25.5.22

Com rum, papas e bolos se faz um orçamento

 


«Nem o debate do Orçamento tem uma surpresa que seja, nem havia expectativa de que a trouxesse. A maioria absoluta é, como seria de esperar, implacável e nem sequer fingida e, se uma deputada maioritária ainda sobe à tribuna para prometer “agregar” a “visão” de alguns partidos, garantiu logo, para bom entendedor, que será com “prudência”, ou seja, com “contas certas” - um refrão solene que toda a gente percebe que significa que os salários e as pensões não podem ter contas certas e devem ser reduzidos. As “contas certas” tornaram-se uma das muletas mais saborosas do discurso político português que, como não podia deixar de ser, procura construir um senso comum poderoso e envolvente, neste caso procurando convencer cada pessoa de que fica melhor se for atrasada a construção do hospital que falta ou se for vivendo com um rendimento mais curto, devendo mesmo maravilharmo-nos com o governo que assim nos protege. E, pronto, isto é o Orçamento, não tem qualquer novidade, antes de ser já o era, nem pode haver algum espanto pelo facto de a maioria impor para si própria o direito a violar os prazos para passar rasteiras ao parlamento.

A encenação à volta da lei, que pouco entusiasma os alinhamentos noticiosos, devorados pela tragédia ucraniana e pelos foguetórios do futebol, nem chega por isso a ensaiar algum artifício. Confirma-se que o governo tem nos liberais um aliado para reduzir o salário real da função pública, afinal Rui Rio sempre tinha razão ao colocá-los à sua direita, nada de novo. Confirma-se que o Chega vive de fogo fátuo, nada de novo. Verifica-se que o PSD-Madeira trata da clientela e, para tanto, consegue reduzir um imposto sobre o rum exportado e reabrir as inscrições de empresas na Zona Franca, uma galinha de ovos de ouro. O governo, que há um ano e galhardamente se recusa a cumprir a determinação da Comissão Europeia de fazer restituir mil milhões de euros de subsídios indevidamente pagos a 300 empresas, oferece mais este bónus aos maratonistas do planeamento fiscal, mesmo condescendendo que aqueles deputados regionais acabarão por votar contra o Orçamento, uma vez concluída a exibição da sua musculada negociação. A boa vontade conta, também nada de novo.

E há depois a panóplia de propostas que o governo trata com o carinho dedicado aos parceiros que acolheu, sabendo que a ansiedade que os move evitará qualquer empecilho, com razão o faz. A novela começou com ameaças convocantes (“reuniões técnicas”, já) e seduções amáveis, tudo concluído em “aproximações”, como se diz em parlamentês. As “aproximações” são apresentadas com garbo: o racismo e a violência resolvem-se com alguma “formação” e “sensibilização”, talvez até com um “programa”; a falta de apoio à comunidade surda exige a contratação de “até 25 intérpretes”, mas pode ser um só; anunciam-se “respostas transitórias” a diversos problemas, que o governo gerirá com a sua sapiência, como o fez com o programa de transferência de funcionários para o interior, que conduziu ao sucesso de levar dez pessoas num ano; uma redução do IVA para produtos de higiene menstrual é trombetada com glória de primeira página num matutino, para passar ao longo do dia a ser já não uma baixa do imposto mas uma precisão da classificação legislativa e para desaparecer no dia seguinte, tragada pela constatação de que autores e jornalista ignoravam que a medida já existia e o governo os gozou desde a primeira hora; e, finalmente, são aprovadas as medidas que o primeiro-ministro coleciona na sua parede de troféus, as recomendações de “programas experimentais” com contornos a definir por quem sabe, ou seja, por quem os vai ignorar. Encontrar um parceiro que, perante a despachada recusa do ministro, reformula uma proposta como um pedido de “estudo”, quem sabe se mesmo de uma comissão a formar eventualmente para sensibilizar o assunto, é o sonho de qualquer governo. Tudo com contas certas, claro está.

Assim, o Orçamento será aprovado, mesmo que depois tenha que ser aplicado e alguém possa perguntar onde estão as contas, as aproximações, as sensibilizações, os estudos e as medidas transitórias, mais a confiança que foi prometida.»

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