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28.5.22
28.05.1926 – Nunca esquecer
Em 1926, um dia terrível e decisivo na nossa História marcou o fim da 1ª República e esteve na origem do Estado Novo. Todos os anos havia comemorações, mas duas ficaram na memória: as do 10º e as do 40º aniversários.
Ver AQUI porquê (com vídeos).
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Olhem para Portugal, c…!
«Há um problema na actual disputa interna do PSD, que está bem longe de ser exclusivo desse partido, mas que se revela com maior nitidez neste tipo de confrontos. Portugal, o país onde vivem e para onde dirigem a sua acção política, está completamente ausente do seu discurso político. Hesitei antes de escrever “completamente”, mas voltei aos textos, entrevistas, manifestos e outras produções de campanha e perdi as hesitações. Aliás, ainda recentemente numa discussão com Nuno Melo no Princípio da Incerteza tive ocasião de dizer o mesmo a propósito da sua moção programática ao Congresso do CDS escrita em “burocratês”.
A raiz é a mesma: onde é que vão os políticos buscar o seu conhecimento e o seu discurso sobre o país? A quatro fontes, intrinsecamente ligadas entre si, a comunicação social, que é a dominante, a experiência da carreira política intrapartidária, e, em menor grau, a sua experiência profissional, hoje muito dominada, naqueles que têm maior currículo, pela linguagem burocrática europeia, dos planos, directivas, normativas, e, por fim, à sua “escola”, à sua educação. Poderia acrescentar a sua experiência de vida, mas ela é desde muito cedo dominada por aquilo que referi como fontes, e tão artificial fora disso que pouco traz para a acção política.
Felizmente para todos, eles já se formaram num mundo muito mais pacífico, não correram o risco da guerra colonial, nem da prisão ou de andar a receber bastonadas, nem de ser despedido e ficar na miséria, ou ser velho e ficar sem parte da pensão e da reforma, ou de ter que trabalhar nas limpezas às sete da manhã, ou de carregar baldes de cimento, ou estar a apertar uma peça de um carro todo o dia, ou a limpar doentes num hospital, a conduzir um autocarro em Lisboa, ou sequer a ter que dar aulas a adolescentes algures nos subúrbios. Ainda bem que é assim, mas convinha perceber o seu privilégio etário, geracional, social, porque a maioria do país vive assim.
O que é que sobra? O contexto desta situação é, em muitos casos, não em todos, uma vida feita na carreira política, com muitos jornais e quase nenhuns livros, muita televisão e “redes sociais” e objectivamente pouca cultura. Os políticos encontram na comunicação social (e vice-versa para os jornalistas) uma casuística superficial, ao ritmo e ao modo da “novidade” jornalística, que condiciona a “agenda”.
Portugal é um país pobre, pouco desenvolvido, muito inculto, pouco cosmopolita e não me é indiferente que seja assim, e eu prefiro quem o diz com clareza e não anda com a boca cheia de “transições digitais” e outros slogans da treta do “politiquês” actual. Tudo isto é ainda verdade, embora os últimos quase cinquenta anos de democracia tenham melhorado de forma drástica todos estes parâmetros, e tenha havido um progresso muito significativo, a partir de uma situação em que a pobreza era muito maior, o analfabetismo, a mortalidade infantil, o provincianismo e, valor dos valores, em que não havia liberdade e éramos servos de uns senhores muito bem vestidos e bem-falantes (havia excepções) e umas senhoras de cabelo com o colchão do Nicolau Tolentino dentro. Houve uma verdadeira revolução nestes cinquenta anos, mas estamos ainda muito longe de deixarmos de ser pobres, atrasados, incultos e provincianos. E, nalgumas coisas, estamos mesmo a andar para trás, principalmente nos valores da sociabilidade e na cultura.
Não vale a pena estar a falar da evidência da pobreza. Antes das prestações sociais, e mesmo depois, metade dos portugueses é pobre. Mas a pobreza não entra verdadeiramente no discurso político.
Enganados pela jactância da “geração mais bem preparada”, onde se pode fazer um curso universitário sem ler um livro, entregamo-nos a uma dicotomia entre o ensino amável, sem esforço, fofinho e o decorar à bruta coisas em grande parte inúteis e que são esquecidas no mês seguinte. Mas o falhanço da educação não entra verdadeiramente no discurso político.
Mas também andámos para trás. A civilidade diminuiu. O português abastardou-se. Bastaram dois anos de restrições e confinamentos – o que seria se fosse uma guerra a sério – para aumentar a agressividade nas ruas, os divórcios ou os lamentos porque os meninos não puderam ir a discotecas e a “saúde mental” da população se deteriorou. Está tudo cheio de “estados de alma”. Os mais relevantes actores da felicidade dos dias de hoje, dependurada em frases guturais e insultos no Twitter, ou na “noite”, são a Super Bock e o Facebook ou o Instagram. Mas a incivilidade e a incultura não entram verdadeiramente no discurso político.
Também não vale a pena falar da desvalorização do trabalho a favor dos unicórnios e das start-ups em incubadoras, e outras coisas que ficam bem nos discursos modernaços, onde parece que a riqueza é obra exclusiva dos empresários e não dos trabalhadores. Deviam ler o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, esse texto comunista, já que não querem ler Karl Marx onde também aprendiam alguma coisa. Mas o trabalho não entra verdadeiramente no discurso político.
Por aqui adiante. Encontram um átomo destas coisas nos textos prolixos da disputa no PSD, nos discursos da Assembleia, nos anúncios dos governantes? Nada (deixemos por agora o PCP, que é de outro planeta, e o BE, que é um asteróide perdido na sua órbita). Por isso, eu torno-me um imprecador e sigo o exemplo do Milhazes. Os excitados e indignados profissionais das redes sociais ficaram entre agradados e zangados porque o bom do Milhazes traduziu à letra uma imprecação de uma multidão num concerto na Rússia contra a guerra – o “c…” com que eu não vou colocar a digna redacção do PÚBLICO no dilema de saber se escreve a palavra toda ou não. Mas o que apetece dizer aqui é o mesmo: olhem para Portugal, a vossa terra, a vossa Pátria, o local onde dez milhões de pessoas esperam que sirvam o seu bem comum, a sua autoridade no voto, a sua liberdade, “c…”!»
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27.5.22
Habemus OE2022
Pelo que tenho lido, parece-me que foi dada pouca importância à discussão e votação do OE2022. Com razão: foi um longo jogo com vários prolongamentos e que nem teve de recorrer a penalties porque o resultado já era conhecido. Tentei algumas vezes ir até ao canal do Parlamento, mas passava por aqui uma mosca e distraía-me.
Ganhou o PS, claro, com as abstenções dos novos parceiros – Livre, Pan e três madeirenses do PSD – e os votos contra de todos os outros partidos, da esquerda à direita. Fica aqui um dos discursos finais.
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De pé, ó vítimas da fome!
Garantir o fornecimento de cereais e alimentos básicos aos países ameaçados pela fome é, pois, uma emergência humanitária. Pelo que qualquer possível e desejável tratado de paz e reparação para a Ucrânia deve levar em conta, por parte da comunidade internacional, a emergência alimentar de países que terão sofrido as consequências de uma guerra que não escolheram. A sobrevivência de milhões de pessoas nos países mais pobres depende dessa consciência e da rapidez das respostas do mundo desenvolvido.»
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Na cabeça de Putin
«A invasão da Ucrânia é mais do que uma guerra por território no intento de reconstruir o império russo. A sua lógica é mais ambiciosa. “É uma guerra de civilização. [Putin] procura alargar o domínio russo sobre o continente euroasiático.” Estas são duas teses desenvolvidas pelo ensaísta e filósofo francês Michel Eltchaninoff, no livro Dans la Tête de Vladimir Poutine, Actes Sud, 2015, e cuja tradução portuguesa, Na Cabeça de Putin (Ed. Zigurate), chegará às livrarias no dia 9 de Junho.
No auge da maior guerra na Europa desde o fim da II Guerra Mundial, é imperioso tentar perceber Vladimir Putin. Se é difícil penetrar na sua personalidade, resta conhecer as ideias que estão por trás da sua estratégia imperial. O livro foi escrito logo a seguir à anexação da Crimeia perante a dificuldade de perceber os objectivos e as intenções de Putin. A análise permanece actual e o autor acrescentou um curto capítulo final após a invasão da Ucrânia em 2022.
A filosofia russa de Putin ajudaria a compreender a estratégia de um líder que gosta de se mostrar enigmático. É um realista e, ao mesmo tempo, um homem que passou a ignorar a realidade, como se verifica na aventura ucraniana.
Numa entrevista recente ao diário Le Monde, Eltchaninoff reafirma que a ideologia de Putin assenta em quatro pilares: neosovietismo, eslavofilia, euroasiatismo e conservadorismo. “Putin nunca acreditou no comunismo mas é sensível ao patriotismo sacrificial do sovietismo.” Estaline pode ser apreciado como vencedor da Alemanha nazi e da “grande guerra patriótica”, mas o revolucionarismo de Lenine deve ser apagado.
Outro pilar é a eslavofilia, encarnada por pensadores como Nikolai Danilevski (1822-1885), leitura obrigatória para os responsáveis putinistas. Danilevsk acrescenta à eslavofilia tradicional “a ideia de um desenvolvimento orgânico da Rússia e de um confronto inevitável com o Ocidente, caracterizado pelo primado do Direito, pela predominância do comércio e por um materialismo que se opõe frontalmente a uma Rússia impregnada de cristianismo”.
O euro-asiatismo nasceu nos anos 1920 entre os imigrados “brancos” e nega que a Rússia seja próxima do mundo romano-germânico e da Europa Ocidental. É mais próxima das populações asiáticas: a Eurásia tem como vocação virar-se para o Oriente. Putin foi muito influenciado pelo filósofo Ivan Iline (1883-1954), que imaginava já uma “ditadura nacional como remédio para o caos separatista que se seguiria ao comunismo”.
A partir de 2013, Putin lança uma viragem conservadora, que reforça a sua aliança com a Igreja Ortodoxa. Faz a apologia da família tradicional e assume o confronto com a ofensiva liberal e o politicamente correcto: “A Rússia deve atrair os conservadores do mundo inteiro e fazer da Rússia o pólo mundial do conservadorismo.”
“Putin trava no seu espírito, cada vez mais fechado na ideologia, uma guerra de civilização. O objectivo é estender a dominação russa ao continente euro-asiático.” Sonha tornar-se líder da Europa quando os países europeus façam chegar ao poder os partidos nacional-populistas que Moscovo apoia e financia.
No seu discurso de 21 de Fevereiro sobre a visão histórica da Rússia e da Ucrânia, disse Putin: “Eles detestam-nos apenas porque existimos. A Rússia é fundamentalmente diferente da civilização ocidental.” Evocou a “ameaça existencial” que paira sobre a Rússia.
A Ucrânia tornou-se numa obsessão para Putin: ele não tolera a existência, ao lado da Rússia, de um Estado que proclamou a sua independência e começou a virar-se para a Europa ocidental. Retoma as teses de Ivan Iline a um nível quase apocalíptico: “Não seria exagero dizer que este impulso para uma assimilação violenta, para a formação de um Estado ucraniano etnicamente puro, agressivo em relação à Rússia, é comparável nas suas consequências ao uso contra nós de armas de destruição em massa.”
“Ninguém sabe, repitamo-lo, se Vladimir Putin enlouqueceu.” Mas a loucura dos ditadores costuma ser de outra ordem. “Esta sequência, na qual funde um passado mitificado num presente reinventado, sugere que ele caiu num mundo paralelo”, escreve Eltchaninoff na derradeira página do livro.
As “raízes ideológicas” ajudam a perceber a estratégia russa, mas não a decisão de fazer a guerra. Nem explicam a “cabeça de Putin” nem o seu desfasamento da realidade, facto que o torna particularmente perigoso.
Resta um ensinamento: a guerra decorre na Ucrânia, mas é mais do que geopolítica. Após a anexação da Crimeia em 2014, um marco histórico, “Putin preparou-se para o grande confronto com o Ocidente”. O imperialismo putiniano é dobrado por uma tentativa de restauração conservadora e de imposição do “Estado forte” no Continente. Por isso, a Ucrânia se tornou palco de uma guerra sobre a identidade da Europa.»
Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 26.05.2022
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26.5.22
A crise da fome global está aí
«Os preços globais dos alimentos estão a subir. O Índice de Preços de Alimentos da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação - que cobre um cesto de alimentos básicos (cereais, carnes, laticínios, óleos vegetais e açúcar) - atingiu uma alta histórica de 159,7 em março, face a 141,1 no mês anterior. Embora tenha baixado ligeiramente em abril, para 158,5, a situação atual - como a guerra da Rússia na Ucrânia - devem continuar a elevar os preços para novos máximos, com implicações devastadoras para a fome global.
A pandemia de covid-19 expôs a fragilidade e a disfuncionalidade dos sistemas alimentares do mundo, com restrições de movimento e interrupções na cadeia de abastecimentos fazendo subir os preços, prejudicando os meios de subsistência rurais e exacerbando a insegurança alimentar, especialmente para os pobres. Agora, a guerra na Ucrânia está a agravar esses desafios, porque ambos os lados são grandes exportadores de alimentos, combustível e fertilizantes.
Além disso, as alterações climáticas representam uma ameaça ainda maior à segurança alimentar global. O clima extremo, como ondas de calor, inundações e secas prolongadas, já provocou choques na produção agrícola e na disponibilidade de alimentos. À medida que as temperaturas aumentam, esses choques tornar-se-ão cada vez mais frequentes e poderosos. Se o aquecimento global ultrapassar o limite de 1,5° Celsius (em relação à temperatura pré-industrial da Terra), eles tornar-se-ão provavelmente catastróficos.
Como mostra o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas, evitar o limite exigirá uma ação imediata e drástica. Mas a mitigação é apenas parte do desafio. Também serão necessários investimentos em larga escala na adaptação para proteger comunidades vulneráveis do aquecimento que já está em curso.
Mesmo sob o cenário de mitigação mais otimista, espera-se que o aquecimento global atinja o limite de 1,5°C numa década, antes de retroceder. Isso resultará em mudanças nas zonas climáticas, subida do nível do mar e interrupções no ciclo da água que aumentam a frequência e a intensidade do clima extremo. Além de aumentar os riscos económicos e de saúde, as interrupções resultantes no abastecimento de alimentos e água provavelmente causarão convulsões sociais e políticas, alimentando um ciclo vicioso de pobreza, fome, instabilidade e até conflito, acompanhado por um aumento acentuado da migração.
Um sistema alimentar mais resiliente, sustentável e equitativo deve ser um pilar de qualquer agenda de mitigação ou adaptação climática. Mas as barreiras para a construção de tal sistema não devem ser subestimadas, especialmente para países e regiões onde o solo é pobre, a terra tem pouco valor agrícola, outros recursos naturais, como a água, são limitados ou degradados e as condições socioeconómicas são difíceis.
Dada a baixa produtividade das suas terras agrícolas, esses ambientes marginais são incapazes de suportar a produção sustentável de alimentos suficientes para atender às necessidades nutricionais da população local. De facto, enquanto os ambientes marginais abrigam menos de 25% da população global - cerca de 1,7 mil milhões de pessoas - eles representam 70% dos pobres do mundo e a maioria dos desnutridos.
A pobreza e a fome podem levar os agricultores a utilizar em demasia os frágeis recursos ambientais para garantir a sua sobrevivência a curto prazo, mesmo à custa do esgotamento a longo prazo das suas terras e do empobrecimento das suas famílias e comunidades. Aqueles que vivem em áreas remotas com infraestruturas mínimas, poucas oportunidades económicas alternativas e acesso limitado ao mercado são particularmente propensos a fazer essas escolhas.
Assim, os países com terras marginais significativas dependem da importação de alimentos - em alguns casos para mais de 80% das suas necessidades. Mas as interrupções relacionadas com a pandemia e a guerra, juntamente com os aumentos de preços que aquelas provocaram, mostraram o quão vulneráveis são esses países. De acordo com o relatório sobre a Situação da Alimentação e Agricultura 2021 da FAO, mais 161 milhões de pessoas foram afetadas pela fome em 2020, em comparação com 2019. E o Programa Alimentar Mundial está a alertar agora que a combinação de conflito, covid, crise climática e aumento de custos levou 44 milhões de pessoas em 38 países até à beira da fome.
Com os países a lutarem para garantir alimentos suficientes para atender às necessidades nutricionais das suas populações, muitos estão agora a reavaliar as suas dependências alimentares e a procurar expandir a produção local. Mas, a menos que a sustentabilidade seja levada em consideração, os esforços para aumentar a resiliência de curto prazo, encurtando as cadeias de abastecimentos, podem minar a resiliência de médio e longo prazo, esgotando ainda mais os recursos agrícolas, como solo e água.
A sustentabilidade não é barata. A produção eficiente no meio de restrições biofísicas e climáticas requer investimento em tecnologias caras. Mas estruturas de governação deficientes, perspetivas de crescimento limitadas e dívidas elevadas representam grandes desafios para muitos países. A pandemia colocou uma pressão enorme nos orçamentos públicos e as crises da dívida surgem para muitos governos, à medida que vencem os empréstimos contraídos para lidar com a pandemia.
Não se pode esperar que os países pobres e vulneráveis resolvam os inúmeros desafios interligados que enfrentam, desde a poluição e perda de biodiversidade até fome e pobreza, sem ajuda. Para reforçar a segurança alimentar e nutricional de longo prazo, devemos olhar além das soluções nacionais para soluções regionais e internacionais que considerem as necessidades das comunidades que vivem em ambientes marginais. Caso contrário, não haverá como escapar aos ciclos desestabilizadores de fome, migração e violência.»
© Project Syndicate, 2022.
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25.5.22
Gentes deste mundo (12)
Ainda tenho uma espécie de dragão comprado a este simpático chinês, perto da Barragem das Três Gargantas, Rio Yangtze (China), 2004.
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Com rum, papas e bolos se faz um orçamento
«Nem o debate do Orçamento tem uma surpresa que seja, nem havia expectativa de que a trouxesse. A maioria absoluta é, como seria de esperar, implacável e nem sequer fingida e, se uma deputada maioritária ainda sobe à tribuna para prometer “agregar” a “visão” de alguns partidos, garantiu logo, para bom entendedor, que será com “prudência”, ou seja, com “contas certas” - um refrão solene que toda a gente percebe que significa que os salários e as pensões não podem ter contas certas e devem ser reduzidos. As “contas certas” tornaram-se uma das muletas mais saborosas do discurso político português que, como não podia deixar de ser, procura construir um senso comum poderoso e envolvente, neste caso procurando convencer cada pessoa de que fica melhor se for atrasada a construção do hospital que falta ou se for vivendo com um rendimento mais curto, devendo mesmo maravilharmo-nos com o governo que assim nos protege. E, pronto, isto é o Orçamento, não tem qualquer novidade, antes de ser já o era, nem pode haver algum espanto pelo facto de a maioria impor para si própria o direito a violar os prazos para passar rasteiras ao parlamento.
A encenação à volta da lei, que pouco entusiasma os alinhamentos noticiosos, devorados pela tragédia ucraniana e pelos foguetórios do futebol, nem chega por isso a ensaiar algum artifício. Confirma-se que o governo tem nos liberais um aliado para reduzir o salário real da função pública, afinal Rui Rio sempre tinha razão ao colocá-los à sua direita, nada de novo. Confirma-se que o Chega vive de fogo fátuo, nada de novo. Verifica-se que o PSD-Madeira trata da clientela e, para tanto, consegue reduzir um imposto sobre o rum exportado e reabrir as inscrições de empresas na Zona Franca, uma galinha de ovos de ouro. O governo, que há um ano e galhardamente se recusa a cumprir a determinação da Comissão Europeia de fazer restituir mil milhões de euros de subsídios indevidamente pagos a 300 empresas, oferece mais este bónus aos maratonistas do planeamento fiscal, mesmo condescendendo que aqueles deputados regionais acabarão por votar contra o Orçamento, uma vez concluída a exibição da sua musculada negociação. A boa vontade conta, também nada de novo.
E há depois a panóplia de propostas que o governo trata com o carinho dedicado aos parceiros que acolheu, sabendo que a ansiedade que os move evitará qualquer empecilho, com razão o faz. A novela começou com ameaças convocantes (“reuniões técnicas”, já) e seduções amáveis, tudo concluído em “aproximações”, como se diz em parlamentês. As “aproximações” são apresentadas com garbo: o racismo e a violência resolvem-se com alguma “formação” e “sensibilização”, talvez até com um “programa”; a falta de apoio à comunidade surda exige a contratação de “até 25 intérpretes”, mas pode ser um só; anunciam-se “respostas transitórias” a diversos problemas, que o governo gerirá com a sua sapiência, como o fez com o programa de transferência de funcionários para o interior, que conduziu ao sucesso de levar dez pessoas num ano; uma redução do IVA para produtos de higiene menstrual é trombetada com glória de primeira página num matutino, para passar ao longo do dia a ser já não uma baixa do imposto mas uma precisão da classificação legislativa e para desaparecer no dia seguinte, tragada pela constatação de que autores e jornalista ignoravam que a medida já existia e o governo os gozou desde a primeira hora; e, finalmente, são aprovadas as medidas que o primeiro-ministro coleciona na sua parede de troféus, as recomendações de “programas experimentais” com contornos a definir por quem sabe, ou seja, por quem os vai ignorar. Encontrar um parceiro que, perante a despachada recusa do ministro, reformula uma proposta como um pedido de “estudo”, quem sabe se mesmo de uma comissão a formar eventualmente para sensibilizar o assunto, é o sonho de qualquer governo. Tudo com contas certas, claro está.
Assim, o Orçamento será aprovado, mesmo que depois tenha que ser aplicado e alguém possa perguntar onde estão as contas, as aproximações, as sensibilizações, os estudos e as medidas transitórias, mais a confiança que foi prometida.»
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24.5.22
Estónia
Em Talín, milhares de pessoas cantam e recolhem dinheiro para ajuda humanitária à Ucrânia.
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O desvanecer da ilusão coletiva
«Diz-se que a História não se repete. Porém, Hegel afirmou que a História se repete sempre, pelo menos duas vezes, ao que Karl Marx acrescentou: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.
Olhando para o que se passa na Ucrânia, poderíamos dizer sem hesitações que já vimos esta história! Lembremo-nos da Tchetchénia, da Síria, da Geórgia, do Cazaquistão e da já esquecida “Guerra de inverno russo-finlandesa” em 1939, quando Estaline, como agora Putin, acreditou numa vitória rápida contra um inimigo “menor”, na razão de três soviéticos para um finlandês. Os soviéticos, como agora Putin, não contavam com o espírito de resistência, diríamos hoje, de resiliência do povo invadido.
No final, não houve ganhadores. Embora o invasor tivesse conseguido atravessar a defesa finlandesa, a União Soviética foi desmoralizada e banida da Liga das Nações, a Finlândia foi forçada a assinar um tratado de paz que a obrigava a ceder 10% do território e 20% da capacidade industrial. Repetir-se-á a História na Guerra russo-ucraniana?
Para prever o futuro é preciso compreender o passado. A invasão/agressão russa à Ucrânia não nos pode deixar cair no risco cognitivo de acreditar na farsa da “desnazificação” encenada por Putin nem na teoria de defesa contra um hipotético ataque da NATO. Tal como não nos deve fazer esquecer outras guerras, outras mortes, outras comunidades despedaçadas.
À repetição da tragédia, segue-se a farsa e a ilusão coletiva de que uma III Guerra Mundial, no século XXI, é impensável e de que as democracias neoliberais e as marcas deixadas pelas guerras anteriores levariam os países a resolver os conflitos com recurso à diplomacia.
Outra ilusão coletiva foi a de que os populismos que deram origem a poderes extremistas, de qualquer quadrante, jamais regressariam ao poder. Os factos desmentem cabalmente estas expectativas. Na verdade, o desenvolvimento da comunicação social e o aparecimento das redes sociais agudizou o problema das informações falsas, das distorções interpretativas e da manipulação da opinião pública. Aldous Huxley foi muito claro quando diagnosticou que as sociedades que usam o desenvolvimento tecnológico e científico para a guerra e o domínio de povos não são democracias, mas sistemas opressivos de domínio e extermínio.
Em oposição às sociedades da última fase da modernização reflexiva, esta paradoxal agressão configura riscos associados ao uso da tecnologia e do conhecimento científico em favor de uma ideia delirante de domínio e faz parte da farsa ideológica de sociedades humanamente subdesenvolvidas e totalitárias.
Um tipo de farsa grotesca e trágica que, por força da generalização da educação e da globalização, pensávamos não mais ser possível. Esperávamos comportamentos equilibrados e inteligência no diálogo. Não foi o que vimos nos EUA, Brasil ou Índia relativamente à pandemia de covid-19, não é o que vemos hoje em algumas reações sobre a invasão russa à Ucrânia, alegando ações do passado para desculpabilizar erros presentes.
Vivíamos nos vapores do otimismo generalizado de que na Agenda do século XXI existia um consenso sobre a necessidade de combater as desigualdades sociais, de distribuir a riqueza, de universalizar os benefícios da ciência, de erradicar a fome, as doenças, as guerras e a pobreza, e combater as alterações climáticas.
Supúnhamos que na era do Antropoceno, a nova era geológica dominada pelas atividades humanas, entre os riscos antrópicos que provocam desastres e catástrofes, não estavam incluídas as decisões de invadir países nem aniquilar identidades étnicas e Estados-nação. Estávamos enganados. Ao recair na lógica dos velhos conflitos, as sociedades do Antropoceno agravam os riscos decorrentes da emergência climática. Esta agressão cruel e anacrónica faz retardar processos de transição energética sustentáveis, de restauração de ecossistemas e retroceder nos passos dados no âmbito de uma Agenda de Desenvolvimento Sustentável para o século XXI.
Não sendo evidente que os líderes e as instituições sejam capazes de criar o espírito coletivo necessário, só nos resta esperar que a resposta venha dos povos. O que esperamos dos povos é o notável exemplo de resistência e de resiliência que observamos hoje na atitude dos ucranianos face à barbárie russa. Apesar da monstruosidade dos factos, não podemos abandonar o sonho de um planeta melhor, para as gerações futuras. Investir em sociedades resilientes capazes de impedir que erros do passado se repitam, aprendendo com eles, é imperativo. Essa será a nossa melhor herança.»
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23.5.22
Gentes deste mundo (10)
Um enorme maori (são mesmo grandes os maoris…), em Rotorua, (Ilha do Norte da Nova Zelândia), 2017.
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Nove anos sem Georges Moustaki
Georges Moustaki nasceu em Alexandria, de pais judeus gregos, e morreu em Nice, com 79 anos, em 23 de Maio de 2013.
Em 1951 foi para Paris, trabalhou primeiro como jornalista, mas foi como barman que entrou no mundo da música, onde personalidades como Georges Brassens o influenciaram decisivamente (ao ponto de lhe ter «roubado» o nome, já que nascera como Giuseppe e não como Georges…) Para Édith Piaf escreveu Milord e com ela viveu um curto romance. «Brassens était mon maître, Piaf était ma maîtresse» - terá um dia sintetizado.
Algumas «preciosidades» entre muitas:
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A guerra de trincheiras continua
Na Ucrânia? Não só, também nas rede sociais.
Para quê? Quem é que ainda não percebeu que ninguém muda de opinião? É inútil, com «mas» ou sem «mas», porque é esta modesta conjunção adversativa que faz toda a diferença. Como alguns já disseram, em circunstâncias como a actual, mesmo vendo o mundo a cores a opinião decide-se sempre a preto e branco e não há, nem pode haver, alternativa.
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Liquidar para ser beneficiário líquido
«Sempre que alguém me fala na pureza das crianças, percebo que se trata de uma pessoa que não convive muito com crianças. A minha avó não tinha dúvidas sobre a minha indecência, e ainda assim esforçava-se para me manter vivo e com saúde. Essa é que é a dificuldade. Amar um ser puro é facílimo. Deixem-me dar um exemplo. Uma vez, mantive o seguinte diálogo com a minha filha mais velha, que teria uns seis anos:
— O que estás a ler?
— A biografia de um grande humorista.
— Ele era engraçado?
— Sim, muito.
— Mais engraçado do que tu?
— Bastante.
— Ele já morreu?
— Já.
— Então...
Não sei se me faço entender. É um episódio em que uma linda criança sugere, com um ignominioso “então…”, que talvez o pai possa ser o beneficiário líquido da morte de Groucho Marx. A ocorrência contém algumas revelações interessantes acerca do raciocínio da doce menina. Primeiro, ela considera que a desgraça dos outros pode ser acolhida com alegria, se significar a prosperidade dos nossos. Segundo, ela desconfia que os nossos não prosperam a menos que algo muito grave aconteça aos outros.
Quando se soube que o Presidente da República tinha dito que Portugal era beneficiário líquido da guerra da Ucrânia, lembrei-me daquela conversa. Não é todos os dias que verificamos que a nossa filha revela, aos seis anos, capacidade para ser a mais alta magistrada da nação. O raciocínio é exactamente o mesmo, com exactamente as mesmas implicações. Portugal é um atleta de alta competição. E Marcelo é o pai que lhe diz: aproveita agora, rapaz, porque todos os teus principais adversários partiram uma perna.
Não creio que seja possível apontar falhas à filosofia do Presidente. De facto, Portugal tem um problema de competitividade. E há duas maneiras de resolver esse problema: ou nos tornamos mais competitivos ou aproveitamos as ocasiões em que os outros não conseguem competir. Uma é seguramente mais fácil do que a outra, e por isso não admira que seja a nossa preferida. No entanto, há uma questão que gostaria de ver respondida: concluímos que é boa ideia dizer em público que somos beneficiários líquidos de uma catástrofe após a ingestão de que líquido? Se souberem, estou comprador de uma garrafinha.»
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22.5.22
Bem podia ter esperado pelos 100
Charles Aznavour chegaria hoje aos 98.
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Marcelo, Zelensky, Costa e pequenos equívocos com importância
«Em 2016, quando foi eleito, Marcelo era o Presidente certo para o momento: parte da sociedade portuguesa vivia em grande tensão depois de quatro anos de memorando da troika, de Governo Passos-Portas e de dez anos de Aníbal Cavaco Silva em Belém, cujo segundo mandato foi marcado por elevados índices de penosidade. Quem não se lembra de cenas como aquela de que “para ser mais honesto do que eu tem que nascer duas vezes” que levante o braço.
Marcelo na Presidência foi uma pedrada no charco: subitamente, um país amochado pela troika parecia ganhar ânimo, primeiro com a formação da “geringonça”, depois com a eleição do novo Presidente. Marcelo não criou uma persona para chegar a Belém: foi sempre assim, com os seus defeitos e virtudes, encantador, sedutor, dotado de uma euforia capaz de quebrar muitas barreiras, hiperactivo, de uma inteligência fulminante, capaz de tratar de quatro assuntos enquanto almoça a sanduíche e o Sumol de laranja. Quem não apreciava o estilo dizia às vezes que Marcelo seria um perigo em Belém: lembro-me de pensar que isso nunca aconteceria. Marcelo era dotado de um elevado sentido de Estado, pese as excentricidades.
A questão é que, neste momento, há um novo Marcelo em Belém. E, ao contrário do que tem sido recorrente em todos os Presidentes, desta vez não parece que seja a síndrome do segundo mandato. O trauma que Marcelo vive neste momento é o da maioria absoluta do PS – e, como é mais inteligente do que todos, percebeu logo que isso lhe iria retirar qualquer espaço de manobra e diminuir consideravelmente o peso político. Perante a fraqueza do PS de então, Mário Soares tomou em mãos a tarefa de fazer oposição ao Governo Cavaco – dificilmente Marcelo seguirá esta linha, perante a ausência do PSD, mas não encontrou a sua própria linha.
Ainda durante esta visita a Timor-Leste, Marcelo lamentou-se de ter dissolvido a Assembleia da República por causa do chumbo do Orçamento. Se formos ler toda a literatura que no último ano Marcelo produziu sobre a necessidade de estabilidade, quase se responsabilizando a si próprio para que essa estabilidade existisse, vemos como o Presidente sofreu dupla derrota nos últimos tempos: os seus alertas valeram zero e o eleitorado deu uma maioria absoluta ao PS. A alternativa com que tanto sonhou o Presidente nunca, afinal, tinha existido.
Pode-se enquadrar neste estado de espírito (pesado) os sinais dos últimos tempos. O Observador contou que, na audiência com os partidos, Marcelo se queixou da sua falta de influência e tempo de antena. É humano, mas deslocado.
A revelação de que Costa iria encontrar-se com Zelensky no mesmo dia em que o Presidente estaria em Timor foi incompreensível. O gabinete de Costa guardava sigilo por razões de segurança e Marcelo tratou de “dar a notícia”, para fúria não só do PS e Governo como também, revela a edição deste sábado do Sol, dos militares – o semanário cita fontes militares a acusarem o Presidente de “falta de sentido de Estado”. Outra curiosidade foi a revelação de Marcelo que iria enviar a lei dos metadados (que ainda não existe) para o Tribunal Constitucional. Nem com a lei da eutanásia Marcelo decidiu anunciar o que fazia antes de lhe chegar às mãos. Percebe-se que o Presidente viva uma crise existencial com a sua família política aos trambolhões e sem a alternativa com que sempre sonhou – mas tem urgentemente que, como se diz agora, se “reinventar”.
P.S.: A visita de Costa à Ucrânia correu bem (embora com grandes aglomerações de jornalistas). Mas as palavras amenas sobre a adesão da Ucrânia à União Europeia não podem esconder o essencial: a UE, a receber a Ucrânia, fá-lo-á numa solução tipo Macron, pelo menos a médio prazo. O show-off de Ursula von der Leyen a entregar o papelinho da adesão foi só mesmo isso: show-off.»
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