30.6.22

O Governo transformado numa associação de estudantes

 


«O anúncio da nova solução para o aeroporto de Lisboa foi uma das maiores surpresas políticas das últimas semanas, mas só conservou esse estatuto durante parcas horas. Nesta manhã de quinta-feira, uma nota do primeiro-ministro demoliu essa mesmíssima solução e elevou a surpresa para a categoria do espanto. O faz e desfaz do aeroporto não é coisa pouca, custa a acreditar. Em causa está uma obra estratégica. Logo, o que se passou é sinal de que algo profundamente errado se passa no Governo de António Costa. Pode ser descoordenação, pode ser excesso de voluntarismo, pode ser uma falha de comunicação, mas, podendo ser isso tudo, é também a demonstração que a guerra larvar de facções no seio do PS está viva e consegue expor o Governo ao ridículo.

Todas as organizações têm falhas, mas anunciar a solução para a maior obra pública em muitas décadas num dia para a travar no dia seguinte é muito mais do que isso: é um sinal de tumulto no seio do Governo entre os seus dois homens politicamente mais fortes. Pedro Nuno Santos só poderia ter revelado num despacho oficial uma solução que contrariava tudo o que o primeiro-ministro tinha dito sobre a opção Montijo/Alcochete se essa solução política fosse discutida e aprovada por António Costa. Sabemos agora que ou não foi ou foi essa discussão foi de tal forma ambígua que o primeiro-ministro teve de a desfazer em público. Em todos os casos, é impossível não ver nesta contradição uma competição de testosterona.

O que a nota assinada pelo gabinete de António Costa nos diz é que Pedro Nuno Santos exorbitou das suas competências, que decidiu a sorte da obra à revelia do primeiro-ministro, que avançou contrariando a estratégia política de envolver o PSD e de avisar o Presidente. Ao fazê-lo, Pedro Nuno Santos pôs em causa a “unidade, credibilidade e colegialidade da acção governativa”, como se pode ler na nota para que fique clara a repreensão e a culpa do ministro. Perante esta sova política feita em público, Pedro Nuno Santos só tem um caminho, que de resto António Costa lhe traçou: ou demitir-se do Governo ou ser demitido.

Ainda assim, temos de esperar pelas suas explicações para que se possa dispor de uma visão integral do mais grave incidente político de todos os governos de António Costa. Pedro Nuno Santos é arrojado, voluntarista e determinado, um político que gosta mais de agir do que conversar. Mas não é tonto nem tem défice de inteligência. É corajoso, mas já deu provas de dispor de sentido estratégico. Custa a perceber o que o levaria a avançar com uma solução para o aeroporto sem ter tudo combinado com Costa. Se fosse a compra de uma locomotiva, percebia-se a ausência do primeiro-ministro no processo de decisão. Agora, um aeroporto para a capital?

Faltando ainda muito por se esclarecer, o que já se sabe deixa marcas indeléveis no Governo. Aos sinais de cansaço, de desinspiração, de um vago imobilismo, da preocupação com a propaganda e uma total ausência de vontade de atacar as causas dos problemas junta-se agora um incidente gravíssimo que põe em causa a credibilidade e a coesão do Governo. Os episódios suspeitos de deslealdade, traição ou desrespeito pelo conselho só prosperam em ambientes fétidos.

Aconteça o que acontecer, a sequência dos factos permite desde já prever quem ganha, se é que se pode falar de vitória neste conflito digno das eleições académicas, e quem perde. António Costa mostra quem manda e não se coíbe de pôr o seu maior rival no partido na linha; Pedro Nuno Santos poderá ter delapidado boa parte do seu capital político. Mas não o seu futuro, porque é novo e um dia António Costa mudará de vida.»

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