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16.12.23
Um pequeno prédio
«Maison Dumas», Paris, 1892.
Arquitecto: Paul Sédille (também autor dos Grandes Armazéns Printemps, o seu mais famoso trabalho).
Ceramista: Jules Loebnitz.
Daqui.
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16.12.1938 – Liv Ullmann
Liv Ullmann nasceu em Tóquio, filha de pais noruegueses e chega hoje aos 85.
Começou a carreira como actriz de teatro na Noruega, na década de 1950, mas foi como musa e companheira de Ingmar Bergman (com quem viveu alguns anos e de quem teve uma filha) que se tornou célebre.
Mais, incluindo dois vídeos, AQUI.
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Os perigos
«Todas as épocas são perigosas, umas mais do que as outras, umas só para uma geografia, outras para o mundo inteiro. A história é perigosa, imprevisível, num certo sentido não-humana porque está muito para além das relações de causa e efeito a que estamos habituados e tem na sua essência um elemento de surpresa, para os nossos olhos que se habituam depressa quando quem neles manda é a preguiça e acomodação. E quanto melhor se vive, maior é essa acomodação e maiores são os desastres que aparecem de surpresa. E, por fim, ninguém tenha dúvidas que onde melhor se vive é naquilo que se chama “Ocidente” o sistema das democracias do Japão à Europa, passando pela América. E quando digo “onde melhor se vive” é mesmo para os mais pobres, os mais excluídos, os que têm uma vida má.
Dito isto, a obrigação dos humanos no presente, os que estão vivos, é saber isto, mas não actuar na base dessa sabedoria, actuar no pressuposto de que podem mudar alguma coisa e que podem ter a ilusão de que a sua acção pode contrariar a não-humanidade da história. Ou seja, fazer alguma coisa para que os perigos da história sejam mitigados, sejam atrasados, porque cada geração que possa viver sem os seus efeitos leva para a morte uma vida mais razoável. A nossa acção pode valer para os 100 anos de uma vida, mesmo que não altere nada de substancial para os 1000 anos. Esta é uma perspectiva laica, de que a nossa vida é a terrestre, e não a celeste, e, por isso, se se pode fazer alguma coisa, por ínfima que seja, por quem cá está, é melhor. As democracias assentam nessa ideia desde a Revolução Francesa que permitiu a frase de Saint-Just de que a “felicidade é uma ideia nova na Europa.”
Nos anos 30, aqueles que actuaram assim tentaram travar a ascensão do fascismo e do nazismo, e falharam. Nos anos 60, os que actuaram assim tentaram retirar grande parte do mundo da opressão colonial, e tiveram algum sucesso. Nos anos 80, os que actuaram assim lutaram para que o Muro que havia em Berlim caísse, e caiu mesmo, arrastando tudo o que estava atrás. Hoje, os perigos aumentam e não sei se teremos algum sucesso em limitá-los, ou atrasá-los, porque em eliminá-los, duvido.
No terreno das democracias os perigos de hoje têm duas faces que cada vez mais se juntam numa só: Trump e Putin. Trump é o candidato favorito de pelo menos metade dos americanos e Putin o actual autocrata da Rússia. Trump quer ser ditador nem que seja “por uma dia”, arrasta atrás de si uma corte política do mais perigoso que se possa imaginar hoje numa democracia, fazendo da senhora Le Pen uma moderada. Putin conduz uma guerra de agressão à Ucrânia e ameaça, se a perder, recorrer às armas nucleares. E, como nos anos 30, têm seguidores, uns mais desavergonhados, outros com mais vergonha, mas dispostos a fazerem-lhes todos os jogos necessários para lhes abrir caminho porque é do seu interesse. Todos os perigos se realizarão se Trump for reeleito e se Putin ganhar a guerra da Ucrânia, porque a seguir somos nós. E por completa inconsciência destes perigos, a máquina desvalorizadora está a funcionar em pleno na Europa, pela habitual mistura de condescendência, preguiça e demasiada crença de que a nossa “vidinha” (não confundir com vida) vai continuar como até aqui sem sobressaltos.
Já ouviram, leram, viram, o que dizem e querem os republicanos do MAGA, a tropa de Trump, que encarnam um agressivo desejo de vingança sobre os “vermes” que se lhes opõem, procuradores, juízes, democratas, republicanos que ainda são suficientemente conservadores e com valores para lhes arrepiar o que esta tropa está a fazer ao partido de Lincoln? Já perceberam que o impasse americano no Congresso e gente como Orbán na Europa, os camionistas que boicotam a exportação de cereais nas fronteiras da Polónia, Hungria e Eslováquia e a extrema-direita paga por Putin se preparam para entregar a Ucrânia à nova ressurreição da URSS?
Assustem-se, que neste caso faz bem, e mobilizem-se. É que estamos num período demasiado perigoso para dois valores que é suposto “nos fazerem”: a liberdade e a democracia.»
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15.12.23
Portas castanhas
Hoje, as portas não são azuis mas castanhas. Também Arte Nova e também de Bruxelas - e lindas.
Daqui.
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Em destaque...
Um país com os problemas que tem e onde os dois destaques são estes (e são mesmo…) não vai longe. Pequerruchos somos.
Expresso, 15.12.2023
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O PS é o único partido que faz frente ao PS
«Agora que se concretizou a demissão do Governo, talvez seja boa altura para fazer um balanço da legislatura. Com surpresa, verifico que a maior parte dos comentadores considera que o PS está fragilizado. Creio que se verifica o contrário. Nos últimos dois anos, o PS foi o melhor Governo, até porque foi o único, e foi a melhor oposição, uma vez que foi o partido que fez cair o Governo. Os outros partidos tentaram, mas nenhuma das suas iniciativas foi capaz de beliscar sequer a maioria absoluta. Mas o PS, devido às pessoas de quem o seu secretário-geral se rodeou, conseguiu derrubar o Governo do PS. Foi única e exclusivamente devido à acção do PS que terminou a maioria absoluta do PS. Significa isto que, nas próximas eleições, os cidadãos que desejam ver o PS no poder devem votar no PS; e aqueles que, por outro lado, preferem um partido que tenha a capacidade de impedir o PS de estar no poder, também devem votar no PS. Ou seja, o partido mais bem colocado para ganhar as próximas eleições é, sem dúvida nenhuma, o PS. A verdadeira reflexão que há a fazer é se o país tem necessidade dos outros partidos, que se limitam a assistir à governação do PS e ao derrube do Governo do PS pelo PS. Uma vez que o PS governa, faz oposição e apanha as canas, é duvidoso que Portugal precise das outras forças políticas, que são manifestamente inúteis.
Essa parece ser também a convicção de António Costa. Na entrevista que deu esta semana à TVI, o primeiro-ministro afirmou: “Só espero que das eleições do próximo dia 10 de Março resulte uma situação mais estável do que aquela que tínhamos actualmente.” Para António Costa, há soluções mais estáveis do que uma maioria absoluta do PS, o que faz sentido. Ele sabe bem que dar todo o poder ao PS é perigoso, dada a inclinação do PS para tirar o poder ao PS. No que à estabilidade diz respeito, uma maioria absoluta do PS é uma solução apenas no sentido de “soluço muito grande” — que é, aliás, uma boa descrição dos últimos dois anos. Foram uma espécie de sobressalto bruto que deixou toda a gente um bocado indisposta. Como é improvável que António Costa apele ao voto noutros partidos, deduz-se daqui que, para o ainda secretário-geral do PS, a solução mais estável é uma maioria relativa do PS, forma de governo em que os outros partidos são as rodinhas que impedem a bicicleta do PS de cair. Sozinho, o PS não sabe andar e cai.»
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14.12.23
Um outro jarro
Jarro de vidro americano com um padrão pouco comum de glicínias e “Love Birds”, século XIX.
Libbey Glass Company.
Daqui.
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14.12.1962 – Portugal fortemente condenado na ONU
No fim do ano de 1962, a Assembleia Geral da ONU insistiu na condenação da política colonial portuguesa em várias resoluções, com especial destaque, pela sua dureza, para a 1807, aprovada em 14 de Dezembro por 82 votos contra 7 (Bélgica, França, Portugal, Reino Unido, África do Sul, Espanha e EUA) e 13 abstenções (onde se incluíam os restantes membros do «grupo NATO»).
Qual o seu âmbito?
– A Portugal, cuja atitude condenava, porque contrária à Carta, pedia a adopção das seguintes medidas:
a) Reconhecimento imediato do direito dos povos dos seus territórios não autónomos à autodeterminação e independência;
b) Cessação imediata de todos actos de repressão e retirada das forças, militares e outras, utilizadas com tal fim;
c) Amnistia política incondicional e liberdade de funcionamento dos partidos políticos;
d) Início de negociações, na base da autodeterminação, com os representantes autorizados, existentes dentro e fora do território, com o fim de transferir os poderes para instituições políticas livremente eleitas e representativas da população;
e) Rápida concessão de independência a todos os territórios, de acordo com as aspirações da população;
– A Estados membros dirigia um duplo convite, no sentido de pressionarem o governo português e de não lhe concederem qualquer assistência que favorecesse a repressão;
– À Comissão de Descolonização pedia a máxima prioridade ao problema dos territórios portugueses;
– Ao Conselho de Segurança, que, caso não fossem acatadas esta e as anteriores resoluções da Assembleia, tomasse medidas para Portugal se conformar às suas obrigações de Estado membro.
Portugal manteve-se inabalável e a guerra continuou. Hoje, sabemos o resto da história.
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Nuno Brederode Santos
Chegaria hoje aos 79 (tantos?). E o que eu não daria para o ler sobre o tempo que passa, por exemplo acerca da saga de Marcelo e das gémeas!
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Fábrica de monstros
«Ainda hoje, quando entro na Biblioteca Nacional de França, passados mais de dez anos, sinto uma estranha sensação de opressão. Vivi ali dentro uma espécie de memória traumática de que o meu corpo se lembra de forma involuntária. Para a minha tese de doutoramento sobre a nossa capacidade de empatia, passei algumas semanas a ler sobre como se fabricam monstros. Como podem pessoas banais transformar-se em verdadeiros monstros morais. Como se pode destruir a empatia, a humanidade de uma pessoa, naturalmente constituída de emoções e comportamentos morais, indispensáveis à sobrevivência dos animais sociais que somos.
O que mais me impressionou nessa altura foi o trabalho imersivo de entrar na cabeça de quem foi um monstro, como antigas crianças-soldados, torcionários e terroristas. Os seus testemunhos sobre essa fase das suas vidas, do processo de desempatia, da maneira como viam as suas vítimas no momento da violência são muito desestabilizadores. Pensei neles quando li alguns testemunhos de jornalistas que viram os vídeos das câmaras subjetivas do ataque do Hamas e de como lhes impressionou essa perspetiva inédita de ver a violência do ponto de vista de quem a perpetra.
Em vários contextos de guerra, massacres, genocídios, existem constantes que passam por desumanizar os inimigos, relegando-os para o lugar de animais considerados repugnantes ou nocivos como baratas, ratos ou serpentes. E, ainda, a desindividualização, passando a ser impossível ver o inimigo como uma pessoa, mas como uma massa informe em que toda a gente passa a culpada ou dispensável, passível de ser transformada em meio para um fim, ou dano colateral.
Muitos dos testemunhos descrevem o facto de se olhar para o inimigo sem nunca pensar que este tem “uma irmã ou um irmão” ou ainda que, sendo “animais sem alma nem consciência” e não fazendo parte da mesma humanidade, toda a violência é possível. Faz parte do processo de desumanização retirar a roupa do inimigo porque um corpo nu está mais perto do animal e a nudez permite uma maior despersonalização. Para garantir que não se veja a sua humanidade vendam-lhes os olhos, baixam-lhes a cabeça ou posicionam-se atrás das vítimas, porque o “olhar nos olhos” é um perigo, visto este poder acordar a humanidade do monstro agressor.
Lembrei-me destes testemunhos quando vi as imagens recentes de palestinianos sem roupa, de cabeça baixa ou de costas capturados pelos soldados israelitas no Norte de Gaza. A questão da humanidade que surge através da cara do outro é uma das constantes no testemunho dos torcionários: “Lembro-me da primeira pessoa que olhou para mim, no momento do golpe final. Foi qualquer coisa. Os olhos daquele que matamos são imortais (…) Os olhos do morto, para o assassino, são, se este os vê, a sua calamidade. Eles são a acusação daquele que ele matou”, conta um dos assassinos do genocídio em Ruanda.
As guerras feitas através de bombas, de dispositivos à distância e agora com a ajuda da inteligência artificial têm a terrível consequência de não deixarem grande hipótese ao surgimento de um qualquer traço de humanidade inibidor de violência. A prevenção de massacres humanos passa, entre outras coisas, pela responsabilização dos agressores porque o sentimento de impunidade é fator agravante da violência, mas igualmente por uma educação sobre estes mecanismos de desumanização que implicam também a profunda desumanização do agressor. “Senti que já não tinha alma, que tinha passado a ser outra pessoa, que a minha alma se tinha separado do meu corpo, sentia que estava a perder o meu sentimento de humanidade”, “não éramos só criminosos, passámos a ser uma espécie feroz num mundo bárbaro”, relatam alguns torcionários.
Lamento, hoje, não ter investigado sobre o processo de desumanização de testemunhas exteriores, porque agora custa-me compreender como alguém não diretamente implicado, sentado confortavelmente num sofá, consegue apoiar incondicionalmente o massacre em Gaza de tantos civis, de tantas crianças. Questiono-me sobre os limites da sua (des)humanidade.»
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13.12.23
Há sempre mais um vaso
Vaso Gafanhotos, em vidro soprado azul eléctrico, fosco e polido. 1912.
René Lalique.
Daqui e não só.
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13.12.2012 – Em casa de Gabo
Esta efeméride é minha e nunca me escapa. Há onze anos, eu estava em Arataca, na Colômbia, a terra onde nasceu GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ e na qual se inspirou para criar a mítica aldeia de Macondo, primeiro em «A Revoada», depois em «Cem anos de solidão».
Hoje transformada em Museu, foi nesta casa, que era a dos avós, que Gabo nasceu e viveu até aos 10 anos. Vêem-se as várias divisões da antiga habitação, documentadas com muitas citações, sobretudo do primeiro volume da sua autobiografia «Vivir para contarla».
Ao pôr os pés em Aracataca, está-se sempre à espera de reencontrar algum membro da família Buendía ao virar de uma esquina, um qualquer José Arcádio ou um dos muitos Aurelianos.
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Diga bom dia, está a ser escutado
«Num futuro não determinado, a polícia tem uma unidade especializada em impedir os crimes antes mesmo destes acontecerem – o Pré-Crime. Utilizando um misto de conhecimento paranormal e inteligência artificial, a investigação não se centra nos suspeitos que tenham cometido um crime, mas nos que, num futuro próximo, os poderão vir a cometer. Quem cai na rede da polícia, acusado por um crime que ainda não cometeu, não tem qualquer forma de se defender e é automaticamente condenado. Com menos ficção científica e ainda menor sofisticação do que “Relatório Minoritário”, de Spielberg, o nosso Ministério Público não anda longe desta linha preventiva de intervenção.
A notícia que João Galamba foi escutado ao longo de quatro anos, revelada pelo Expresso, é mais uma demonstração que a lógica de investigação criminal foi invertida. Em vez tentarem descobrir o que aconteceu e como foi feito, andam anos a fio à escuta para ver se alguma coisa acontece ou parece acontecer.
Apenas quatro meses depois de ter tomado posse, ainda mal acabado de conhecer os cantos à casa e os dossiers que tinha pela frente, já o Ministério Público estava a escutar o secretário de Estado, seguro que alguma coisa ele acabaria por fazer. De lá para cá não o largaram. Em quatro anos, de acordo com a revista Visão, recolheram mais de 80 mil chamadas de João Galamba. São milhares de horas de conversas e milhares de mensagens.
Quantos dos que apontam o dedo a Galamba aguentariam tamanho escrutínio sem dizerem qualquer coisa de suspeito? Não estou a dizer culpado, note-se, porque a própria natureza descontextualizada das escutas é dada a equívocos. Tirando ermitas e pessoas com dificuldades de socialização, ninguém está isento de conversas que, descontextualizadas do elemento pessoal, possam ser erroneamente interpretadas. As transcrições deixam de lado a ironia, a piada, o conhecimento de anos que duas foram travando.
Num Estado de Direito tem de existir proporcionalidade entre o bem a perseguir e o que estamos a colocar em causa, enquanto sociedade, ao aceitar o policiamento da esfera privada. Quatro anos a escutar um governante para encontrar dois ou três almoços pagos por empresários (e dez chamadas que foram incluídas no processo) é a prova da leviandade com que juízes renovam o prazo legal de três meses das escutas e com que o Ministério Público avalia os meios humanos e financeiros que tem à sua disposição.
Se todos os especialistas ouvidos pelo Expresso falam em abuso, Vital Moreira lembra que o “Ministério Público não deve iniciar nenhuma investigação que inclua meios intrusivos (escutas, buscas, etc.) sem um juízo prévio, superiormente aprovado, sobre se a denúncia tem alguma viabilidade” e sempre que se trate de “meios intrusivos na privacidade ou na liberdade” estão “sujeitos aos princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade”.
Estes meios intrusivos tornaram-se a norma e não a exceção, como fica evidente no excelente trabalho do Diário de Notícias, que nos diz que há 15 mil pessoas a ser escutadas por um conjunto interminável de forças policiais, tributárias ou de investigação criminal. Parece haver um uso extensivo e intensivo das escutas como meio de prova. No caso Influencer, os advogados de defesa expressaram o seu espanto pelo facto de as escutas serem o único meio de prova apresentado num caso que levou à queda do Governo.
O maior serviço público da peça do DN é tornar claro como, ao contrário do adágio popular, quem nada deve tem sempre razões para temer. Da mesma forma que, no Relatório Minoritário, os meios de prova da unidade do Pré-Crime estavam longe de ser infalíveis e condenavam erradamente quem nada iria fazer, apresenta-se inúmeros exemplos de erros grosseiros cometidos nas transcrições das escutas telefónicas, que até já foram detetados, numa leitura quase imediata, neste caso.
Há frases cortadas a meio na transcrição para aparentar culpabilidade, sendo as gravações negadas durante meses ao advogado. Há advogados escutados durante dois anos por “engano”. Temos frases que, percebendo-se que são piada ou ironia entre pessoas que se conhecem, são tratadas como confissão de uma atividade criminosa. Há gravações onde, não se percebendo a frase ou o seu contexto, a transcrição vai à procura da palavra que mais jeito dá para condenar quem falou. Em todos os casos o mesmo denominador: “apenas foi aproveitada a parte da conversa que interessava à acusação”.
É o resultado deste trabalho, de escutas “manipuladas” ou de uma “ratoeira armada pelo Ministério Público”, que depois vai parar às capas dos jornais. São elementos parciais que são entregues a jornalistas, servindo para entregar suspeitos aos tribunais da opinião pública, sem que estes se possam defender. Com processos mediáticos que se arrastam uma década sem acusação, temos uma condenação sem júri ou juiz. A perceção pública de buscas policiais numa autarquia ou numa sede partidária faz o resto. Mais ainda quando se retiram os telefones e os computadores para tentar encontrar provas sobre qualquer outro assunto.
Não se investiga para fechar um processo, mas para tentar descobrir processos futuros. É uma investigação por arrastão, método ilegal, que leva casos tão caricatoscomo o que agora foi encerrado contra a presidente da Câmara de Matosinhos, acusada por ter nomeado o seu próprio chefe de gabinete sem concurso público (como é generalizado, legal e aconselhável).
A bonomia com que aceitamos que metade vigie e escute a outra metade resulta de uma cultura que promove o abuso do poder coercivo e repressivo do Estado. Uma cultura onde se diz mal do Estado, mas se desprezam os direitos dos cidadãos perante os abusos desse mesmo Estado. Quarenta e oito anos de ditadura deixam as suas marcas: o enraizamento do “quem não deve não teme” foi uma delas. Não é por acaso que, das 15 mil pessoas a serem escutadas, são quase sempre políticos, e não empresários ou banqueiros, a aparecer nas capas de jornais. Para manter o aparato repressivo e justificar os fraquíssimos resultados é preciso contar com o apoio popular. E nada mais popular do que servir um político numa bandeja.
Os escutados não são todos inocentes, como é evidente. Mas a generalização deste meio de prova, ainda por cima menos eficaz e fiável do que se tenta fazer crer, é típica de sociedades policiais e autoritárias. São as polícias políticas que escutam pessoas à espera que comentam crimes. As polícias de investigação escutam suspeitos de crimes à procura de provas. A ideia de que a terraplanagem de direitos cívicos fará nascer uma sociedade menos corrupta já mostrou onde nos conduz. Em Itália, a República dos Juízes acabou em duas décadas de Berlusconi e num governo liderado por fascistas convertidos. Uma República de Procuradores à Escuta não nos levará para melhor do que isso.»
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12.12.23
Os políticos e a abstenção
«Os portugueses vão ser chamados às urnas a 10 de março para votar num projeto político em que acreditam com todas as ganas? Ou vão simplesmente arrastar-se até às secções de voto para escolher um mal menor? As múltiplas sondagens publicadas denunciam um grande número de indecisos e intenções de voto relativamente próximas entre PS e PSD, independentemente de quem vier a liderar os socialistas. Ou seja, não temos, ainda, um claro vencedor antecipado. Mesmo o PS, desgastado por oito anos de poder, está longe de ser um derrotado antes do tiro de partida.
Em março de 2024, poderemos ter fatores que concorrem para um novo recorde na taxa de ausências de eleitores e, por outro lado, para um empate (ou quase) entre os dois maiores partidos. A confirmar-se, quem sai mal na fotografia é toda a classe política.
Se recuarmos às eleições de 2015, a taxa de abstenção foi de 44,1%, o valor mais alto até àquela data (em 2019 chegaria a 51,4% e em 2022 a 48,6%). No final de 2014, José Sócrates tornou-se no primeiro ex-chefe de Governo a ser detido. Ainda assim, o PS ficou em segundo nas eleições do ano seguinte. O PSD ganhou essas legislativas, depois de vários anos a impor medidas de austeridade alegadamente impostas pela troika. Foi neste contexto particular que surgiu a geringonça.
Em março, um PSD impreparado para governar - segundo a maioria dos inquiridos em sondagens publicadas pelo JN ao longo dos últimos meses - enfrentará um PS envolto em suspeitas de cariz judicial. Tal como em 2015, os fatores desfavoráveis de um e de outro partido equilibram-se, fazendo tender o fluxo de votos para o empate.
A cereja no topo do bolo é a crescente suspeita em torno do próprio presidente da República quanto à sua atuação no caso das gémeas brasileiras. Injusta ou não, essa suspeita de cariz ético avoluma o descrédito dos políticos e tende a inflacionar o bloco dos abstencionistas.»
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11.12.23
A frágil casa comum
«Lenta, demasiado lenta a resposta ao aquecimento global. Se olharmos com realismo para o que está defronte dos nossos olhos, percebemos facilmente que a corrida parece perdida. Resta-nos mitigar os danos. E mesmo isso não será fácil. Reunidos nos Emirados Árabes Unidos, dirigentes de todo o Mundo repetem o cenário deprimente de sucessivas cimeiras do clima. Há, como de costume, interesses a sobreporem-se à defesa do Planeta - como se algo pudesse assumir mais importância do que a proteção da nossa casa comum.
São sempre os mesmos de um lado e do outro da barricada. Os países desenvolvidos de um lado, no outro os países mais pobres, os mais expostos, os mais explorados, vítimas de processo de colonialismo, de exploração, de verdadeiras extorsões de recursos. São esses os mais vulneráveis às alterações climáticas, são esses a quem faltam condições financeiras para dar uma resposta adequada. Os outros, os ditos países desenvolvidos, também atingidos cada vez com mais frequência pela fúria do clima, mesmo assim, dispõem de condições financeiras para proteger as suas populações.
No Dubai, afina-se por agora o texto final. Será publicado amanhã. Resultado de uma negociação dura, feita sílaba por sílaba, palavra por palavra, para que, no final, todos possam cantar vitória. Mesmo sabendo, eles e nós, estarmos perante mais uma derrota. Os Estados Unidos não aprovam um texto onde os países desenvolvidos se comprometem a financiar a mitigação do impacto das alterações climáticas nos países mais vulneráveis. Ou seja, recusam um facto indesmentível: que os mais ricos foram os maiores poluidores até agora.
Há assuntos mais importantes, neste momento, para as grandes potências. No país do Tio Sam, a prioridade é o financiamento da guerra israelita. A política mais cínica não muda, quer se trate do futuro do Planeta ou de um povo. Os mais frágeis perderão sempre.»
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10.12.23
Vasos japoneses
Vasos de porcelana «Nippon Coralene», decorados com vidro frisado e motivos florais. 1908-1914.
Daqui.
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Nos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
«Numa altura em que o mundo é assolado por crises, o 75.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) deve suscitar mais do que reflexões superficiais. O colapso climático está aí. Há conflitos a proliferar. Os civis fazem parte dos alvos bélicos e a morte de crianças parece ser tolerada. Além disso, os protagonistas das próximas eleições são os autoritários, as democracias estão a desrespeitar abertamente o direito internacional e os direitos humanos são postos em causa por governos de todos os quadrantes. A pobreza e a fome estão a ganhar destaque, enquanto a tecnologia se posiciona para transformar as nossas sociedades.
A incapacidade que temos mostrado em encontrar soluções justas e eficazes tem vindo a minar a confiança nos líderes e nas instituições. Existe uma percepção generalizada de que os direitos humanos são aplicados de forma selectiva – dentro de cada país e entre países. A nível nacional, as mulheres, as minorias e as pessoas com baixos rendimentos têm menos probabilidades de usufruir dos seus direitos, com especial destaque para o acesso à justiça e o acesso aos cuidados de saúde. A nível internacional, há uma gritante duplicidade de critérios, já que os mesmos governos que se esforçaram por proteger os civis na Ucrânia e em Israel não estão agora a fazer o mesmo pelos civis em Gaza e em muitos outros locais. Ao mesmo tempo, é retirada a prioridade a determinados direitos colectivos em todo o mundo, como o direito a um meio ambiente salutar.
Consequentemente, tanto activistas como autocratas se têm tornado companheiros improváveis na crítica ao quadro internacional dos direitos humanos, de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é a pedra angular. Argumentam que a DUDH reflecte um entendimento ocidental restrito dos direitos que carece de legitimidade e – cada vez mais – de impacto, à medida que a outra pedra angular desse quadro, a ordem internacional pós-1945, se tem vindo a desgastar.
Trata-se de um argumento persuasivo. Apontar o dedo e envergonhar – durante anos, a táctica preferida dos activistas – não funciona quando os alvos são mostram qualquer vergonha. O grito de alerta dos direitos humanos foi diluído por acusações de captura pelas elites e de apropriação pelos grupos marginais. Os antigos defensores dos direitos parecem diminuídos ou comprometidos. O próprio sistema multilateral que ancora os direitos está em crise – a sua falta de mecanismos de aplicação e de fundos é, agora, agravada por uma incapacidade de acompanhar desafios como a inteligência artificial.
Mas esta não é a história completa. O Open Society Barometer, numa sondagem realizada junto de mais de 36 mil pessoas num grupo representativo de países, revelou que a maioria das pessoas acredita no valor dos direitos humanos. Mais de 70% afirmaram que os direitos humanos "reflectem os valores em que acredito" e são "uma força para o bem" no mundo.
Diversos agentes, como os advogados de direitos humanos, ONG e organizações internacionais, continuam a dar esperança, apoio e reparação a quem procura justiça e protecção. A estes junta-se um grupo crescente de outros, desde comunidades rurais a povos indígenas, passando por movimentos políticos e sociais. Podem não utilizar a linguagem dos direitos, mas o seu trabalho baseia-se neles. Não se podem dar ao luxo de ter debates teóricos sobre a relevância da DUDH. Precisam de apoio e de soluções concretas.
Para assinalar o aniversário da DUDH, a Open Society encomendou um documento sobre quais as soluções possíveis, escrito por David Griffiths, um defensor de causas e especialista em políticas com mais de duas décadas de experiência diversificada no movimento dos direitos humanos. O documento, intitulado “Barometer in Context: Strengthening the Human Rights System” (“Barómetro em Contexto: reforçar o sistema de direitos humanos”), apresenta uma série de propostas para dar a devida relevância a este momento, com destaque, entre outros aspetos, para a prioridade à desigualdade económica e às alterações climáticas, a exposição do fracasso dos autoritários em concretizar o que preconizam, a defesa do espaço cívico, o repensar da migração, o alargamento da responsabilização e o reforço do sistema de direitos humanos.
Após 18 meses de investigação e com base em material proveniente de pelo menos 65 entrevistas com pessoas de todas as partes do mundo, bem como do Open Society Barometer, estas propostas são uma inspiração para aquelas e aqueles de nós que se aproximam deste aniversário com o coração pesado. É crucial que evitemos a estagnação e o desânimo, que apenas favorecem os abusadores e os autoritários.
Temos de nos tornar mais criativas e criativos na forma como apoiamos as pessoas que defendem os direitos, quer estejam numa sala de audiências ou num centro comunitário, quer estejam nas ruas a marchar pela redução da dívida e pela justiça climática. Temos de investir nos líderes e nos instrumentos de amanhã, em vez de tentarmos recuperar o atraso com os autoritários, ao mesmo tempo que duplicamos o nosso apoio aos agentes e abordagens tradicionais que continuam a produzir resultados.
E agora, mais do que nunca, temos de alimentar um movimento global – do tipo que não era possível em 1948 – para reafirmar a verdade simples que está no cerne da Declaração: que todos os seres humanos são iguais e que todas as vidas têm valor.»
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