Só recentemente se começaram a reconhecer de um modo sistemático as formas da oposição ao salazarismo organizadas à margem da actividade do Partido Comunista ou dos seus aliados tácticos e companheiros de jornada. A capacidade de organização e a tenacidade combativa dos comunistas, associadas às consequências da demonização que deles fazia o regime anterior, contribuíram em larga medida para fazer passar à condição de figurantes as outras formas e os outros espaços de resistência. Sem questionar a importância decisiva do PCP no combate contra a ditadura, é preciso reconhecer que se encontra ainda por estudar, por exemplo, a definição de uma «oposição cultural» crescentemente alargada e diversificada ao longo dos últimos vinte anos do Estado Novo, capaz de definir vivências e imaginários alternativos traduzíveis numa desafectação crescente de parte importante da juventude universitária e urbana, dos sectores artísticos e intelectuais e de muitos elementos das profissões liberais e da classe média. Por sua vez, a dissidência individual, inevitavelmente menos notória, permanece em larga medida por reconhecer, se exceptuarmos referências pontuais surgidas neste ou naquele obituário, ou então em homenagens públicas mais ou menos tardias.
Os grupos organizados têm também permanecido quase na penumbra. A corrente socialista ainda não possui um estudo detalhado sobre a sua génese e desenvolvimento (um livro de Susana Martins constitui uma primeira tentativa). A esquerda radical só recentemente começou a ser objecto de estudo sistemático (principalmente com José Pacheco Pereira e Miguel Cardina), enquanto a actividade dos sectores católicos de oposição, apesar de recorrentemente mencionados e hoje publicamente «representados» na intensa acção cívica de muitos dos seus antigos activistas, continua por conhecer. Se exceptuarmos alguns textos de António Alçada Baptista e de João Bénard da Costa, a actividade do grupo tem sido recordada apenas em evocações episódicas, por vezes de pendor algo nostálgico, como aconteceu recentemente quando da comemoração dos quarenta anos da fundação da revista O Tempo e o Modo.
Um contributo novo e relevante para alterar este estado de coisas acaba, entretanto, de ser proporcionado por Joana Lopes, autora de Entre as brumas da memória. Os católicos portugueses e a ditadura, publicado pela Ambar. Logo no prefácio, Pedro Tamen chama a atenção para importância do papel histórico desses portugueses que «descobriram, no essencial, que ser católico não implicava apenas endossar um ideal confinado à parede dos templos (…), antes apontava imperativamente para uma intervenção no plano da vida da colectividade». Refere-se Tamen, naturalmente, aos chamados «católicos progressistas» – designação atribuída pela esquerda marxista que a maioria deles, aliás, rejeitava – os quais exprimiam na época uma atitude de crítica às posições conservadoras dominantes na Igreja portuguesa, de expectativa em relação às decisões do Concílio Vaticano II e de gradual distanciamento, em numerosos casos conduzido até à ruptura, em relação ao regime político vigente. Aquilo que Joana Lopes faz neste livro, a partir da sua própria memória e da investigação que a partir dela foi desenvolvendo – regressando aos acontecimentos nos quais participou, aos documentos que tão bem conheceu, a muitas das pessoas com as quais se cruzou –, foi relembrar a actividade intensa e um tanto subavaliada daqueles sectores.
A autora avisa, de início, que considera não ser este um livro de História («não sou historiadora nem pretendo parecê-lo»), mas tratar-se antes de «um livro de histórias e como tal deve ser lido» (p. 18). Não creio que devamos concordar com a sua modéstia. Torna-se evidente, é verdade, que Joana Lopes não produziu um estudo aprofundado e exaustivo de influências e de ideias, tal como não estudou, por exemplo, a articulação dos «católicos progressistas» com outros sectores de opinião, seja no campo da oposição política ao Estado Novo seja no que respeita aos sectores que se mantinham próximos deste. Mas procedeu a um levantamento muito completo das grandes causas e dos momentos centrais da luta, difícil e prolongada, na qual participou. Um trabalho que não se encontrava feito e que passa agora a estar disponível para todos os interessados. Por outro lado, ao assumir o carácter pessoal de muitos dos testemunhos dos quais se serviu, pratica um esforço memorialista que é, cada vez mais, indispensável para o desenvolvimento da nossa história recente. Neste sentido – e integrando também, naquilo que o livro pode oferecer, os importantes documentos transcritos como anexos – oferece-se aqui um conjunto de ferramentas de uma grande utilidade. Joana Lopes pode não ser historiadora, mas este é, sem dúvida, um livro para a História.
Nele se abordam factos e movimentos tão diversos como o lançamento da publicação Direito à Informação (1963-1969), o posicionamento dos católicos portugueses perante a presença de Paulo VI na Índia, na Assembleia-Geral da ONU e em Fátima (1964-1967), a fundação da revista O Tempo e o Modo (1963-1970, a 1ª série), a criação da cooperativa Pragma (1964), o encerramento do Concílio (1965), o lançamento da revista Concilium (1965-1969), a fundação da cooperativa Confronto (1966), a «tomada por dentro» da velha Acção Católica (1966), a participação portuguesa no II Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos (Roma, 1967), o lançamento dos Cadernos Socialistas No. 3 (1967), a comemoração do Dia da Paz (1968), o caso Pe. Felicidade Alves (1968), a criação do grupo de reflexão C43 (1968), a revitalização do Centro Nacional de Cultura (1968-1969), o lançamento da Tribuna Livre (1968-1969), a participação nas listas oposicionistas da CDE e da CEUD (1969) e a publicação dos Cadernos GEDOC (1969-1970). Para além da vasta actividade em colóquios e reuniões de reflexão de um amplo conjunto de padres e de leigos.
A visita de Paulo VI a Fátima é apresentada como um importante ponto de viragem, tendo constituído uma grande desilusão e significando, para muitos, o instante decisivo num processo de ruptura com a Igreja ou mesmo com a sua fé: «Foi estranho ver, a poucos metros de distância, Américo Tomás, Salazar, a irmã Lúcia e o Papa, quando desejávamos tanto que tudo aquilo não estivesse a acontecer, que não passasse de um simples pesadelo.» (p. 56) Neste contexto, o papel desmobilizador, ou mesmo de clara colaboração com a repressão, por parte de diversos responsáveis eclesiásticos, como o cardeal Cerejeira ou o padre Videira Pires, surge aqui como relevante e como um factor que os estudiosos da História da Igreja em Portugal não deveriam de modo algum omitir.
A dada altura, Joana Pires estabelece uma analogia, alargada à evolução experimentada na época abordada no livro pela Igreja Católica, que merece ser sublinhada. Entende que, durante o Concílio, também ela «arriscou uma glasnost, uma abertura à sua maneira», tendo então esboçado «um tímido aggiornamento». Todavia, «travou-o a tempo de não deixar que ele se transformasse em perestroika» (p. 167). A estrutura não cedeu; cederam apenas aqueles que a tinham procurado abanar. Esta perestroika fizeram-na muitos destes católicos já fora dessa Igreja. Alguns deles, reconstruindo a sua utopia nas fileiras de movimentos que, por formas diversas, com diferentes armas, procuravam interpretar uma outra ideia de Redenção. Sabe-o bem Joana Lopes, militante do PRP/BR quando chegou a madrugada do 25 de Abril.
Joana Lopes (2007), Entre as brumas da memória. Os católicos portugueses e a ditadura. Porto: Ambar. Prefácio de Pedro Tamen. 248 pp. [ISBN: 978-972-43-1203-3]