«Nunca acompanho pelas televisões casos como os de Jéssica. Quando envolve crianças, sei que virá manipulação emocional e o que sinto perante a barbaridade chega-me para não precisar de ser entretido por ela. Prefiro acompanhar pela imprensa, que me dá mais informação útil. Assim, só os protestos de várias deputadas e queixas à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) me levaram a ir à box para ver, por dever de ofício, aquilo que a maioria dos portugueses viu.
Até ao momento do velório foi o costume. Acusações de anónimos à mãe da criança – uma vizinha não identificada até explicava que não tinha a certeza do que dizia e que seria bom esperar pelo bom trabalho da PJ, mostrando mais bom senso do que quem a entrevistava. Julgamentos feitos com base em quase nada. Imagens de protestos de “populares” que, quando se indignam com qualquer abuso que veem na televisão, fazem à porta do tribunal o que se esquecem de fazer com a violência que acontece ao lado de sua casa. Jornalismo instantâneo, que finge não saber que há uma diferença entre investigar com cuidado, rigor e critério e recolher depoimentos dispersos para os transmitir, no próprio dia, na televisão. Até ouvi Marcelo Rebelo de Sousa comentar o caso, pedindo que se tirem lições daquilo de que tão pouco se sabe com certezas.
Ouvi as críticas lestas à CPCJ, que recebeu 40 mil queixas num ano e acompanha 70 mil casos. Não vou comentar o caso concreto, porque não padeço dessa pressa de julgar para aliviar a dor de alma que sinto. Mas este tipo de pressão, que acerta no totobola à segunda-feira, tem levado os serviços sociais de alguns países a adotar políticas defensivas que retiram os filhos aos pais ao mínimo sinal, criando um clima de terror nas famílias mais pobres, que têm menos defesas perante a cegueira das máquinas burocráticas quando preferem errar por excesso.
Aconselho, para quem queira, o filme “Listen”. Tudo é mais complicado do que o julgamento fácil depois das coisas acontecerem. Às vezes a escolha é afastar uma criança dos pais, causando traumas profundos, ou deixá-las com eles, causando traumas profundos. Com poucos meios, num Estado orgulhosamente minguado, mais difícil ainda. Veremos, no fim, o que falhou. E julgue-se então.
Mas foi quando cheguei aos telejornais do dia do velório, já exausto de tanto voyeurismo vazio de jornalismo, que percebi porque é que os protestos tinham sido mais claros do que o habitual. Aquilo que me indignou em 2016, quando um programa da manhã da CMTV acompanhou o velório de Samira, uma criança de 4 anos, tinha-se tornado o novo normal entre jornalistas. Todos os telejornais, com a honrosa exceção da RTP, se plantaram à porta de uma igreja para transmitir, em direto e sem filtro, o momento mais íntimo e privado de uma família. Vários transmitiram, em “loop”, imagens de explosões emocionais de uma avó. Para quem não tenha percebido, não há qualquer relevância informativa num velório de uma criança. É entretenimento macabro, apenas.
A CMTV vai sempre mais longe, já se sabe. Mas é só o líder do pelotão. Num exercício pornográfico de desrespeito pelos mais básicos direitos das pessoas, incluindo o direito à imagem, a cena da avó foi repetida com música de fundo e uma narração totalmente vazia de conteúdo informativo, mas carregada de adjetivos hipocritamente. Quando a tragédia é um produto, não estamos perante jornalismo. É outra coisa, que pode ser feita por qualquer pessoa. Pela Maya e pelo Nuno Graciano, por exemplo. Na realidade, só não podem ser feitas por jornalistas, que têm um código deontológico a cumprir.
Mas a CMTV não esteve sozinha no cerco a outra avó, quando esta saía, em choque, de casa, a caminho de velório, e era psicologicamente torturada e inquirida sobre os seus possíveis arrependimentos por uma horda de jornalistas. Excitados pela adrenalina do direto, foram incapazes de perceber até que ponto degradavam uma das mais nobres profissões.
Apesar do voyeurismo ser transversal nas suas vítimas, e até ter uma especial apetência por “famosos” – sobretudo os que aceitam entrar na perigosa carreira do exibicionismo da vida privada –, as coisas vão sempre mais longe quando chegam à porta dos mais pobres, sem qualquer defesa perante a máquina comercial do entretenimento da “vida real” que se trasveste de jornalismo. Não é jornalismo, e por isso não devia ter direito à proteção que damos à função de informar. Para ter direitos é preciso ter deveres - e está na altura de começarmos a fazer este debate a sério. Começando por quem trabalha no meio.
Neste tema, não há muito que enganar. Está tudo no código deontológico dos jornalistas:
“O jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.”
“O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade das pessoas envolvidas.”
“O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende.”
“O jornalista deve combater e a censura e o sensacionalismo”.
No meio da orgia de exploração dos mais fracos, uma das suas principais promotoras (seria injusto para todos os que fizeram iguais figuras nomeá-la) disse que, e cito de cor, “este é o momento de Jéssica, que deixem ao menos que ela tenha este momento de paz”. Disse-o em frente à porta da igreja, onde decorria o velório que profanava. Ao mesmo tempo, condenava o Tribunal de Menores, a CPCJ, a segurança social. Se a função do jornalista fosse julgar, faltaria autoridade a todos os que se prestaram a isto. Se estivessem no lugar de qualquer um dos responsáveis que tenha falhado, também falhariam, como falham na sua função de informar.
São os jornalistas que têm de pôr fim a este contínuo atentado aos direitos de cidadania levado a cabo em nome de um negócio que instrumentaliza o jornalismo para funções que não são as suas. A transformação desta profissão numa forma de lucrar com a dor dos mais desprotegidos está a tornar o jornalismo numa atividade degenerada, vergonhosa e rasteira. Não é mau jornalismo, é um ataque ao jornalismo. Que, por atentar contra outros direitos essenciais dos cidadãos, põe em risco a defesa da liberdade de imprensa.»
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