocética como Boris Johnson e defenda a NATO, pode maltratar os emigrantes à vontade. Assim estão os valores europeus. Chega a moderação estética dos Democratas Suecos, que trocaram a chama por uma bonita flor, puseram “democratas” no nome e mantiveram intacta a sua agenda xenófoba. Chega as juras de amor de Meloni à União Europeia, à NATO e à Ucrânia, carregando sem vergonha o legado de Mussolini. Todos entram no cada vez menos seleto clube do “centro-direita”.
Há até quem explique que este resultado não é grave, porque nesta União os governos, os que realmente são eleitos, não têm assim tanta autonomia. Não percebem que ao dizer aos europeus que é indiferente em quem votam dão inesperados argumentos democráticos ao voto na extrema-direita.
O esforço para tornar o óleo de fígado de bacalhau (referência de “boomer”) num pitéu, cá e em toda a Europa, tem uma razão evidente: a direita sabe que terá de governar com esta gente. E é por isso mesmo que depois de quase todos terem sovado Rui Rio por não ser claro em relação ao Chega, Luís Montenegro apela ao voto no candidato de extrema-direita para vice-presidente da Assembleia da República e não se sente grande incómodo. É a resignação. Já ninguém tem dúvida que, se precisar, o PSD fará um acordo com a extrema-direita para governar. E se precisar muito, meterá o Chega no governo.
Para preparar o caminho que todos sabem ser inevitável para a direita voltar ao poder é preciso ir normalizando não só André Ventura como os seus aliados europeus. Um a um. Aqui, a normalização faz-se por via de uma insistente equiparação com um partido que, apesar de estar em crise, nunca foi tão escrutinado e referido como nos últimos meses. A conclusão está implícita. Na realidade, é cada vez mais explicita. Se o PS governou com o apoio dos comunistas, não haverá problema em governar com a extrema-direita. Isto apesar de ninguém conseguir encontrar, no presente, uma proposta do PCP para o país que ponha em causa o Estado de Direito Democrático. Ao contrário do que sucede com o Chega.
Mas se a conversa é sobre Itália, esta equiparação entre comunistas e fascistas torna-se especialmente insultuosa. Não imagino quantas voltas terá dado Aldo Moro na campa para onde o atirou a verdadeira extrema-esquerda (em nome de quem, não sabemos), depois do “compromisso histórico” que fez com os comunistas, que ajudaram a construir a democracia italiana.
A normalização da extrema-direita é uma estratégia de curto prazo para o centro-direita. A longo prazo ela tem-se revelado sempre suicida (ao contrário dos acordos com os comunistas, para o centro-esquerda). Essa normalização tem-se feito sempre através da absorção dos valores da extrema-direita. Sobretudo em relação aos imigrantes e às minorias. Até terem de tratar o que é inaceitável como moderado ou apenas uma excentricidade, dando espaço para a sua aceitação popular. Não é quando parece extremista que o extremismo é perigoso. Não é quando parece inaceitável que o racismo faz vítimas. O nazismo e os seus crimes contra a humanidade só foram possíveis numa sociedade em que o antissemitismo estava disseminado. É este caldo de tolerância com a intolerância que a direita outrora moderada está a ajudar a cozinhar.
Nada ganham com esta caminhada para o abismo. Acabarão por ser absorvidos por aqueles que julgam que vão absorver, liderados por quem julgam que vão liderar. A direita italiana, no seu conjunto, nem teve uma subida espetacular – mais sete pontos percentuais, sobretudo à custa do Movimento 5 Estrelas, que caiu para metade. Foi Georgia Meloni que absorveu o voto do campo da direita.
Há razões especificas para a subida da extrema-direita em cada país. Na Suécia terá contado a subida de 14% para 26% da comunidade estrangeira, responsabilizada por um recuo do Estado Social que foi, na realidade, uma escolha política de que não têm qualquer responsabilidade. Em Itália, é um sistema eleitoral sucessivamente alterado, mas incapaz de dar consistência real, e não artificialmente construída, ao confronto político. E os efeitos de uma pandemia que, por lá, teve uma dimensão especialmente dramática. E os efeitos da crise da guerra e da energia, que se preparam para ser avassaladoras para o país. E os efeitos da falta solidariedade europeia na última crise migratória, deixando os italianos com a batata quente na mão – com especial obstinação egoísta dos aliados europeus da senhora Meloni.
Como escrevi na última edição semanal do Expresso, prevendo este resultado, é no ar do tempo, no Zeitgeist político, que nos devemos concentrar para perceber a floresta e não a árvore. A dinâmica criada pelas redes sociais e por um tempo em que o mercado da atenção vale mais do que o mercado da credibilidade no jornalismo terão cumprindo o seu papel numa polarização que não é apenas política. Mas o dado que não podemos esquecer é este: nas democracias ocidentais, a desigualdade atingiu, desde 2008, níveis que só conheceu em 1929. E é a desigualdade que deslaça a comunidade e torna a democracia inviável.
É neste cenário que a responsabilidade maior pelo crescimento da extrema-direita, por demissão, é da esquerda. Ao que parece, tal como Emmanuel Macron, o Partido Democrata acreditou que bastava gritar que aí vinha o fascismo para os eleitores não votarem em Meloni. O centro-esquerda continua a acreditar que se for a última fronteira do cordão sanitário à extrema-direita manterá na sua mão um seguro de vida. Não. Esse seguro de vida caducou. Porque ele, sem mais, esvazia de proposta política a alternativa à direita refém de neofascistas e aparentados.
O que a esquerda italiana tem de se perguntar é como vale hoje 26%, e o Partido Democrático 20% (perdeu 2 pontos percentuais e, apesar de ter o dobro de Salvini, fica com menos deputados, no absurdo sistema eleitoral italiano). Como aconteceu isto a uma das mais poderosas e vibrantes esquerdas da Europa, que hoje inclui democratas-cristãos e vale menos do que valeram os comunistas? Podemos, claro, contar com o Movimento 5 Estrelas, que até apresentou um programa à esquerda do PD. Mas falta-lhe consistência para tanto.
O centro-esquerda até subiu 3,5 pontos em relação ás últimas eleições e, se Renzi não tivesse ido separado – ou mesmo o 5 estrelas –, teria muito mais deputados para governar num sistema que favorece muito quem fica em primeiro. Mas a descaracterização de um partido feito da amalgama do antigo PCI, democratas-cristãos e neoliberais nunca permitiu que escolhesse entre a social-democracia e o neoliberalismo. O PD é feito dos restos, incapaz de mobilizar em torno de tão pouco atrativa gelatina os seus próprios eleitores, que vão ficando em casa por sentirem que já não contam na luta eleitoral. Dedicam-se mais à luta cívica.
Fala-se de uma refundação do Partido Democrata (já vai em quantas?) e de ter como líder Elly Schlein, uma italo-americana de 37 anos, claramente mais à esquerda. Não sei. Sei que se continuar a ser mera gestora de crises cada vez mais frequentes, com sucessivas transferências de rendimento de baixo para cima, de pouco servirá qualquer refundação ou mudança de líder.
Não basta o medo fascismo. Não chega lamentar que os “deploráveis” de Hillary Clinton estejam zangados por serem os derrotados da “tirania do mérito” (como lhe chama Michael J. Sandel). Perante as primeiras gerações que sabem que viverão pior do que os seus pais, é preciso saber que a desesperança é tão perigosa para os governos democráticos europeus como para a teocracia iraniana.
A esquerda precisa recuperar radicalidade (que não é o mesmo que extremismo). De fazer o oposto da pornográfico proposta de Liz Truss, que, mostrando como o neoliberalismo está cada vez mais descarado, quer endividar o país para ajudar ricos, porque o que é bom para eles é bom para todos (voltarei ao tema). Com o mesmo descaramento, mas ao contrário, a esquerda tem de propor uma forte redistribuição da riqueza para salvar democracia.
A questão é se, nas regras europeias, ainda há espaço para a social-democracia. Se a resposta for negativa, talvez se perceba porque é que o crescimento da extrema-direita é inevitável. O remédio contra ela, que resultou noutros tempos, foi retirado do mercado.»
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