Crónica de Diana Andringa, ontem, na Antena 1:
Logo de manhã, oiço na rádio que cinco autocarros foram incendiados numa favela do norte do Rio de Janeiro, depois da morte de um jovem de 17 anos, baleado pela polícia, no decurso de uma acção policial contra o narcotráfico. Segundo a polícia militar, o jovem encontrava-se armado, num carro roubado e estaria ligado ao tráfico de droga naquela favela.
Sei que o último acontecimento é aquele que se privilegia na notícia e que esse foi a queima dos cinco autocarros. Mas não consigo deixar de me perguntar se a recepção não seria diferente se, por hipótese, fosse a morte do jovem a destacar-se: «Jovem de 17 anos morto pela Polícia numa favela do Rio de Janeiro. Como forma de protesto, cinco autocarros foram queimados pela população».
É a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa. É o dar maior importância àquilo que é importante, a vida de um jovem de 17 anos – mesmo que, por hipótese, a Polícia Militar fale verdade e seja um delinquente – e não aos bens que, ao contrário desse jovem, podem ser substituídos. É, entre a propriedade e a vida, escolher a vida.
«Mesmo que a Polícia Militar falasse verdade», disse. Permito-me desconfiar das autoridades? Sim. Sei que passaram 40 anos sobre o 25 de Abril, mas não me fazem esquecer que polícias e procuradores e juízes puderam, durante anos, subscrever informações falsas. Há muitos anos, um grande jornalista brasileiro, Caco Barcelos, teve a coragem de analisar centenas de mortes de jovens brasileiros que, segundo a polícia de S. Paulo, eram delinquentes e tinham sido mortos por disparar contra a polícia. Encontrou muitos e muitos casos em que os jovens não tinham cadastro e tinham sido mortos com tiros na nuca. Os carros ditos roubados eram, por vezes, dos seus pais, que tinham permitido que os guiassem. Tendo lido o livro – por sinal disponível na net, Rota 66 , Rota meia-meia – a dúvida metódica parece-me de rigor.
De rigor parecer-me-ia também, que, um dia, contabilizássemos sem pudor as vítimas das muitas guerras ditas contra o narcotráfico e as comparássemos com as vítimas das drogas traficadas. E que pensássemos, seriamente, se não estaríamos a repetir os erros da lei seca – sobre cuja bondade tantos livros e filmes nos deixaram sem ilusões – e se não seria mais sensato pôr-lhe fim, retirando aos traficantes o controlo do comércio.
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