2.7.22

Transportes noutros mundos (5)

 


Passear pelos meandros do Rio Yangtzé, a caminho da barragem Three Gorges. China (2004).
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E a Nazaré aqui tão perto

 

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Não sabe o que é o nó górdio? Se não sabe devia saber

 


«Ele há dias, em bom rigor cada vez mais dias, em que o meu interesse pela política corrente portuguesa, se não é nulo, é quase nulo. Não é uma atitude aconselhável, porque o desinteresse pela coisa pública não é uma atitude cívica que se deva ter, mas não consigo, pura e simplesmente não consigo, passar o dia a ouvir e a ler sobre as trapalhadas entre António Costa e Pedro Nuno Santos, ou sobre a tragédia da menina Jessica, ou sobre as “contingências” na saúde, ou as ciclópicas tarefas do novo líder do PSD. No entanto, em todas estas histórias há aspectos relevantes, seja a qualidade da acção governativa, seja o retrato da miséria física e moral do mundo da pobreza e a sua implícita violência, seja o conflito larvar entre corporações poderosas, interesses privados e, de novo, a incompetência da governação, ou sobre o dilema entre uma oposição dos decibéis ou uma oposição reformista num país demasiado pequeno e atrasado para poder ultrapassar os interesses instalados.

De novo, insisto, tudo isto é relevante e não merece indiferença, mas… a pasta informativa que nos é servida todos os dias transforma-o numa espécie de puré de batata, ou melhor num puré de maçã adornado por frutos vermelhos e uma pétala ou uma pequena flor por cima, como um pastiche da pseudo-comida francesa que por aí se come. E quando não é só isso, no meio do puré está um fio de veneno, com a crescente politização escondida da informação, que torna mais saudável ler o Abril, Abril, um site informativo do PCP que não engana ninguém, do que a mais sofisticada e profissional manipulação da Rádio Observador pelas manhãs. Isto para quem não seja seguidor de Mitridates do Ponto, como eu sou há muito tempo, e corra o risco de se envenenar mesmo a sério.

A culpa é dos jornalistas? Já foi mais do que o que é, porque, entretanto, o turnover geracional político e jornalístico criou uma espécie de simbiose no pensar, no falar, no viver entre os jovens políticos e jornalistas - jovem aqui segue o critério do Konsomol - que cada vez são mais parecidos na visão do mundo, no vocabulário, no modo de viver entre si, na frequência de lugares, de restaurantes, de leituras, de “sítios”, do que vêem na televisão e ouvem na rádio, que se entendem como quem respira. É uma coisa que se tem vindo a desenvolver nos últimos anos, uma comunidade de vida e cultura, uma redução da política a critérios mediáticos, uma espécie de contínuo entre a má política e o mau jornalismo feito de uma atenção quase obsessiva às chamadas “redes sociais”, de uma redução da complexidade a favor de um simplismo redutor, de uma pobreza vocabular de que resulta numa incapacidade expressiva e, por isso mesmo, ou uma brutalidade argumentativa ou uma sucessão de lugares comuns, muito pouco estudo e uma dose exagerada de comentários e debates televisivos.

Todos os rodriguinhos dos nossos tempos são absorvidos, quer como aspirações, quer como tabus, com um medo pânico e um não-pensar em relação às matérias proibidas, seja o racismo, seja a homofobia, seja a condição feminina, seja, noutra área de “negócios”, a interiorização da economia da troika, a começar pelo PS. A indiferença face aos estragos feitos à língua portuguesa pelo Acordo Ortográfico, que só subsiste pela inércia cultural da ignorância, é mais difícil de mudar do que pôr-nos a todos a dizer “todes” para sermos politicamente correctos.

Viver vidas a sério, ou seja as que têm dificuldades e escolhas, não garante experiência, mas as vidas de plástico aproximam-se muito do mundo imbecil das/dos influenciadores das revistas do jetset. Esperem para chegar a praia e vão ver como é. Ler muito também não garante nem qualidade nem razão, mas ler pouco garante muita ignorância e, para quem vive num mundo com uma forte componente explícita de símbolos e escondida de interesses, resulta num modus operandi de rotina e incompetência e de serviço aos glutões que por aí andam e comem estes políticos e jornalistas ao pequeno-almoço.

Dizer isto é elitismo e sobranceria? Talvez. Mas tenho por mim a memória de José Medeiros Ferreira e um seu momento numa entrevista em que falou do “nó górdio”, e a jornalista perguntou-lhe o que era. Medeiros Ferreira irritou-se e respondeu: “Se não sabe devia saber”.»

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1.7.22

Transportes noutros mundos (4)

 


Praça de táxis (de que fui cliente) em Mingun, Birmânia (2009).
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Já foi assim - e chegava

 

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Salgueiro Maia

 


Seriam 78, hoje.

Reavivar a memória: antes de rumar a Lisboa, na madrugada de 25 de Abril de 74, na parada da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, dirigiu estas palavras a 240 soldados:

«Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!»
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Agasalha-te, cidadão

 

João Fazenda

«Quando o Presidente da República disse que, nos próximos meses, “cada qual fará o esforço para não estar doente”, fui obrigado a reflectir e concluí, com vergonha, que nunca antes fiz esse esforço. Tenho vivido de forma inconsciente, sem me empenhar para não adoecer — e por isso tenho tido, como é evidente, algumas doenças. A culpa não é só minha. A ciência, estranhamente, tem dirigido a sua atenção para a cura de doenças, quando seria mais fácil e barato lembrar às pessoas que devem fazer um esforço diário para não adoecer. Se todos fizessem esse esforço, o SNS funcionaria muito melhor, ocupado apenas com os preguiçosos que não se esforçam o suficiente. Alguns levam o desleixo tão longe que até acabam por morrer, o que não deixa de ser justo. Eu tenho padecido de algumas maleitas, e até já fui submetido a operações cirúrgicas mais de uma vez, só para se ter uma ideia do meu desmazelo. Talvez não seja justo, aliás, usar o verbo padecer. Provoquei algumas maleitas, assim é que é. Quando era pequeno, não me esforcei o suficiente para evitar o sarampo, a papeira e a escarlatina. Mas a idade adulta, curiosamente, não dá a ninguém a maturidade suficiente para aperfeiçoar o esforço para evitar doenças. Tenho reparado que os idosos, uma faixa da população com idade para ter juízo, são dos que menos esforço fazem para não adoecer.

Algumas pessoas ficaram exaltadas com as declarações do Presidente, em clara desobediência a essas mesmas declarações. Marcelo pede a todos um esforço para evitar adoecer e imediatamente há gente que fica apopléctica. Mania de contrariar. Para mim, as declarações do Presidente pecam por defeito. Os cidadãos, querendo, podem contribuir para não sobrecarregar outros serviços do Estado. Além de se esforçarem para não adoecer, os portugueses podem fazer outros esforços úteis. Por exemplo, se as crianças fizerem um esforço para se instruir, precisaremos de menos escolas. E se os cidadãos fizerem um esforço para não litigar, acabam-se os atrasos na justiça. O português ideal não precisa de ir à escola, nem ao hospital, nem ao tribunal. Na verdade, o português ideal é um português defunto. Quando pomos os nossos compatriotas no Panteão, não estamos bem a homenageá-los pelo que fizeram quando estavam vivos. Estamos a agradecer-lhes por terem deixado de sobrecarregar os serviços públicos, falecendo. Esse é o seu principal mérito.»

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30.6.22

Transportes noutros mundos (3)

 


Estacionamento de bicicletas em frente da principal estação de comboios de Amsterdão, Países Baixos (2017).
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Hoje é o dia

 

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Um comunicado para a (pequena) História

 



«O Primeiro-Ministro determinou ao Ministro das Infraestruturas e da Habitação a revogação do Despacho ontem publicado sobre o Plano de Ampliação da Capacidade Aeroportuária da Região de Lisboa.

O Primeiro-Ministro reafirma que a solução tem de ser negociada e consensualizada com a oposição, em particular com o principal partido da oposição e, em circunstância alguma, sem a devida informação prévia ao senhor Presidente da República.

Compete ao Primeiro-Ministro garantir a unidade, credibilidade e colegialidade da ação governativa.

O Primeiro-Ministro procederá, assim que seja possível, à audição do líder do PSD que iniciará funções este fim-de-semana, para definir o procedimento adequado a uma decisão nacional, política, técnica, ambiental e economicamente sustentada.»
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O Governo transformado numa associação de estudantes

 


«O anúncio da nova solução para o aeroporto de Lisboa foi uma das maiores surpresas políticas das últimas semanas, mas só conservou esse estatuto durante parcas horas. Nesta manhã de quinta-feira, uma nota do primeiro-ministro demoliu essa mesmíssima solução e elevou a surpresa para a categoria do espanto. O faz e desfaz do aeroporto não é coisa pouca, custa a acreditar. Em causa está uma obra estratégica. Logo, o que se passou é sinal de que algo profundamente errado se passa no Governo de António Costa. Pode ser descoordenação, pode ser excesso de voluntarismo, pode ser uma falha de comunicação, mas, podendo ser isso tudo, é também a demonstração que a guerra larvar de facções no seio do PS está viva e consegue expor o Governo ao ridículo.

Todas as organizações têm falhas, mas anunciar a solução para a maior obra pública em muitas décadas num dia para a travar no dia seguinte é muito mais do que isso: é um sinal de tumulto no seio do Governo entre os seus dois homens politicamente mais fortes. Pedro Nuno Santos só poderia ter revelado num despacho oficial uma solução que contrariava tudo o que o primeiro-ministro tinha dito sobre a opção Montijo/Alcochete se essa solução política fosse discutida e aprovada por António Costa. Sabemos agora que ou não foi ou foi essa discussão foi de tal forma ambígua que o primeiro-ministro teve de a desfazer em público. Em todos os casos, é impossível não ver nesta contradição uma competição de testosterona.

O que a nota assinada pelo gabinete de António Costa nos diz é que Pedro Nuno Santos exorbitou das suas competências, que decidiu a sorte da obra à revelia do primeiro-ministro, que avançou contrariando a estratégia política de envolver o PSD e de avisar o Presidente. Ao fazê-lo, Pedro Nuno Santos pôs em causa a “unidade, credibilidade e colegialidade da acção governativa”, como se pode ler na nota para que fique clara a repreensão e a culpa do ministro. Perante esta sova política feita em público, Pedro Nuno Santos só tem um caminho, que de resto António Costa lhe traçou: ou demitir-se do Governo ou ser demitido.

Ainda assim, temos de esperar pelas suas explicações para que se possa dispor de uma visão integral do mais grave incidente político de todos os governos de António Costa. Pedro Nuno Santos é arrojado, voluntarista e determinado, um político que gosta mais de agir do que conversar. Mas não é tonto nem tem défice de inteligência. É corajoso, mas já deu provas de dispor de sentido estratégico. Custa a perceber o que o levaria a avançar com uma solução para o aeroporto sem ter tudo combinado com Costa. Se fosse a compra de uma locomotiva, percebia-se a ausência do primeiro-ministro no processo de decisão. Agora, um aeroporto para a capital?

Faltando ainda muito por se esclarecer, o que já se sabe deixa marcas indeléveis no Governo. Aos sinais de cansaço, de desinspiração, de um vago imobilismo, da preocupação com a propaganda e uma total ausência de vontade de atacar as causas dos problemas junta-se agora um incidente gravíssimo que põe em causa a credibilidade e a coesão do Governo. Os episódios suspeitos de deslealdade, traição ou desrespeito pelo conselho só prosperam em ambientes fétidos.

Aconteça o que acontecer, a sequência dos factos permite desde já prever quem ganha, se é que se pode falar de vitória neste conflito digno das eleições académicas, e quem perde. António Costa mostra quem manda e não se coíbe de pôr o seu maior rival no partido na linha; Pedro Nuno Santos poderá ter delapidado boa parte do seu capital político. Mas não o seu futuro, porque é novo e um dia António Costa mudará de vida.»

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29.6.22

Transportes noutros mundos (2)

 


Os autocarros guatemaltecos são um festival de cores! Antígua, Guatemala (2014).
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Quando se partilham títulos sem ler o resto morre um bebé coala na Austrália

 


Não é só o Expresso: vários jornais, que vi até agora, optaram por títulos que falseiam o sentido da afirmação de Marcelo. Direitolas e feministas da 25ª hora, que só lêem «as gordas» partilhadas nas redes sociais, rasgam as vestes quando, desta vez, o homem parafraseou uma frase mais do que batida e certeira.

O que Marcelo terá dito (e cito o próprio Expresso) foi isto: “Está a melhorar, de facto está, mas verdadeiramente eu costumava dizer o seguinte: só haverá verdadeiramente igualdade entre homens e mulheres, quando chegar aos mais altos postos uma mulher tão incompetente como chega em vários casos, em inúmeros casos, aos mais altos postos, um homem”.

Daqui.
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José Manuel Tengarrinha

 


Partiu há 4 anos.

A ler: Uma noite, uma vida
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Jéssica: não é mau jornalismo, é um ataque ao jornalismo

 


«Nunca acompanho pelas televisões casos como os de Jéssica. Quando envolve crianças, sei que virá manipulação emocional e o que sinto perante a barbaridade chega-me para não precisar de ser entretido por ela. Prefiro acompanhar pela imprensa, que me dá mais informação útil. Assim, só os protestos de várias deputadas e queixas à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) me levaram a ir à box para ver, por dever de ofício, aquilo que a maioria dos portugueses viu.

Até ao momento do velório foi o costume. Acusações de anónimos à mãe da criança – uma vizinha não identificada até explicava que não tinha a certeza do que dizia e que seria bom esperar pelo bom trabalho da PJ, mostrando mais bom senso do que quem a entrevistava. Julgamentos feitos com base em quase nada. Imagens de protestos de “populares” que, quando se indignam com qualquer abuso que veem na televisão, fazem à porta do tribunal o que se esquecem de fazer com a violência que acontece ao lado de sua casa. Jornalismo instantâneo, que finge não saber que há uma diferença entre investigar com cuidado, rigor e critério e recolher depoimentos dispersos para os transmitir, no próprio dia, na televisão. Até ouvi Marcelo Rebelo de Sousa comentar o caso, pedindo que se tirem lições daquilo de que tão pouco se sabe com certezas.

Ouvi as críticas lestas à CPCJ, que recebeu 40 mil queixas num ano e acompanha 70 mil casos. Não vou comentar o caso concreto, porque não padeço dessa pressa de julgar para aliviar a dor de alma que sinto. Mas este tipo de pressão, que acerta no totobola à segunda-feira, tem levado os serviços sociais de alguns países a adotar políticas defensivas que retiram os filhos aos pais ao mínimo sinal, criando um clima de terror nas famílias mais pobres, que têm menos defesas perante a cegueira das máquinas burocráticas quando preferem errar por excesso.

Aconselho, para quem queira, o filme “Listen”. Tudo é mais complicado do que o julgamento fácil depois das coisas acontecerem. Às vezes a escolha é afastar uma criança dos pais, causando traumas profundos, ou deixá-las com eles, causando traumas profundos. Com poucos meios, num Estado orgulhosamente minguado, mais difícil ainda. Veremos, no fim, o que falhou. E julgue-se então.

Mas foi quando cheguei aos telejornais do dia do velório, já exausto de tanto voyeurismo vazio de jornalismo, que percebi porque é que os protestos tinham sido mais claros do que o habitual. Aquilo que me indignou em 2016, quando um programa da manhã da CMTV acompanhou o velório de Samira, uma criança de 4 anos, tinha-se tornado o novo normal entre jornalistas. Todos os telejornais, com a honrosa exceção da RTP, se plantaram à porta de uma igreja para transmitir, em direto e sem filtro, o momento mais íntimo e privado de uma família. Vários transmitiram, em “loop”, imagens de explosões emocionais de uma avó. Para quem não tenha percebido, não há qualquer relevância informativa num velório de uma criança. É entretenimento macabro, apenas.

A CMTV vai sempre mais longe, já se sabe. Mas é só o líder do pelotão. Num exercício pornográfico de desrespeito pelos mais básicos direitos das pessoas, incluindo o direito à imagem, a cena da avó foi repetida com música de fundo e uma narração totalmente vazia de conteúdo informativo, mas carregada de adjetivos hipocritamente. Quando a tragédia é um produto, não estamos perante jornalismo. É outra coisa, que pode ser feita por qualquer pessoa. Pela Maya e pelo Nuno Graciano, por exemplo. Na realidade, só não podem ser feitas por jornalistas, que têm um código deontológico a cumprir.

Mas a CMTV não esteve sozinha no cerco a outra avó, quando esta saía, em choque, de casa, a caminho de velório, e era psicologicamente torturada e inquirida sobre os seus possíveis arrependimentos por uma horda de jornalistas. Excitados pela adrenalina do direto, foram incapazes de perceber até que ponto degradavam uma das mais nobres profissões.

Apesar do voyeurismo ser transversal nas suas vítimas, e até ter uma especial apetência por “famosos” – sobretudo os que aceitam entrar na perigosa carreira do exibicionismo da vida privada –, as coisas vão sempre mais longe quando chegam à porta dos mais pobres, sem qualquer defesa perante a máquina comercial do entretenimento da “vida real” que se trasveste de jornalismo. Não é jornalismo, e por isso não devia ter direito à proteção que damos à função de informar. Para ter direitos é preciso ter deveres - e está na altura de começarmos a fazer este debate a sério. Começando por quem trabalha no meio.

Neste tema, não há muito que enganar. Está tudo no código deontológico dos jornalistas:

“O jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.”

“O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas.”

“O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende.”

“O jornalista deve combater e a censura e o sensacionalismo”.

No meio da orgia de exploração dos mais fracos, uma das suas principais promotoras (seria injusto para todos os que fizeram iguais figuras nomeá-la) disse que, e cito de cor, “este é o momento de Jéssica, que deixem ao menos que ela tenha este momento de paz”. Disse-o em frente à porta da igreja, onde decorria o velório que profanava. Ao mesmo tempo, condenava o Tribunal de Menores, a CPCJ, a segurança social. Se a função do jornalista fosse julgar, faltaria autoridade a todos os que se prestaram a isto. Se estivessem no lugar de qualquer um dos responsáveis que tenha falhado, também falhariam, como falham na sua função de informar.

São os jornalistas que têm de pôr fim a este contínuo atentado aos direitos de cidadania levado a cabo em nome de um negócio que instrumentaliza o jornalismo para funções que não são as suas. A transformação desta profissão numa forma de lucrar com a dor dos mais desprotegidos está a tornar o jornalismo numa atividade degenerada, vergonhosa e rasteira. Não é mau jornalismo, é um ataque ao jornalismo. Que, por atentar contra outros direitos essenciais dos cidadãos, põe em risco a defesa da liberdade de imprensa.»

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28.6.22

Transportes noutros mundos (1)

 


Fiordes vistos do 15º andar de um navio. 
Doubtful Sound. Nova Zelândia (2017).
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Isto vai, camaradas

 


Ontem descobri a Anitta, hoje já fiquei a saber que existe a Prozis e que vai por lá uma tempestade que mete fuga de influencers e outros dramas. Que seria de mim sem as redes sociais!

O tempo nunca mais aquece para começarmos a ter reportagens sobre intoxicações com bacalhau à Brás.
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Do passado

 


(Não é tanto o passado que entristece, é o que acabou.)
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Encontrar os culpados

 


«Quando as coisas não correm bem, precisamos de encontrar culpados. Temos muito para onde nos virar agora. O mundo está profícuo em más notícias e na própria banalização do mal.

É um processo normalmente pouco isento. Cada um encontra os culpados que mais convêm à sua visão do mundo e, já agora, os que mais lhes convêm pessoalmente. Li há pouco que Pedro Sánchez, presidente do Governo da Espanha, perante a tragédia que matou 37 emigrantes em Melilla, afirmou que os culpados são os grupos/máfias que se dedicam ao tráfico humano.

É certo que estes têm responsabilidades. Mas é ofensivo elogiar as autoridades espanholas e marroquinas, condenando apenas a atuação destas máfias. Fica o assunto encerrado. Pois que fique em paz quem se conforma com essa análise de um problema que parece irresolúvel e que vai continuar a matar pessoas. Pessoas que estão mesmo dispostas a morrer para tentar uma vida melhor.

Para termos uma ideia do nível de sofrimento em que vivem, basta pensar nos riscos que estão dispostas a correr, muitas vezes trazendo consigo crianças. Apesar de não serem tratadas dessa forma, são pessoas iguais a nós; que amam igualmente os seus filhos. O que nos faria iniciar uma viagem com um filho nos braços, sabendo que não conseguíamos garantir a sua segurança?

A primeira vez que ouvi falar neste assunto foi numa conferência do Gonçalo Ribeiro Telles há quase vinte anos. O GRT previu o que temos vindo a assistir. Dizia que o nosso egoísmo nos impedia de ver a situação de miséria extrema em que viviam milhões de pessoas e que, mesmo que não fosse pelas razões altruístas de as querermos ajudar, devíamos fazê-lo pelas egoístas: é que um dia viriam em debandada para a Europa e o Mediterrâneo seria um cemitério se não os deixássemos entrar. Nisto tinha razão.

Temos à porta um cemitério. Podemos sacudir a água do capote, encontrar uns culpados que não nos comprometam e que nos excluam do problema. Mas a morte vai continuar.

O papel das autoridades marroquinas e espanholas não pode ser elogiado. Têm em mãos um problema que ninguém queria ter mas a vida é assim: irredutível. Não vai passar. Não se adivinham soluções fáceis e instantâneas, mas ninguém pode compactuar com a forma como isto está a ser gerido. O que estas autoridades estão a fazer envergonha-nos. E mata vidas, vidas que como todas as outras, têm o mesmo valor que as nossas.

E isto deve ser perguntado: será que a maioria dos portugueses reconhece na vida daquelas pessoas o mesmo valor que nas suas? Será que sabem que aquelas crianças são iguais às nossas? Porque somos tolerantes com esta chacina?

GRT dizia que a solução era ajudar as pessoas nos seus países de origem. Na altura, e antes de todos os conflitos que viemos a conhecer, preocupavam-no as dificuldades que tinham com a escassez de água e a ausência de desenvolvimento nas técnicas agrícolas. Também Angela Merkel, que revelou alguma coragem e humanidade na forma como lidou com o problema dos refugiados, falou na importância de melhorar as condições de vida destas pessoas mais perto dos seus países de origem. E acolheu muitos.

Escolho duas pessoas com as quais não me identifico politicamente. Ribeiro Telles foi também um grande ambientalista, talvez o maior, contrariando a ideia de que o verdadeiro ambientalismo só pode vir da esquerda. Lá está; devemos ser justos. E devemos ter essa preocupação acrescida quando as coisas não estão a correr bem. É impossível viver bem num mundo onde pessoas desesperadas morrem como tordos.

A União Europeia tem sido desastrosa em todas as intervenções que fez nestes países. Mesmo quando segue esta corrente de pensamento. A relação de desigualdade que está sempre implícita não ajuda. O Regulamento de Dublin marcou o princípio da não reciprocidade que caracteriza as relações entre os europeus e estes cidadãos. Somos todos cúmplices desta hipocrisia.

Certo é que é vergonhoso o que aconteceu e vergonhosas são também as palavras de Pedro Sánchez. Não vou dizer que é ele o culpado. De culpados estamos nós cheios. Escrevo quando também dos Estados Unidos chegam notícias miseráveis. E novamente neste caso os culpados amontoam-se: até a esquerda ativista, que não se conseguiu decidir entre Trump e Hillary, veio à berlinda. As pessoas ficam mais descansadas quando encontram causas para as coisas e culpados. É pena que não se deem muito ao trabalho nessa averiguação. É também graças a estes simplismos que o mundo não melhora.»

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27.6.22

Mas também há vírgulas assassinas

 

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Lorca

 

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Anita só há uma!

 


E só com um «t».
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O que estará Deus a pensar?

 


«O mundo está a ficar muito perigoso. Estão de volta os nacionalismos, muitos deles a reclamar o regresso de fronteiras que tínhamos esquecido, e está de volta a intolerância religiosa, alimentada por uma ignorância que é pasto para os fanáticos nas redes sociais e na vida real. A liberdade de decidir sobre a própria vida e o próprio corpo, até nos aspetos em que essas decisões em nada implicam com a vida dos outros, está a ser posta em causa pelos que não são capazes sequer de distinguir um direito de uma obrigação.

Talvez fosse bom começar por aí. O direito de duas pessoas do mesmo sexo casarem não obriga todos os homossexuais a casar. Nem sequer obriga ninguém a ir ao casamento, caso seja convidado. O direito à eutanásia não obriga todas as pessoas a optarem pelo suicídio medicamente assistido quando adoecem gravemente na velhice. O direito das pessoas transgénero assumirem uma identidade de género diferente do sexo com que nasceram não as obriga a mudar de sexo. O direito de todas as mulheres, em determinadas circunstâncias, interromperem voluntariamente a gravidez, não as obriga a abortar em nenhuma circunstância. Os que não são capazes de distinguir as coisas mais básicas, julgam-se capazes de decidir em nome de todos e fazem-no, tantas vezes, em nome de Deus. Estando certos de que Ele existe, arrogam-se o direito de garantir que Ele quer o que eles querem, mesmo quando o que eles querem faz dele um Deus violento, desumano e, portanto, desaconselhável.

Vejamos um exemplo flagrante de desconexão entre as criaturas e o criador. O direito a interromper a gravidez quando ela acontece fruto de uma violação não obriga todas as mulheres violadas a abortar. Mesmo nesta circunstância hedionda, as mulheres têm o direito de levar a gravidez até ao fim se esse for o seu desejo. Querer obrigar alguém a prolongar a gravidez nestas circunstâncias, como tentou fazer uma juíza no Brasil com uma criança de 11 anos ou querem fazer dirigentes políticos em vários Estados na América, é inaceitável. O que estará Deus a pensar destes crentes, nesta altura? Ninguém tem a resposta, mas eu arrisco dizer que não foi para esta gente que Ele desenhou o paraíso.

É provável que Deus esteja descrente nos seus crentes, divididos pelos profetas em que acreditam, criando a partir daí diferentes religiões monoteístas, onde ao longo dos séculos os homens se tornaram mais importantes que o Deus em que acreditam e, por isso, se subordinam a diferentes chefias. Foi pelos homens e nunca por Deus que os cristãos se dividiram em protestantes, ortodoxos e católicos, ou os muçulmanos distinguem entre xiitas e sunitas. E é em nome de religiões lideradas toda a vida por homens e que sempre trataram mal as mulheres, e que as remeteram para papéis secundários e submissos, que insistem em querer decidir o que elas podem ou não podem fazer com o seu corpo. O que estará Deus a pensar desta gente?»

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26.6.22

Salvador Allende nasceu num 26 de Junho

 


… há 114 anos.

O seu último discurso:



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25.06.1903 – George Orwell

 


George Orwell (pseudónimo de Eric Arthur Blair) faria hoje 119 anos. Nasceu em Motihari, nas Índias Orientais, onde ninguém deixa de reivindicar o facto quando a voz corrente o considera oriundo de Myanmar – reivindicação que ouvi mais de uma vez, quando andei por lá perto, a caminho do Butão. Mas, de facto, foi só em 1922 que Orwell chegou a Mandalay, em Burma, para frequentar a escola que o tornaria membro da Polícia Imperial Indiana naquela então colónia britânica. Manteve-se nessa função até 1927, ano em que contraiu dengue e regressou a Inglaterra.

Mais conhecida é o resto da vida que se seguiu como escritor, a participação na resistência durante a Guerra Civil de Espanha e a morte por tuberculose, em Londres, com 46 anos.

Uma citação bem actual, entre muitas possíveis:

«Uma sociedade torna-se totalitária quando a respectiva estrutura se torna manifestamente artificial, isto é, quando a respectiva classe dirigente perdeu a sua função mas consegue manter-se agarrada ao poder pela força ou pelo embuste. Uma sociedade assim, por muito tempo que persista, nunca pode dar-se ao luxo de se tornar tolerante ou intelectualmente estável. (…) Porém, para sermos corrompidos pelo totalitarismo, não é obrigatório que vivamos num país totalitário.» (Livros & Cigarros)

Uma curta entrevista:


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Maria Velho da Costa

 


Chegaria hoje aos 84.
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Pela sua saúde, fique em casa

 


«Ao ouvirmos determinadas coisas da boca de alguns agentes políticos ficamos com aquela sensação de torpor típica dos domingos à tarde, em que comemos um pouco mais e acabamos por ficar menos reativos. A semana que passou foi pródiga em momentos anestesiantes e inconsequentes. Começámos por ouvir a ministra da Saúde (há quatro anos no cargo) a anunciar, com pompa, uma comissão para acompanhar a resposta das urgências de ginecologia e obstetrícia, a abertura a acordos com os setores privado e social (depois da asneirada com o fim das PPP hospitalares) e a revisão da remuneração médica em serviço de urgência. Marta Temido dirigiu-se ao país com solenidade, como se tudo fosse uma enorme surpresa, como se não houvesse, há anos, suficientes sinais sonoros da longa degradação do Serviço Nacional de Saúde. Depois, entrou em cena António Costa, primeiro-ministro de um Governo absoluto que já parece cansado ao fim de três meses de vida. Para segurar a ministra no cargo, mas sobretudo para reconhecer que não considera "aceitáveis estas falhas de serviço". O plateau das evidências foi posteriormente tomado pelo presidente da República, que se manifestou agradado pelo facto de o primeiro-ministro ter reconhecido que "há problemas estruturais, graves, situações inaceitáveis" na Saúde. Porque, acrescentou Marcelo, "o povo vive de uma maneira e os que estão com maiores responsabilidades políticas não veem essa realidade toda".

A semana não terminou sem que a diretora-geral da Saúde tratasse mais uma vez os portugueses como crianças de colo, ao pedir-lhes o enorme favor de não padecerem em agosto, porque esse é o pior mês para "se ter acidentes ou doenças". Durante a apresentação do Programa Juntos por um Verão Seguro, Graça Freitas aconselhou ainda os cidadãos a ligarem o ar condicionado em locais fechados, a beberem água quando está calor e a evitarem o bacalhau à Brás nos piqueniques de família: "É uma coisa pré-feita de manhã, aquece-se, não chega a aquecer e os ovos são uma cultura de salmonela". Não satisfeito, o presidente da República reforçou a mensagem: "Cada qual fará o esforço para não estar doente, por si mesmo, e para não pressionar o cuidado da saúde dos outros". Por isso, já sabe: neste verão, fique em casa. Pela sua saudinha. Portugal regressa em setembro.»

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